segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

490 - GENTE COMPLICANDO O QUE É SIMPLES...


Mau grado tanta cautela o malandro escapou-se, escapuliu-se entre os dedos, a vida tem destas coisas, umas vezes oitenta outras oito somente. O outro surgira-lhe pela frente e ele pisara repentinamente o travão enquanto em simultâneo buzinava com estridência.

Eu nem pusera o cinto de segurança, pelo que dei um salto no banco e por pouco não bati com a cabeça no tejadilho do carro, mas ouvi-lo foi a minha salvação, parei instantaneamente e a coisa foi por um triz, não tivesse eu parado e certamente lhe teria dado um valente porradão. O outro carro era bem visível, pelo menos para quem o visse, grande e branco, mas surgira no meu angulo morto e se bem que cuidadosamente em marcha atrás e olhando p’los três espelhos à minha disposição não o lobrigara, sorte eu estar recuando a dois à hora quando não …

A ruidosa buzinadela chamara a atenção de uma centena de mirones saídos do Clube de Motards frente a minha casa, os quais de copo na mão acudiram à rua p´ra gozarem o espectáculo, e o espectáculo era eu, de chinelo/sapato, pijama arlequim azul e branco, um robe por cima de tudo e fazendo de mim um cossaco pronto a uma daquelas danças nem em pé nem agachado. Naturalmente não gostei, nem dos mirones nem de toda a vizinhança assomando das janelas, é um bairro pacato e buzinar daquela maneira é o mesmo que dar um pontapé num formigueiro. A coscuvilhice é tão velha quanto a história, faz parte do género humano, e muitas vezes confundida com o Manel Germano.

Estragos na viatura do paspalho. 

Tinha o carro estacionado ao lado do passeio e metê-lo na garagem era uma questão de noventa graus, mas a fim de dar a volta mais larga e o enfiar nos portões sem neles bater, faço habitualmente uma marcha atrás de poucos metros que me permita alargar a curva e entrar de frente. Foi nesta pequena manobra de marcha atrás que a coisa se deu.

Há quem não tenha noção da relatividade das coisas, quem não distinga oito de oitenta, quem ande na rua de carabina caçando moscas ou esteja pronto p’ra ir a África caçar leões com uma fisga… Nem sei quem bateu em quem, se eu que fazia marcha atrás e parei, se ele que vinha no seu caminho e deparou comigo não tendo contudo e devido ao sobressalto parado a tempo. De qualquer modo saltava à vista ser um assunto de lana caprina, uma insignificante esfoladela no meu pára-choques, um risquinho de caca no dele, uma questão de pentelhos havia de dizer o ministro Catroga se estivesse presente.

Saído do carro e apreciando a coisa abri os braços, pedi desculpa e prontamente assumi a culpa* alegando não haver problema, tinha seguro, ele certamente também, seria só tirar o carro do meio da rua, estávamos impedindo o trânsito e sendo gáudio da turba dos mirones, ele que entrasse, na garagem trataríamos dos pormenores.

Foi quando a coisa descambou, o homem, o moço, o jovem, o parvalhão não deve saber o significado de declaração de acidente amigável, tem mesmo esse nome, consta no cimo da papelada, amigável, destina-se a evitar conflitos entre condutores. Ora se é amigável é para ser tratada entre amigos, mais a mais eu não lhe arrancara o pára-choques, nem lhe partira a viatura ao meio ou virado a dita do avesso.

Mas ele grita:

- Você daqui não sai, ó Marina chama lá a policia !

Confesso que me pareceu ele ter dito ó Varina chama lá a policia mas preocupado com a atitude brusca e indelicada dele, que largara o volante e saltara do carro para me segurar a porta não se fechasse ela e este bandido fosse fugir-lhe, mesmo em pijama e chinelo/sapato, c'o carro atravessado na rua apontado à garagem, e visto por centenas de mirones/testemunhas, dizia eu temendo ele que este bandido dado a gravidade do acidente fugisse do local do mesmo. 

Confesso, de há muito tempo a esta parte se há coisas que me dão vómitos uma delas é a parvoíce das pessoas, a sua cegueira, a estupidez, pelo que à primeira distracção do bicho bati com a porta, tranquei-a, meti a primeira e avancei garagem dentro. Nem sei como o parvalhão num pulo se meteu à frente do carro, mas sei que teve no mínimo muita sorte ou esperteza para com novo pulo sair da frente dele, se quereria dessa forma impedir-me de entrar ou guindar-se ao estatuto de mártir nunca saberei.

Estragos na minha viatura.

O que sei é que o parvalhão podia ter arranjado a merda dum trinta e um, ter ficado com as pernas entaladas, a bacia partida, ou a coluna, ou paraplégico, ou tetra. Eu fiquei branco, siderado, quando me apercebi da sua idiotice, o cabrão podia ter-me arranjado uma carrada de problemas, até de consciência. Há gente mais parva do que possamos imaginar, e por causa de um pentelho diga-se. Fechei o portão do quintal, avisei o patareco que não se atrevesse a transpô-lo e antes de bater o basculante da garagem disse-lhe que sim, que fazia bem, que se entendesse com a polícia e passasse bem.

Claro que daí a quinze minutos tinha a PSP a bater-me ao portão da garagem, abri-o, convidei-os a entrar pois queriam ver o veiculo e os estragos, voltei a avisar o parvalhoco para que nem pensasse em transpor o portão, cedi à PSP a carta de condução e o cartão de cidadão, únicos documentos que me solicitaram, educadamente diga-se, foram sempre impecáveis, tendo eu solicitado que me submetessem ao teste do balão a fim de ficar registado não me encontrar sob efeito de álcool ou de alcalóides, ao que me responderam ser de lei, sempre que são chamados a intervir num acidente os envolvidos serem automaticamente submetidos a esse procedimento, por isso Baião sopra e cala-te, e não, nunca fiz o teste do balão, é esta a primeira vez, respondi ao agente que me interrogava e me pediu posteriormente que preenchesse um questionário onde descrevi, a seu conselho e sumariamente a minha versão do acidente ocorrido. Quanto ao balão naturalmente marcou zero, que esperavam ?

Preenchi-o assumindo a culpa, o que não devia ter feito por duas razões, a primeira porque a culpa será avaliada pelas seguradoras e pelos seus peritos de acordo com a lei e baseadas nas nossas declarações amigáveis, a segunda por ter constatado à força de ver o parvalhão “dançando” em redor das autoridades enquanto eu era inquirido e me ter apercebido exalar ele um forte hálito a álcool a par de algum desacerto nos passos e das pernas mas, como competia à autoridade avaliar e analisar esses factos, mais a mais fazem parte do seu protocolo de actuação, assim me tinham dito elas mesmas, calei-me.

Calei-me mais por estar farto de dar espectáculo para a turba e para a vizinhança pendurada das janelas, pois se haviam juntado já umas três viaturas policiais e, que me tivesse apercebido no mínimo cinco agentes, quatro eles e uma ela, todos eles volto a frisar simpatiquíssimos e a quem decerto aquela merda de ocorrência, insignificante, estragara possivelmente a tarde desse sábado 24 de Fevereiro do ano da graça de 2018. (18:15h).

Eu acabei por me retirar para os meus aposentos pensando de mim para mim haver gente que só sabe complicar o que é simples. Eu que até estava disposto a pagar a insignificância do meu bolso só para não perder o prémio de seguro e ver a próxima cobrança aumentada. Agora vai ser um calvário até que tudo se resolva, tudo por culpa dum parvalhão incapaz de discernir o significado de amigável inscrito no cimo da participação de acidentes às seguradoras.

Provavelmente será um daqueles taradinhos que ante o frio ou a chuva não hesitarão em meter a mulher na rua e enfiar o carrinho na cama. Interrogo-me, que terá o parvalhão ganho com tanta parvoíce a que deu azo ? Rapidez ? Justiça ? Paz de alma ? Castigo aos bandidos provocadores que infestam ruas e estradas ?

Um lugar no Paraíso ?

Haja Deus …




* Apesar de as seguradoras recomendarem que nunca o façamos, a culpa será avaliada por elas e pelos seus peritos de acordo com a lei  e as declarações amigáveis que entregamos.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

489 - ADEUS BENEVIDES MEU QUERIDO AMIGO


Ao entrar tomei um ar condoído, não era dia para festas e a disposição de toda aquela gente nem deveria ser a melhor pelo que me apresentei de presente nas mãos, bem visível e no sentido de desviar outras atenções e ali as fixar procurando dar algum ânimo à casa. Como quem carrega uma lamparina de Aladino esbocei um sorriso amarelo, pequeno, o suficiente e quanto bastasse para que toda aquela trupe me abrisse portas e desimpedisse os corredores até à velhota, desejoso que depois me esquecessem por completo.

Não era tarefa fácil, tínhamos acabado de enterrar o meu amigo Benevides, a manhã estivera fria, eu sem querer dirigi-me ao café habitual e pedi um Licor Beirão, não suporto funerais, nem mortos, pois inconscientemente alegro-me quando algum parte, sobretudo os da minha idade, e dou graças a Deus por ainda por cá andar mas fico com um peso na consciência que me dura dias, pelo que emborquei o licor de um trago para, mal acabado esse rito, pedir que me enchessem de bolinhos secos, dos mais baratinhos, uma das caixinhas mais pequeninas que tivessem e a fechassem com um grande e vistoso laço.


Era essa caixa que levava nas mãos quando bati à porta deles, não que me interessassem minimamente, nem a velhota fazia caso algum deles, mas eu já os ia conhecendo tão bem quanto ela, ela sim o verdadeiro móbil da minha visita. Eu adorava as nossas conversas, para ser franco idolatrava-a, não tinha sido minha professora mas fora-o de literatura no liceu a vida inteira. Era esse o nó entre nós, a literatura, e nem vos conto quanto com ela aprendi e continuo aprendendo. Por seu turno ela tem em mim um ouvinte de excelência e como tal não esconde quanto as minhas visitas lhe agradam.

Reparei ao repeti-las, às visitas, que toda aquela rapaziada não via na velhota mais que um estorvo, e ela neles mais que uns adoráveis netinhos e uns verdadeiros abortos. Confessou-mo uma vez portanto nada estou  inventando ou conjecturando. Para quem tinha sido amante e mestre de literatura a vida inteira, quem não pegasse num livro só poderia ser filho do demónio, e por vezes malfadava a hora em que tinha parido quer as filhas quer os filhos, inda que na sua tábua de classificações não os tivesse na conta dos netos, a esses é que nada perdoava, até por eles se abarbatarem com tudo que a velhota tivesse, desde um qualquer anel ou pregador, a uma fatia dourada ou mesmo uma simples torrada.

Gananciosos e esfomeados, assim ela os mimava, e eu, mal me deram oportunidade ao meterem o nariz na caixa dos bolos, antes que lha surripiassem desabafei para um deles, todavia de molde a que todos me ouvissem:

- A avozinha hoje não está com apetite, revolveu e cheirou todos os bolos, a bem dizer a todos babou sem nenhum ter mordiscado, nem sequer chupado, deve ser do fastio, ou do Senhor ter levado hoje o teu tio.


Quando digo o teu tio digo o tio de todos eles e enterrado nesta mesma manhã, ou seja o Benevides, um tipo um tanto ou quanto amaneirado e com quem em boa verdade nunca tinha tido uma amizade muito próxima, quanto mais intima, os seus tiques de afectado nunca ligaram muito bem com a minha intolerância quanto a determinados procedimentos seus a cuja interacção sempre que podia me furtava, aturava-o mor da velhota, e agora com ele enterrado e bem enterrado os dias serão para mim e para ela certamente mais risonhos, especialmente para ela.  

Pelo menos desta vez terei a certeza que ninguém lhe roubará os bolos, aliás belíssimos e que em parte comemos ao redor de uma camilha e acompanhados de um bule de Earl Grey a escaldar com sabor a caramelo e baunilha, como só nós dois gostamos dele. Nem imaginam, uns bolinhos de comer e chorar por mais, uma tarde bem passada, cheguei há minutos, de lá, digo dela, trazendo recomendada a obra “Sementes Mágicas” de V. S. Naipul, um gentleman inglês nascido na Trinidade e prémio nobel da literatura 2001, da D. Quixote. Tenho que falar com a Helena Girão. Quanto ao Benevides, sete palmos abaixo de nós e no Espinheiro, o Senhor lhe torne a terra leve.

Ámen.



sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

488 - A TRIBUTE TO MY DEAR AUNT JOAQUINA


Não guardo de mais ninguém recordações como as da tia Joaquina, nem mais nem iguais, inda que tenha sido com ela que menos convivi, e durante menos tempo. As últimas lembranças estarão agarradas aos meus catorze ou quinze anos, nem sei precisá-las com exactidão, depois morreu-me, assim sem mais nem menos, assim do pé pra a mão e, após isso somente uma campa no cemitério dos Remédios, por mim visitada mais vezes que quaisquer outras, logo por mim, logo eu, absolutamente nada amigo dessas coisas, de andar metido em igrejas, em conventos, em procissões ou em cemitérios e idênticos mistérios.

Morreu simplesmente, e morreu-me quando eu menos esperava e mais necessitava dela, quando a vida me ocupava de tal modo que mal dei pela sua partida, indiferente à sua morte, por na altura ter coisas mais urgentes a fazer e em que pensar. Pois tinha, nem me apercebi na ocasião como ela era diferente, porém a sua falta foi vincando essa grandeza até que, a ausência e a saudade da sua presença trilharam o seu caminho do coração à consciência, tão depressa quão eu amadurecia e sentia o prejuízo, ou para ser mais rigoroso por sentir ausentes as suas falas, as suas conversas, os conselhos, as advertências, as alusões e o modo calmo como me transmitia impressões, emoções, sentimentos e paixões.


Abrando sempre quer de carro quer na mota aos três quartos da descida na rua Serpa Pinto, abrando sempre ao aproximar-me do beco de Alconxel, ali à esquerda, ao fundo do qual residia a tia, numa pequena e catita casita portuguesa entalada entre outras iguais e fruto da judiaria, sua última e única morada conhecida e naquela mesma rua onde, pelos meus treze ou catorze anos eu labutava num importador da Hanomag e da Laverda, nessa rua dando nome ao beco, e então designada de Alconxel. *

A proximidade aproximara-nos nos últimos tempos de uma vida que ela sabia curta mas eu não, não lhe adivinhando as manchas nas mãos e na cara, prenúncio da morte prematura e não adivinhada mas enfrentada por ela em segredo e com denodo. Por vezes enquanto falávamos e muito falámos porque ninguém mais conseguia baixar-se até mim, até aos meus treze, catorze, quinze anos como ela o fazia, muito conversávamos enquanto me deixava ajudá-la espalhando um creme branco naquelas manchas agoirentas as quais me garantia serem coisa passageira. 

Era doce o seu falar, doces os seus sorrisos e modos, tudo ela tinha para dar e nada para cobrar, nunca. Amei-a tanto quanto um sobrinho pode amar uma tia, uma d’entre doze ou treze irmãs de minha mãe mas única, inigualável, nenhuma outra me amava ou amou como ela, depois, muito depois, veio-me à lembrança quanto o saber estar de abalada, de partida, teria pesado na sua atitude, contudo sabia-me único, sabia-me amado, sentia-me reconfortado.

Um senão me toldava, a paixão e namoro mantido muitos anos com um oficial militar de carreira e que eu naturalmente detestava, mal via o seu Simca 1000 estacionado no beco ou nas imediações corava enraivecido, e mil vezes desejei a morte a esse usurpador, um Simca 1000 de um branco esverdeado ou de um verde branco ao qual estive por várias vezes para despejar as quatro rodas, até a cor era horrível.


Um dia morreu-me, nova, sem avisar, e eu esqueci-a, tresloucado que andava com uma adolescência vera montanha-russa em que primeiro eu, depois eu, de novo eu, só e sempre eu pois unicamente de mim me lembrava até que, com o amadurecer acudiu-me o sentimento da sua ausência, a falta, a necessidade daquele ser único, angélico, explicando-me a vida, e porque isto assim e aquilo assado, nunca me ralhando, antes me centrando no mundo e ajudando a encontrar-me a mim mesmo.

Hoje sinto e sei quanto lhe devo, muito, foi o meu suporte na adolescência, no crescer, foi alicerce, alimento da alma, sangue e paixão, sou como ela, também eu sou ela e, mais tarde, quando já homem fiz a minha escolha, forçosamente recaiu inadvertida ou inconsciente mas infalivelmente sobre alguém como ela, de modos calmos, transmitindo paz, pois foi assim que sentimento e paixão me enlearam até hoje, o mesmo sorriso doce, doces o falar e os modos, tudo tendo para dar sem nada cobrar.

Nenhuma outra me ama ou amou como esta, também esta é única, única e filha única, não se chama Joaquina, Joaquina Rosa Ventura Palma, uma pena não será ? 

              
             Uma pena que valeu a pena. 

   

* Rua de Alconxel, actualmente com a grafia Alconchel






sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

487 - A DIFICIL ARTE DE VER E DE OLHAR * ...


Anote aí menino, é da discussão que nasce a luz, antes dela as trevas, o caos, e não atingir a luz ou não ver é como sendo cego, você passa ao lado e não vê. Tudo isto me ia ela dizendo calma, serena e maternalmente. Ela a Ana H., dona dum olhar aguçado, enquanto deambulávamos distraídos pelo calçadão.  

Era domingo e aquele era seu modo de dar aprovação e concordância a um curso de formação que ali me levara, nada mais que um mestrado dedicado ao tema da observação, isto é dedicado a olhar, a ver, à visão, no sentido de construir perfis e teorias baseadas em factos observáveis, mensuráveis e palpáveis, os quais sem um apurado treino escapariam ou passariam despercebidos ao mais atento que ao lado deles passasse ou os pisasse.

 Ana H. tinha olho de milhafre, ela que era escritora e pintora, tendo um pé na fotografia e outro no cinema, não podia dar-se ao luxo de ver mal, via bem melhor que um falcão ter-lhe-ei dito uma ou outra vez gabando-a e reconhecendo em simultâneo quanto com ela também aprendera por aqueles dias, aprendizagem extra formação, isto é fora da formação oficial que tão longe me levara e em que o destino quisera, talvez como partida colocar-me no colo dela, capaz de ser minha mãe.


Estaríamos, se a memória me não falha por volta de 78, e enquanto a academia carioca me habilitava na difícil arte de ver, me preparava ou capacitava para transformar a informação colhida em conhecimento, me ensinava onde a procurar e a colher para seguidamente a transformar, Ana H. nas horas vagas fazia com que eu chegasse mais longe e transformasse por sua vez, ou por minha vez esse conhecimento em sabedoria.

Como ela bem dizia e não se cansava de o dizer, “a realidade só se mostra a quem esteja preparado para a ver” o que não deixava de ser uma grande verdade, a informação estava acessível mas almas haveria que nem a saberiam ver, seleccionar ou colher, repetia. É preciso ter olho de falcão, ou de milhafre, e foi por ela que fiquei sabendo e conhecendo uma curiosa teoria que em Portugal sempre foi desconhecida ou ignorada, os aborígenes australianos conhecem-na há quarenta mil anos. Ana H. devia andar pelos quarenta e cinco, portanto não teria tido conhecimento dela há mais tempo que isso e, segundo ela, existem três espécies de aves cujo modo de espantar a caça e caçar no mínimo nos espantará.


São elas o milhafre de assobio, o falcão castanho e o milhafre negro, esta última uma espécie migratória que pode ser encontrada em Portugal e aqui faz ninho. Carregam no bico tições ardendo, sobem às alturas e largam-nos, incendiando florestas e savanas, espantando a caça e caçando-a com extrema e facilitada facilidade, redundância de Ana H. que com elas gostava de brincar. Claro que a teoria tem o seu quê de rebuscada em demasia para as nossas mentes dizia ela rindo. Os indígenas australianos conheceram-na e confirmaram-na há quarenta mil anos, é só um aparte, quem vai acreditar em selvagens ? Mas eles sabem, eles viram, eles tiraram-se de dúvidas, tiveram tempo para isso, adiante, quem não tem olho é como quem não vê, para os tugas toda esta psicologia é uncanny, fazes muito bem em treinar o olhar filho, quem não vê é como quem não sabe.

Naturalmente esta sua aprovação tácita tinha o condão de me deixar mais atento nas aulas frequentadas de segunda a sexta, em que treinava o olhar, apurava teoricamente o treino de ver, onde encontrar o que deveria olhar e observar, o extrapolar do observado ou visto, quem, quando, quantos, como, para onde, em que direcção, carregados, leves, descalços, calçados, mirar, apalpar os restos duma fogueira, analisar uma beata, um maço de tabaco amassado e atirado fora por descuido, uma carteira de fósforos inadvertidamente perdida, excrementos humanos, seu aspecto e dureza, o factor tempo, um botão caído, um fósforo queimado, o reflexo dum relógio, cheiro a tabaco no ar, pegadas, rodados, terra remexida, o nada, o silêncio das aves, o piar dos pássaros, brilhos na noite, fumaça no horizonte, a marca duma mijadela, os vários níveis de rastos sobrepostos, o sentido em que aponta um galho partido, ou a erva pisada, tudo isto nós estudávamos a semana inteira p’ra depois num breve fim de semana Ana H. me explicar que pela inclinação das pinceladas num quadro se poderia adivinhar quem o pintara, ou que há quarenta mil anos o homem pré-histórico já pintava paredes nas cavernas, deixando pistas, rastos, círculos principalmente, por serem fáceis e serem simbólicos, símbolos aos quais os tolinhos de hoje e dos discos voadores atribuem a classificação de testemunhos de aliens aterrissando e visitando a Terra.

 E quem sabe se não seriam mesmo discos voadores ?


Mais tarde, enquanto estendíamos os pés e fumávamos um baseado saltava para a Alta Idade Média e para o Renascimento, época onde ou em que, jurava ela, continuámos com os círculos, mas mais aprimorados, renascidos da cultura da Grécia clássica e da romana antiga, dizia ela que pelas alturas em que Portugal nascia, séculos XII e XIII apareceram as rosáceas, círculos enriquecendo a arquitectura, primeiro na romana depois com vitral na gótica, posteriormente os vitrais em paredes inteiras, a Banda Desenhada desse tempo e o modo de transmissão do conhecimento. Lá está dizia ela entusiasmada, a banda desenhada do vitral transmitia informação era o catecismo dessa era, ninguém sabia ler mas todos tinham dois olhos, viam, a visualização antecedeu em milénios a escrita filho, e pintar é mostrar algo, por isso eu pinto, mas a escrita não me chega, não me enche, não me preenche, escrevo, pinto, fotografo, faço cinema, levar as pessoas à sabedoria dá trabalho, o conhecimento é matéria densa, pesada, consistente, não é para todos sabias ?

Ela regressou ao país antes de mim, acompanhei-a até ao Galeão, fez o check-in e despedimo-nos com lágrimas nos olhos, nunca mais nos vimos, falámo-nos uma ou duas vezes pelo telefone e com intervalos de três ou quatro anos entre cada chamada, eu aprendi a ver, aprender a ver manteve-me vivo, Ana H. pintou, escreveu, fotografou e filmou o que queria que víssemos, ela que tinha um olhar de falcão, incisivo, penetrante, penetrou-me a alma, ficou-me no coração, jamais a esquecerei, nunca a esqueci, nem nos piores dias daquela terra sem grei.

O meu destacamento, mau grado o risco acrescido p'lo tipo de terreno que pisávamos e o perigo derivado da natureza das operações desenvolvidas, registou sempre pouquíssimas baixas, e nisso foi único. Obrigado Ana H., porque também tu me ensinaste a ver. E a olhar e a ver os outros, ver como caminham, como falam, gesticulam, as pausas que fazem, as contradições, atitudes, maneirismos, pancas, tiques, taras, vestimentas, modas, manias, hábitos, disposições, humores, cultura, conhecimentos, escrita, caligrafia, estrutura das frases, incoerências, inconstâncias, contradições, polaridades, reticências, repetições, silêncios, as pessoas são um livro aberto, há que saber olhar e ver, há que saber lê-las...  





quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

486 - PROPORÇÃO ÁUREA, DIVINA PROPORÇÃO

Reflexo, pintura de Nuno Rolo

Aproxima-se a passos largos o último dia duma inusitada exposição que algum mentecapto se lembrou de levar a efeito imaginem, num café / charcutaria / pastelaria e salão de chá. Somente me admirou o raro e insólito da ideia pois o local, o New Concept Coffe & Shop, amplo, arejado e bem iluminado veio a mostrar-se uma das melhores, mais lindas e improvisadas galerias que tive oportunidade de visitar.

Oficialmente a exposição deveria ter já encerrado, refiro-me à exposição, não ao agradável café. Inicialmente anunciada entre 2 e 22 de Janeiro inda se mantem instalada graças ao sucesso obtido. Não diria ser um sucesso estrondoso, por nem ser essa a intenção, mas embora sucesso modesto não deixo de a considerar um sucesso. Eu mesmo reparei e constatei a maior afluência de clientes, muitos deles idos ali pela primeira vez mas que têm voltado a aparecer de vez em quando. Se terão tido melhores caixas ao fim do dia é perguntar à Dora e ao Nuno as caras simpáticas por trás do balcão e donos do negócio. Não sei de ciência certa se o café tem mais freguesia, mas sei que o facto é bem e muito comentado em toda a cidade. O café e essa tão extraordinária quão inovadora experiência “galerista” pelo que creio firmemente terem sido atraídos novos clientes, como já disse vi por lá imensas e novas caras. O Nuno e a Dora merecem isso, fizeram uma aposta inequivocamente ganhadora, pelo menos o prestígio já lá canta, já ninguém lho tira. 

Pintura em caixa da EDP


Em boa hora esses dois prolongaram a exposição, foi por uma boa causa, o Nuno e a Dora estão a rifar para oferecer, dois quadros cujo pecúlio será doado a uma instituição da zona, a ASTE, uma instituição virada para a saúde mental, para os idosos, é nossa obrigação participarmos nesse "sorteio" a efectuar entre os visitantes da exposição e clientes, por cinco euros quem sabe se não terão a sorte de levar para casa um quadro de um milhão ?

Naturalmente o café não é o MoMA, o Centre Georges Pompidou ou o MAAT embora esteja ligado intimamente a este último pois um dos artistas expostos, o José da Fonseca, já com craveira nestas lides e outras exposições no curricula, trabalha como precário a recibos verdes para a EDP, como todos sabemos dona do MAAT, o tal museu novo, ultra moderno e que nós pagámos. Pinta ele a spray e recorrendo a técnicas vindas da origem dos tempos do stencil, motivos alegres nas cinzentas caixas de derivação da EDP existentes por toda a cidade e agora com um toque modernista. Pagamos mas alegramo-nos.

Se trago à baila esta história das caixas do correio, perdão da EDP, é só para que vejamos o que é a arte em Portugal, o estado da arte e a aventura dos artistas e o nível por ela atingido. Assim, e procurando dar resposta ao pensamento de Franz Rosenzweig de que “A nossa época não se pode curar da sua verdadeira doença - de que a «vontade de forma» não é senão um dos sintomas – senão conseguindo devolver o seu valor de engagement ao discurso desvalorizado dos homens.” A vontade da forma enquanto forma dada às várias artes, “pensar com artes” quer como prescrição assinalando um movimento saindo do definido, quer como proposta de tema para reflexão, um tema que não contempla o “pensar sem artes”, “Apenas se pensa com artes” pensar não é uma arte no entanto ocorre em relação com elas. Num sentido específico aquela expressão sugere que se pensa em relação com algo que se apresenta como arte, trata-se sobretudo de sugerir que pensar, não sendo uma arte, é indissociável das artes, que os termos “pensar” e “artes” são expressões que se implicam mutuamente no saber viver e na sua enigmaticidade, a do “ser justo”.               
                    Pintura de Manuel Carvalho Barão a ser sorteada em beneficio da associação ASTE

Meditava eu em tudo isto quando tive que dar pronta resposta ao Honório que é um otário, e me perguntara se “aquilo” era arte – ele que do mundo só conhece Alvalade, Benfica e os seus artistas da praxe o Bruno e o Vieira.

- Claro que é arte retorqui-lhe eu que nem do Porto sou, não são arte somente as esculturas do João Concha, um consagrado, ou as pinturas e colagens do Fonseca, já citado, mas também muitas outras obras dos restantes e ali expostas, mostradas, digo ali no café/galeria, apesar de com mais ou menos distorção estilhaçarem os cânones da fisionomia, do behaviorismo, da psicologia, da psiquiatria, da fisiologia, da ergonomia e da esquadria, fazendo com que o Horácio, ou o Honório franzisse o cenho e, entre dentes me atirasse um:

- Não pode ser arte isto – apontando para uma figura em evidência – Dez tipos olham para este quadro e cada um pensa uma coisa diferente, não pode ser arte, isto gera uma impressão diferente a cada um dos dez, só pode ser confusão !

Ora olhar e ver a arte é isso, naturalmente olhando a obra “Reflexo” do Nuno Rolo, um chinês verá um dragão, um africano um leão, um malaio um tigre da Malásia, um europeu mediano a invocação da liberdade selvagem, estilizada, ver é invocar o portfólio da experiência de vida em cada um de nós, não existe um processo automático de causa efeito ao olharmos um quadro, olhar é conectar as celulazinhas cinzentas, os neurónios e os axónios, pensar, meditar, fazer associações e ligações, porque isto anda tudo ligado, o Trump e o Twitter, a guerra nuclear e o outro anormal lá da Coreia, o mijar mais alto e mais longe, o tê-lo maior que o outro, tê-lo ao botão vermelho entendamo-nos, por isso em boa hora os promotores da exposição misturaram consagrados e amadores, porque essa coisa dos vasos comunicantes funciona na física mas também nas artes, e, como dizíamos a brincar em Angola; 

                  uuuuuuuuuu
                                        b
                                           b
                                             b
                                                b
                                                   b
                                                      OOOOOOOOOOOOO

claríssimo o puzzle, us pequeninos b descem, obedecem, ós grandes, aos Ós grandes, aos grandes e aprendem com eles, a perspectiva é essa, que com eles aprendam isso mesmo da perspectiva, ou da falta dela na pintura NAIF, que aprendam coisas esquisitas como proporção áurea ou divina proporção e aprendam a conhecer o homem Vitruviano, que a esta hora navega desde 1977 na Voyager, e vai muito para lá do cosmos. Claro que o convívio entre consagrados e amadores implicará aprender também que “Giotto” é um nome e determinado tipo de azul e não uma mera marca de lápis de cor, guaches ou aguarelas e outras coisas tais como o sfumato, tromp l’oeil e técnicas, segredos e manhas da pintura ensinadas em Belas Artes e através do convívio passadas aos leigos não eleitos.

Pintura em caixa da EDP


O universo da arte tem muitos caminhos, muitas ruelas, muitas esquinas e a cada uma que se Dobra ficamos vendo a dobrar, só por isso aquela peculiar exposição, peculiar enquanto de pintores pobrezinhos, isto é não eleitos, não consagrados, não deixa de ter o seu valor e de ser arte, de expor arte, apesar ou porque q.b. polémica, amada, criticada, polemizada, abominada, aplaudida, benquista, suscitou debates, conversas, opiniões, divergências e convergências e, nenhum de nós o ignora, ser da discussão que nasce a luz.

Eu apostaria ninguém ter perdido e todos terem ganho, enriquecido um pouco com ela, ela exposição. Quanto aos artistas convidados, consagrados e menos consagrados, espero que tenham também apreciado igualmente a iniciativa e que agora, por eles mesmos, em especial os mais crus nestas coisas, dêem corda aos sapatos e se metam em novas iniciativas, participem das que puderem, organizem outras em conjunto com outros artistas, seria ambição a mais desejar que dali saísse um Picasso reconhecido. Espero que tenham feito novos contactos e novos amigos, que entre eles troquem cada vez mais impressões, o José da Fonseca é consagrado e cursou Belas Artes, bem podia se os manos Rolo e Carvalho tiverem tempo, transmitir-lhes um pouco dos muitos e correctos modos de se pegar no pincel. Um encontrão ombro a ombro não deitará ninguém ao chão e será bom motivo para iniciar uma conversa. Então pá tu já pintas ? Eu pinto desde os treze. E como são os pelos do teu pincel ? De marta ? A Marta presta-se a tudo e tem o pelo macio, já os pelos sintéticos… Bahhhh Bem, olhem, desenrasquem-se, metam conversa como quiserem mas não deixem de meter, meter é que é bom, sempre foi.

Meter combersa claro.

Frequentem e visitem a novel Galeria 16 e a igreja de S. Vicente, lugares onde poderão dar de caras com outros espreme bisnagas como vocês e quem sabe se não acabarão espremendo bisnagas juntos, é com uns e com outros que se aprende, e com outras ainda se aprende mais. Do amigo Concha nem falo, é consagrado, pena viver numa cidade e num país de tesos, eu se fosse rico comprava-lhe aquilo tudo só para decorar o jardim do vasto quintal, piscina e arredores, mas não sou rico, sou o azar dele, desejo-lhe a sorte grande porque no caso dele só falta mesmo aparecer quem tenha dinheiro, o valor e a qualidade das obras é inquestionável. Ao Nuno e à Dora desejo que tenham muitos meninos, artistas, e que nunca me faltem com os suspiros, foram pioneiros numa forma de arte, iniciativa e inovação que só tem paralelo nas grandes cidades e na Holanda em especial, o livro de visitas e os elogios que por lá abundam decerto os deixaram satisfeitos com esta aventura que partilhámos.

E agora tenho que ir que são quase horas de jantar e já me atiraram o avental acima, sei bem o que tal significa, que me dedique às minhas artes, vou começar por descascar umas batatas e cortar umas cebolas e cenouras e meter tudo no tacho. Quando levantar fervura ligo o exaustor e atiro-me a elas com a varinha. Depois deitarei um fiozinho de azeite.

Vão dando noticias. Beijinhos.

Pintura NAIF do povo Otavalo, Equador, gentileza do camarada Rui Nascimento. 

Foto de New Concept Coffee & Shop.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

PENA DE PAVÃO EMPROADO... DEPENADO ...


PENA DE PAVÃO EMPROADO, DEPENADO

Encontrei penando, no chão,
uma pena de pavão,
pisada e repisada,
a um canto desprezada,
abandonada, envelhecida,
estragada.

Não,
não era minha conhecida,
era uma pena, em tempos colorida,
deixando ver ainda, entre mágoas,
cores iridescentes, lindas,
como quando o sol se reflecte nas águas
dos mares, águas profundas, infindas.

Mar caixão de mágoas e penas que tais,
caixão de inocentes, de penas capitais,
como esta ali caída,
num canto do café esquecida,
ignorada.

Ela que já fora colorida,
talvez temida, talvez amada,
talvez dissoluta, talvez depravada,
talvez destemida, talvez odiada,
talvez arrependida, talvez perdoada,
talvez abençoada, talvez redimida,
talvez.

Encontrei-a no café um dia destes,
estava no chão, encolhida, 
no chão, tímida,
estirada num canto, compungida,
ali estava, resignada,
dando pena, a pena.

Peguei nela,
sacudi-a,
dei-lhe vida,
meti-a na pasta,
por onde andou com os lápis,
porque há penas que dão pena,
outras doem se arrancadas.

Depois guardei-a,
entre páginas nunca lidas,
entre páginas virgens,
a que decorei o número,
a que fixei as margens,
não fosse um dia esquecer-me
de a incluir entre as bagagens,
levá-la comigo,
fazer dela minha,
o meu marcador,
entalá-la,
entre o lido e a ler,
entre o deve e o haver,
marcando o lugar,
o tempo,
o ritmo,
o presente e o futuro.

E talvez,
um dia nós dois, sós,
pisássemos o risco,
saltássemos o muro,
e, de mãos dadas,
apesar das penas,
talvez sejam penas que dão para rir,
apesar das mágoas,
dor aqui dor ali como num teclado,
perdendo teclas e algumas penas,
apesar dos anos,
apesar dos ais,
ficássemos olhando os pôr do sol no cais,
infindas madrugadas.

Certo dia um pavão picou-me,
e eu arranquei-lhe as penas quase todas,
tantas quantas lhe deixei,
pois inda escrevo com pena de penas,
de penas, e de mágoas,
mas voltando ao pavão,
agarrei-o p'lo pescoço,
digo-vos, nem molho o pavão na tinta,
obriguei-o a engolir um tinteiro,
inteiro,
hoje sou um bandoleiro,
e escrevo as minhas histórias
c’o o bico dele, e olhando o galinheiro.  


Humberto Baião, in “Chorando Penas” Janeiro, 23- 2018


domingo, 7 de janeiro de 2018

SOPINHA DE SANTAS FLORINHAS ....


SOPINHA DE SANTAS FLORINHAS

Floriu a magnólia na rotunda,
desacelero olhando-a embevecido,
o carro cheirando a pinheiro da Escandinávia,
comprado no chinês por um eurito.

Uma árvore triangular, papel pastoso,
pastoso e cheiroso, dançando pendurada,
também há de nardos, alfazema e anis,
p’ra gente orgulhosa e narizes mui subtis.

Nunca fui subtil, mas conheço, 
o Subtil, e o cunhado dele o Gentil, 
reformados de França, plantavam lavanda,
bons petizes, bons narizes.

Eu amo a sensibilidade, as violetas,
a Violeta, a Margarida, a Rosa, a Dália,
e desde gaiato tantas outras vestais,
desde os passeios entre flores de auracária,
desde quando vi tulipas em postais.

Lembro esses passeios matinais, os madrigais,
p’los campos floridos e grandes quintais, 
colhendo e cheirando os lírios,
os narcisos, as giestas, papoilas, 
os dentes de leão e as moçoilas. 

Inspirando fundo, inflando o ego, 
o Narciso crescendo em mim, 
a experiência c’os feijoeiros,
depois c’as ervilhas de Mendel,   
olhar atento à botânica, a Garcia da Horta
ao quinchoso do avô Darwin,
à flora, à fauna, às espécies,
também a Wallace e Lamarck.

Uma semente enterrada num vaso,  
o milagre no dia dos meus anos, 
o feijoeiro aos onze,
a tulipa aos doze, dum bolbo,
depois um pulo, e eu quase homem,
e aquela tipa, aquelas tipas, 
enfiando em mim borboletas vivas, 
pelas tripas,
até arrotar, até aprender a dizer
gentis senhoras, meninas, moças,
mulheres.

Existem variegadas espécies,
como os talheres, a cutelaria,
a faiança, a ourivesaria, 
mulheres d'oiro a tua tia,
respect,
respect se queres ser respeitado,
e adorado
essa é a verdade rotunda. 

Évora, por Humberto Baião aos 07 E 08 de Janeiro do ano de 2018

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