quinta-feira, 19 de abril de 2018

498 - VENTURA, DESVENTURA E MARRETADA...

Vista da Praça de Sertório, assinalando à direita com um circulo o lugar do antigo stand Victor Ribeiro e à esquerda uma seta apontando o antigo stand de Raúl Cruz Ldª - Citroen Évora
  
Eu ficara de me encontrar com o Victor Ribeiro no stand dele ali à Travessa de Sertório, onde a dita se prepara para desaguar na Rua Nova, por volta das dezanove horas. Ia ser pai, esperava um catraio ou uma catraia e estava interessadíssimo numa nova e barata autocaravana, retoma que ele recebera como compensação de um devedor relapso.

Estaríamos em 76 ou ainda em 75, demasiado longe para me lembrar com maior certeza, portanto para além da hora e do facto do dia começar a escurecer, no que a Cronos respeita é tudo que se me oferece dizer. Quanto ao resto não havia meio de nos entendermos, pelo que fomos deslizando para o carro dele com a mesma mansidão com que aproximando-se, a noite caía de mansinho.

Dentro do carro continuámos a discussão até o lembrar de me levar a casa, pois se estava fazendo tarde para o jantar e esperavam por mim.

- Calma amigo Baião, não podemos abalar agora ou levantamos a lebre, quero dizer os pardais.

- Que pardais ? Respondi eu simultaneamente confuso e curioso.

- Ali, veja bem ali, sumidos na reentrância das portas do Raúl Cruz, tope a cena com atenção que isto da liberdade e da tesão andam de mãos dadas como na revolução.  
 Trabalho do artista eborense Nuno Rolo

O saudoso Victor Ribeiro, cu velho, que teria uns cinquenta anos na altura, ou mais, era um reaccionário declarada e desassombradamente inimigo do PREC, pelo que enquanto não divisei o que se passava a coberto das portas do stand da Citroen, na nossa frente e a uns cinquenta metros ou nem tanto, não descansei. Évora sempre foi uma cidade cheia de encantos e recantos. Foquei a atenção no assunto mas não prendi como devia a surpresa, tendo-se esta soltado como se soltam os cães numa corrida às lebres, o que me impediu de segurar um

- Foda-se amigo Victor aqueles três estão mesmo destrambelhados, não há democracia que os segure, larguei eu rindo.

Entre os esconsos da entrada consentida pelo nicho do portão/montra daquele stand fechado, acoitavam-se afobadas três figuras cujo comportamento intempestivo mais fazia lembrar uma cadela no cio assediada por dois mastins espumando da boca. Era fácil notar ser a coisa consentida, mais desejada até que propriamente consentida, ou somente ou simplesmente consentida. A pressa era muita e apenas quando o Ventura, mais baixo, e o João Marrão, mais alto, a ladearam como uma escolta um à direita outro à esquerda dela o ramalhete se compôs e o trio acalmou, se é que podemos recorrer a tal expressão. 
Trabalho do artista eborense José da Fonseca
Pelo menos ativeram-se às posições referidas tendo colocado ponto final à dança macabra em volta do totem, sim ela parecia um totem, alta, bem esculpida, e verdade seja dita ávida da adoração deles pelo que após os ter onde os queria, sorrindo e beijando à esquerda e à direita, o 25 de Abril nem dois anos teria, abrindo os braços como uma santa, introduziu as mãos no cós de cada um deles disposta a abrir quantas garrafas de champanhe pudesse.

Surpreendidos nós dois, o Victor Ribeiro e eu, mantivemo-nos quietinhos e caladinhos curiosos de observar até onde chegaria a festa ou quando jorraria o champanhe já que, do modo desajeitado mas empenhado como ela agitava a garrafas seria mais que certo dum modo inesperado e explosivo vir a saltar- lhes a rolha. Concedo não ser fácil agarrar uma garrafa pelo gargalo e agitá-la quanto mais duas, uma em cada mão, as calças atrapalhando os movimentos, a descoordenação direita esquerda travando a perfeição que só a sincronia permitiria, factores aos quais o contorcionismo dos corpos, a falta de visão por mor dos olhos fechados, e o estremecimento derivado da entrega e do abandono ao clímax em nada contribuiriam para a compostura mínima que só ela lograva manter, qual matriarca metendo na ordem os meninos, mimando e beijando ora um ora outro enquanto com o cotovelo os pressionava contra o vidro da montra mantendo-os tão sossegados quão possível naquelas circunstâncias e o suficiente e necessário ao mister, ela também imbuída do mesmo entusiasmo sensual, lúbrico, jovem e desenfreado que ali os levara. 
 Foto da mui premiada eborense Helena Margarida de Sousa
Talvez pressentindo nas mãos a pressão acumulando-se, talvez aliviando os dedos sobre as rolhas, talvez desesperada e surpreendida por tanta agitação não ter ainda feito saltar as tampas às garrafas, essa alegria festiva foi contudo finalmente celebrada, sendo fácil vê-la estampada nas suas carinhas risonhas, no alívio experimentado e nas suas caras reflectido, idem na paragem cansada das mãos agora mergulhando de modo concupiscente no champanhe derramado molhando as calças de ambos até aos joelhos, ela sorrindo piamente, reclinando ternamente a cabeça ora à esquerda ora à direita, colhendo e alimentando a satisfação dos dois, ambos endoidados e cerrando os dentes p’lo desejo dela quando, sem qualquer aviso as luzes do stand se acenderam automática e repentinamente, apanhando de surpresa e banhando os três com a mesma luz que os assusta e denuncia, que os iluminou como terá acontecido com Nossa Senhora e os três pastorinhos mas que ao invés de os unir em solene devoção os espanta cada um para seu lado, amedrontados e envergonhados decerto pela falta de fé pois era outra a fé que os movia, essa outra fé que move montanhas, que não atrofia antes incita e empurra a mole humana.

Rimo-nos e finalmente partimos, é evidente ter chegado atrasado para o jantar, peixe no forno se a curiosidade vos tortura, e já agora para que não sofreis mais adianto não ter fechado o negócio da autocaravana, comprei dois ou três anos depois uma caravana ao amigo Branquinho director do IEFP. 
 Trabalho do artista eborense João Concha
O desorganizado João Marrão deambulou mais uns anos por aqui, sempre ébrio, até ter morrido coitado, imagino o alívio que terá sido para a viúva, o bem-aventurado Ventura, bom rapaz, sempre o foi, vejo-o de vez em quando, assentou, casou, adora cães e é sempre bem-vindo à minha beira. Com ela, a nossa senhora da Praça de Sertório, de seu nome Imaculada da Consolação, cruzei-me quatro ou cinco vezes nos últimos quarenta anos, sempre me pareceu uma linda e digna senhora, umas vezes com os meninos pela mão, outras dando solenemente o braço ao marido que sempre reputei de bom rapaz se é que ainda me posso considerar também um bom rapaz, ilustre funcionário da administração local e sempre de ar feliz, ela aparentando igualmente o mesmo ar feliz do marido, segura de si, pessoa de bom senso, mulher sossegada, equilibrada.

Um casal feliz, e até são do meu partido. 

Vista da Travessa de Sertório, assinalando à direita com  uma seta o lugar do antigo stand Victor Ribeiro.
NOTA: Sendo esta história mais uma das poucas mas verídicas lembranças que aqui exponho para a posteridade, aceitarão óbviamente a omissão dos apelidos dos três reais personagens.


quarta-feira, 18 de abril de 2018

TRANSALENTEJANO OU EXPRESSO LUSITANO*

Foto da mui premiada eborense Helena Margarida de Sousa

A nova linha férrea projectada entre Sines e o Caia, a tal que permitirá a nossa ligação à Europa, tem suscitado imensa atenção e contestação. Infelizmente não somente pelos factos caricatos ligados à bitola, já de si um facto nada despiciendo, e como já estou habituado a ver passar os comboios foi ao invés a curiosidade acerca desse e de outros factos quem me fez parar para meditar.

A todos suscitou atenção por ser um grande e estruturante investimento, ou seja, tal como aconteceu com Alqueva também este vinha com quarenta anos de atraso, porventura estaremos fazendo agora o que deveria ter sido feito logo após Abril, dotar o país de infra estruturas que o definissem, que o estruturassem, lhe servissem de cabide, esqueleto, estrutura, por isso se chamam estruturantes. Tivesse tal desiderato sido cumprido e a dicotomia hoje existente entre litoral e interior não se verificaria.   

Contestação por se terem gerado dissensões entre o investidor e as várias entidades ao longo do percurso anunciado, no caso de Évora por passar dentro da cidade, noutros casos por passar fora ou muito próximo, ou ainda por não parar em muitas delas, nem para elas haver sequer projectadas estações e apeadeiros nesse trajecto. Porém nunca o foco esteve apontado ao fulcro ou cerne da questão.

Tenho lido com muita atenção todos os artigos sobre o tema, contudo não há bela sem senão e, embora crendo piamente nas palavras e razões que leio, não posso deixar de confessar há muito ter deixado de confiar na informação que nos dão de bandeja e oriunda de centrais noticiosas que tudo uniformizam, centralizam e “empastam, formatam ou empacotam” para consumo interno. Atrevo-me a confessar que perco muito do meu tempo espiolhando na net os sites da imprensa estrangeira e o que dizem sobre Portugal.

Longe de mim chamar aos nossos órgãos de informação mal-intencionados ou desconhecedores dos factos, pois se as próprias agências noticiosas lhos escondem… Mas sucede que se na ocasião nem me intrometi nem tão pouco me incomodei quando da polémica quanto à linha Sines – Évora – Caia, tal se deveu ao facto dessa linha simplesmente não ter sido pensada e nem vir a ser construída para nós, p'ra nós alentejanos. E diria mais, diria que do ponto de vista do executante, do investidor, a enorme extensão do Alentejo só prejudicará e encarecerá o projecto, não fosse a sua planura, sua nossa, do nosso Alentejo, e alguém teria já gritado aqui d’el-rei, isto é um estorvo...

Todavia a verdade contada nos mentideiros é outra, conta-se que há muitos anos, quando da concessão do porto de Sines ao operador de Singapura terá sido assinado entre as partes um caderno de encargos vultuoso e volumoso. O governo português ter-se-á atrasado, terá falhado, não terá cumprido ao longo do tempo programado o acordo estabelecido, enquanto o operador foi cumprindo a sua parte e exigindo a Portugal que cumprisse com a que lhe cabia. Quanto a estes factos diz-se muita coisa, alegadamente que em alternativa o nosso país terá ao longo do tempo compensado com contrapartidas o operador cumpridor, como que indemnizando-o, ou aceitado esses factos a título de castigo ou de multa pelos atrasos constantes que originou. Chegados a este ponto e como diria uma amiga minha, adiante, ou em frente que atrás vem gente.

Há um momento a partir do qual por mais ou muitas cláusulas do investimento que o operador de Singapura tivesse cumprido todo o seu labor se tornaria inútil sem a parte correspondente a cumprir pelo estado português, precisamente o caminho-de-ferro há décadas acordado e prometido, ligando Sines à Europa e sem o qual toda a actividade do porto ou do Terminal de Contentores de Sines se tornaria um contra-senso. Na continuação do incumprimento pela nossa parte o operador terá supostamente movido uma acção contra Portugal nos tribunais internacionais exigindo ao nosso estado biliões de indemnização, o processo decorre há perto de dez anos e toda esta pressa em construir a linha férrea nada mais terá que ver que fugir com o cu à seringa. 

António Cunha, Estoril, “A última paragem”

Não sei como tudo isto, que é muito triste, irá acabar, não sei se vamos ter que entregar, dar a Singapura o porto de Sines a título de compensação pelos prejuízos acumulados e expectativas de negócio goradas que lhe causámos, não sei se teremos que entregar-lhe todo o país, o que sei é que o que parece menos interessar, e só atrapalhar, é todo este enorme Alentejo, reivindicativo mas ao abandono, senhor dos seus direitos mas incapaz de impor deveres, estratégias, tácticas, que sempre atira as culpas do seu atraso para cima dos outros e de onde partem dez pessoas por dia, 3.650 por ano, ou seja 36.500 em dez anos segundo rezam as estatísticas. 

Ignoremos momentaneamente o porto de Sines, um dos melhores portos de águas profundas da Europa, actualmente dos poucos com possibilidades quase ilimitadas de expansão enquanto por toda essa Europa os outros portos de mar estão há muito encalhados no sucesso que tiveram e impossibilitados de crescer. Ignoremos Sines para dissecarmos Singapura, uma cidade estado com uns meros 716 km², uma república parlamentar onde vivem 5 milhões de pessoas.

Basicamente é esta a radiografia do armador do terminal de Sines, um país líder mundial em diversas áreas, sendo o quarto principal centro financeiro do mundo, o terceiro maior centro de refinação de petróleo a nível mundial e ele mesmo um dos cinco portos mais movimentados deste planeta, sendo Singapura um dos países mais ricos. O país tem o terceiro maior PIB per capita por paridade do poder de compra da galáxia, apresentou o maior Índice de Desenvolvimento Humano dos países asiáticos sendo o 9° melhor do mundo em 2014 e tendo uma história singular, Singapura foi ocupada pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial voltando ao domínio britânico após esse conflito, tendo-se tornado autogovernada,. Estava-se então em 1959, passando a Estado totalmente independente em 1965.

Em contrapartida Portugal tem 92.256 km² e uma população estimada em 10 milhões, ou seja temos para contrapor a Singapura o dobro da população e um território 130 vezes maior, quanto aos restantes parâmetros todos nós melhor ou pior os conhecemos e nem vou sequer falar neles por nem valer a pena e desgraçadamente me envergonharem.

Por mais justas, nobres, bairristas e patrióticas que se nos apresentem as nossas exigências de passagem ou paragem no Alentejo, não podemos esquecer que somos estatisticamente uma região despovoada, sem futuro e a mais atrasada do país e da Europa. Falta-nos massa critica, peso, densidade, volume, ficámos demasiados anos a ver passar os comboios e enredados na nossa pequenez e mesquinhez e agora, agora que se movimentam negócios de biliões para perto de 300 milhões de habitantes por toda a Europa nós queremos impor a nossa marca, imprimir a nossa dedada, ignorando que cada paragem de um comboio desses que passaremos a ver passar, implica um custo que o volume de passageiros ou mercadorias que lhe poderíamos atirar para cima não compensam em custo nem o tempo nem o dinheiro perdidos numa paragem.

E não saberão os de Singapura do projecto megalómano da Biblioteca de Alexandria que definha no Alandroal, quando não é que se ririam de nós a valer. Mas vamos ao que interessa, os comboios, pararem aqui, para carregarem uma dúzia de toneladas de pedra mármore a cada trinta dias ?   Ou para descerem ou subirem uma vintena de empresários mensalmente ? É que as contas que ainda nem fizemos os de Singapura decerto as resolveram há muito tempo e acredito que se fosse coisa que interessasse eles se lembrariam de fazer paragens, apeadeiros, estações e o mais necessário à rendibilidade do seu negócio. 

Não esqueçamos que em redor do negócio à volta desta tão polémica linha férrea giram milhares ou milhões de toneladas de contentores, de dólares, de euros, de volume métrico, de valor, de dimensão, de escala, tudo números astronómicos que nem sequer conseguimos imaginar. 

Nós não passamos para os mentores deste investimento do mosquito que pica, que incomoda, que infecta, enfim, contrariedades, há que contar com elas e saber torneá-las sabiamente. Certamente terá sido assim que Singapura se guindou ao lugar que ocupa no mundo, um lugar cujo Hub marítimo ocupa a terceira posição no planeta, a primeira no sudeste asiático e cujo orçamento supera dezenas de vezes o deste modesto, endividado e desde 1143 incipiente país.   

Naturalmente também eu detesto ficar vendo passar os comboios, sobretudo se como estes, forem comboios de quilómetros, com centenas de carruagens passando de meia em meia hora, alheias a nós, não já cantando "pouca terra pouca terra" mas sussurrando-nos "a Europa não é aqui, a Europa não é aqui"... 

Ainda se funcionássemos na dimensão, no ritmo e à velocidade do resto do mundo, talvez nos ouvissem, quem sabe... 

Foto da mui premiada eborense Helena Margarida de Sousa

https://mentcapto.blogspot.pt/2018/05/apita-o-comboio-regresso-ao-futuro.html

quarta-feira, 4 de abril de 2018

497- O MORTO - SMALL STORY, SHORT STORIES.


Pendurado da árvore despida, uma grande e velha oliveira, o morto parecia um gato-pingado oscilando ligeiramente sobre os arbustos do chão, o corpo suspenso empurrado pela brisa da manhã, fácies de cor amarelada, colarinho da camisa sujo, sujíssimo, a carne viva sob a pele do pescoço arrepanhada e que um arame arrepiava ameaçando degolá-lo, pouco sangue, os atacadores desatados num dos sapatos, a fralda da camisa solta, pendentes as calças devido à magreza que nem um cinto no último furo segurava.

Ao principio todos nós o julgámos mijado e nos interrogámos se se teria urinado de medo ou de arrependimento no último minuto, não sei se foi o Abel ou o Rosado que me deu uma cotovelada a fim de escutar os crescidos à nossa volta, afinal parece que não era mijadela, seria o efeito molhado do estertor da morte, o reflexo do prazer do último instante, ouvimos e entreolhámo-nos, prazer, prazer final, êxtase, clímax, parece que era coisa comum aos enforcados, mas como aceitar aquele paradoxo que se nos oferecia ? Morte e prazer ? Nem poucos anos mais tarde, vendo expectante o “Império dos Sentidos” * consegui entender o prazer da morte. Prazer macabro, masoquismo, egoísmo, sadismo, sinal do perdão de Deus ?

Àquela hora não seria de estranhar cada vez mais gente em redor dum morto que ninguém podia “despendurar” sem a chegada da polícia, dos bombeiros, do médico legista, das autoridades habituais em casos tais e se já havia grupos debandando, satisfeitos ou saturados do espectáculo, outros iam chegando, ávidos de satisfazer uma curiosidade mórbida e ruidosa, nunca me apercebera de tanto sururu em volta de um morto, tivesse ele adivinhado e provavelmente não se teria matado ou teria procurado lugar mais recatado, embora este, convenhamos, estava ali mesmo à mão, a três passinhos da saída da cidade, um percurso longo poderia conduzir a mudança de opinião, o pior é quando um homem se põe a pensar, ali não, foi decidir e pendurar, ninguém muda de opinião em três passinhos e no sitio ideal, espaçoso, largo, grandes intervalos entre as árvores onde bolsar todo o ódio à vida, aos vivos.


A gaiatagem da escola vinha aos magotes ver o sacrifício, ou a redenção, nem Cristo tivera decerto tanto espectador, sim também era Páscoa, ou ainda era Páscoa, o Abel alegou ir comprar amêndoas e pirou-se, eu fiquei ali especado, meditabundo, o Rosado puxou duma maçã verde e deitou-lhe o dente, era sumarenta, ouvi-o falar com uma miúda da escola mas não percebi o que dissera no meio de todo aquele chinfrim, só ouvi a resposta dela:

- Ó Rosado, tás parvo ou quê, que conversa mais esquisita para uma ocasião destas.

Ouvi mas não entendi, acabei por desandar, aliás desandámos todos enxotados pela polícia, bombeiros e maqueiros, o formigueiro desmanchou-se, havia que dar paz ao morto e desde aí até hoje passaram-se quarenta anos, mais, decerto mais, eu acabava de almoçar e ao trincar uma maçã verdinha, sumarenta, digo para a Luisinha:

- Uma vez olhava um morto, um desgraçado que se enforcara e a meu lado um tipo comia uma maçã destas com toda a descontracção.

- O Rosado ! Atalhou-me ela num repente.

- Sim ! Como sabias ? Como sabes ?

- Pediu-me namoro nesse dia enquanto víamos um enforcado.

- E tu ?! Estavas lá ???!!!

- Disse-lhe que tivesse juízo, que respeitasse o morto, que acabasse de comer a maçã e que não se babasse. Claro que estava, estava eu e a cidade inteira, se não estava parecia.

Não me recordo tê-la visto, nem a conhecia, viria a conhecê-la somente passados uns seis meses nas festas do Bairro Entre as Vinhas, hoje Senhora da Saúde, uma alegria.



*   " Império dos Sentidos "  https://www.youtube.com/watch?v=2N_au-bKCTU

segunda-feira, 2 de abril de 2018

496 - PÁSCOA - SMALL STORY, SHORT STORIES


Esta é uma história de Páscoa, mas é também uma história verídica. Verdade que terá já a provecta idade de cinquenta anos, ou perto disso, porém não será menos vera. Ao certo só lembro ter sido na Páscoa, num dia quente, radiante de sol, uma segunda-feira, como hoje, mas dos meados da década de 70, e a esta distância sou incapaz de precisar com exactidão, lembro somente que o 25 de Abril não tinha inda ocorrido, se tivesse lembrar-me-ia pois desde aí o país passou a andar em alvoroço e todas as liberdades à solta, consentidas, usadas e abusadas.

Portanto ponto assente, naquela tarde de segunda-feira usou-se e abusou-se da liberdade que ainda nem havia, talvez o tenham feito com anuência, com consentimento, a liberdade exige algo mais que naquele dia ninguém tinha, ninguém teve, e todos pisaram essa linha ténue entre o eu e o outro que o 25 de Abril marcou, delineou, gritou, e grita, grito a que todos fizeram e fazem orelhas moucas.

Mas a intenção desta história não é a de pregar aos peixinhos, mais a mais sermões já ninguém os ouve, e naquela tarde eu procurara sossego, levara a Micas comigo numa Casal K181,uma mota bonita e robusta que adaptara a meu gosto e deitara no meio dos mesmos arbustos em que nos acoitámos e ficámos pensando na culpa, na penitência, na absolvição, morte e ressurreição, comendo carne claro, era a segunda-feira do borrego bolas e tradição é tradição, é para se cumprir, mais a mais nenhum dos dois berrou, não fosse a carne a maior tentação de todos nós.

Estávamos nisto, falando, comendo e retoiçando quando vimos a uns cem ou cento e cinquenta metros um grupo indistinto aproximando-se. Baixámo-nos mais ainda e ficámos à coca. Ela era bonita, de cara e de corpo, tão bonita quão a A.P.B. e espigada para a idade, digo como se diria na época, boa, uma bomba, uma mulheraça, boa como o milho, pernas altas, peito cheio, e linda, sorridente, como quem tem a vida toda pela frente, confiante, e também se chamava Ana.

Devíamos andar todos entre os dezasseis e os dezanove, vinte, não mais, não o creio, ela era única, viva, vivaça, tal qual a A.P.B. sei já o ter dito mas é importante frisar quanta alegria havia naquela vida, naquele corpo, espírito, mente. E eles, oito ou nove, ou mais, não eram muito diferentes dela, aliás notava-se à distância e em todo o grupo o deslumbramento que na altura eu entendi mal e hoje os direi fascinados pela descoberta da sensualidade, da sexualidade, do sexo, andavam feromonas pelo ar e a testosterona fez daquela tarde uma loucura.
               
(1)
Vi-os, de longe mas vi-os, melhor será dizer vimo-los, nada fizemos por isso mas vimo-los, inadvertidamente deixaram-se ver, e quando demos por eles estavam possuídos de uma alienação insensata, descontrolada, irreflectida, estavam todos endoidecidos, tudo aquilo era demais, desinteressámo-nos, era demasiado até para a nossa ideia de amor, mesmo a de amor livre como ficou conhecida essa época que então se iniciava por cá e assentava num slogan curioso, make love not war (1) oriundo do movimento flower power, pelo que eu e a Mica nos virámos um para o outro ignorando o agreste e insensato mundo que nos envolvia.

Depois fiz a tropa, mobilizações, desterros, abriladas, contra abriladas, e só voltei a ouvir falar naqueles fulanos e naquela Ana passados muitos anos. Casara com um deles, não sei qual o critério seguido, ou se houve critério, ou ordem judicial, nem tão pouco se essa ordem terá caído sobre o primeiro se sobre o último, aquilo foram todos à vez, a cena parecera-me a duma cadela no cio rodeada de cães famintos, ou se de entre todos ela escolhera o que amava, não deixa de ser igualmente uma hipótese válida.


Não foram felizes, sei que não foram embora não vos saiba dizer por quê. No máximo posso conjecturar, ele teve que gramar mas não aceitou uma mulher que foi de todos, cagou-se na tolerância, no amor livre, parece que em casa lhe batia, nunca lhe fez filhos. Ela perdeu o sorriso, a alegria de viver, o brilho dos olhos, e por muito amor que lhe tivesse certamente e somente isso não a preencheria.

Tudo isto se passou há quase cinquenta anos, ela matou-se há vinte, ou trinta, não sei precisar, toda a história me ficou sempre atravessada na garganta como uma espinha, fui incapaz de a engolir, há verdades que nos mutilam, e desde então, cada segunda-feira de Páscoa é para mim um martírio.

Houve culpa mas não houve perdão, ao invés houve castigo, ela morreu, matou-se, talvez tenha havido crime, crime moral, crime psíquico. Quer a matilha quer o moralista que destruiu Ana continuam cá, estão entre nós, vivos e bem vivos, este último desnudando-se na protecção da sua casa frente às alunas da UE no outro lado da rua, um exibicionista, um valente.

Não sei onde querem que o país vá ou chegue com esta gente, com gente desta…






(1) Panfleto largamente espalhado pela PIDE em 1973 numa manobra de contra-informação e contrariando um idêntico, e original, oriundo dos USA, versando a guerra do Vietnam (e todas as guerras) e dizendo algo como:  "MAKE LOVE NOT WAR" parecendo a mesma coisa, não o era, reparem bem.

sexta-feira, 30 de março de 2018

495 - O HOMEM PÕE MAS É DEUS QUEM DISPÕE

               Resultado de imagem para ENTERRADO DESENHO HUMOR

Morreu, coitado do Joaquim,

Deus o trouxe e o levou,
a terra lhe seja leve,
e sobre a campa um ramo de alecrim.

Como qualquer um pensou,
mas pensou só no haver e no deve,
e nunca se atrasou nem descuidou,
a César o que é de César.

Pensou também que era gente,
mas não era,
nunca passou dum prepotente,
não fica fazendo falta,
nem deixa saudades,
pena não ter aqui a gaita,
p’ra fazer umas habilidades.

Mas se houver justiça no céu,
eu acredito em todas as trindades,
Deus o meterá a canto escuro como breu,
e o nosso amigo Camões,
ele merece coitado,
não deixará de levar valente apertão nos…
era má rês o amado.
                     Imagem relacionada

quinta-feira, 29 de março de 2018

O QUADRO, SMALL STORY, SHORT STORIES ...

Isto sim é um corpo são e uns braços bem desenhados.

Estão vendo esse quadro em baixo, não esta foto encimando o texto mas a pintura em acrílico de tons cinzentos ? Inda que prenuncie ou assinale um momento feliz, no-lo diz a descontracção do modelo, o seu sorriso maroto, misterioso e a pose abandonada a si mesma, confiante, satisfeita, sendo óbvio que se não trata de um retrato a preto e branco, é uma pintura acrílica de tom acinzentado, 70 x 100, tem uma história, é por essa história que a guardo e a tenho exposta onde bem a veja mal entre na salinha que faz de escritório, não para que a relembre sempre a ela, mas para que não me esqueça de mim. O pintor há muito o olvidei, ele que nem a obra assinou e de quem somente recordo o nome e o parentesco.

Mas olhai bem a pintura, que vedes nela ? Que conseguis de extraordinário observar nela ? Que pensamentos suscita em vós ? Que mais conseguiram ver ? Que vos diz o vosso olhar ? Atrever-se-iam a uma observação crítica por escrito ?

Nada contra, podeis fazê-lo, mas desde já vos aviso que, para além do que nela vejais ou encontreis, nela pintura, o mais importante, o motivo pelo qual a guardo e exponho não está lá, pelo menos não está visível, inda que seja muito mais gritante que a distorção dos cânones ou a facada vitruviana na divina proporção e que os áureos braços deixam ver, especialmente o esquerdo dela, dessa feliz modelo e momento o qual, a ser projectado p’la nossa mente com base no que nos é dado perceber por certo nos mostraria um braço com dois metros de comprimento, se não mais ainda, ora vejam bem, voltai a olhar e observai de novo aquele braço esquerdo, tenho ou não tenho razão no que vos digo ? Terá sido por isso que o pintor não assinou a obra ?

E porque terá sido que a comprei com tão ou apesar de tão visível defeito, aliás a primeira coisa que nele notei e calei ?

Bem, é aqui que devo confessar-vos não ter comprado o quadro quer pela excentricidade do erro quer pelo amor, carinho e satisfação nele visíveis, não adquiri o quadro pelo quadro, comprei-o porque precisava armar-me, estava a armar, a armar aos cágados, e em boa hora o fiz pois os meus objectivos foram atingidos, e nem foi mui difícil ! O preço ? Um quadro que ninguém quereria mas do qual não me desfaço não tem preço, lembra-me a minha própria prosápia, lembra-ma em todos os seus sentidos e recorda-me que naquele dia me armei em cagão, cagão de cagança, me armei em maniento.

O facto de ter atingido o objectivo pretendido, impressionar a mesa e em especial alguém que nela também se encontrava pelo preço de um quadro passa para segundo plano, o beneficio alcançado foi de longe muito superior, fechei um bom negócio embora muito me pese na consciência essa minha atitude de manobrista, de manipulador, mas também de novo-rico, de pato-bravo.

A cultura devia ter-se sentido ofendida mas ela não fala, ai de mim se ela falasse, ai do que me diria quanto a esse dia, esse dia onze de Junho do ano da graça de dois mil e quatro, já lá vão catorze anos, catorze anos em que aprendi muito mas não me isentam da merda que fiz. Era um dia de festa, cem ou duzentos convivas comemoravam num almoço uma qualquer vitória ou aniversário da CHC no restaurante Páteo Alentejano* e entre essas duzentas pessoas estaria alguém mais parvo que eu e a quem dei a volta com a minha erudição, erudição e um quadro para a história a que poderia dar o nome de “Menina dos Xico-Espertos” ou dos Xico-Parvos acudiu-me agora à mente, a menina essa tem arcaboiço para nos meter a todos debaixo dum só braço, não sei quem será ela, mas ele sei, é o Miguel Araújo de quem nunca mais ouvi falar e que nunca mais vi e nem reconheceria passados todos estes anos, espero que pinte agora muito melhor do que pintava. A levantar o cheque foi ele bom, lépido, lesto, e se um dia vier a negar a autoria do quadro este tem entalado no verso, no caixilho de madeira o extracto bancário respectivo.

Palavra que lamento não lhe lembrar a cara, não lembro a cara mas lembro esta história, ambas recordações caricatas, ele por ser filho de artista, eu por me ter armado em artista e armado aos cágados.

       De acordo com o novo AO teremos todos armado aos cagados, no mínimo todos teremos assim ficado nesta verídica mas curiosa historieta, cagados …
      
ATENÇÃO !!!! Procura-se morta ou viva, dão-se alvissaras consideráveis a quem der indicações precisas e verdadeiras sobre a sua identificação e / ou paradeiro actual.


quarta-feira, 28 de março de 2018

MÃE, MEMÓRIAS MANUSCRITAS DE UM SOLDADO DESCONHECIDO *

               

MÃE *


Sim era uma Berliet, perdida no Namibe,

entre Xangongo e Ondjiva, ou Ondijiva,

sim, estava ali o camião,

nem à tua nem à minha nem à nossa espera,

mas estava ali, jazia ali, parado, a jeito.

 

No ar areias rodopiavam

folhas, paus, pequenas pedras,

como bátegas de chuva fustigando-nos,

chicoteando-nos o rosto.

 

Semicerrei os olhos,

avancei às escuras, ás cegas,

o sol teimando, vencido,

acendendo chispas nesse névoa vermelha,

traiçoeira, arenosa.

 

Ondas de pressão cortando os sons e

no silêncio do tumulto,

gritos mudos de aflitos, ecos de trovoadas e

pairando sobre as nossas cabeças,

espadas,

empurrando-nos contra a parede.

 

Peguei em ti,

recostei-te contra o rodado da Berliet,

passei o braço pelos teus ombros,

reconfortei-te, enganei-te,

os teus últimos minutos foram mentira piedosa,

contigo gritando apavorado,

espantado com a brevidade da vida.

 

Bem clamaste por ela, e p’la mãezinha mas,

o inferno era ali e nem uma nem outra te atendeu,

nenhuma estava, estava eu, tu lembraste a Fátima,

e a mãezinha.

 

Sim, eu farei por ela, sim dir-lhe-ei quanto a amavas,

as amavas,

sossega,

sossegaste.

 

Arfavas ao  beijar-te a testa,

abracei-te, apertei-te contra mim,

o teu corpo de cera quente ainda,

lembrando-me promessas e velas num altar,

e enquanto o barulho surdo da refrega emudecia,

tu gelavas,

calavas-te e gelavas.

 

Depois fechei-te os olhos,

para que não visses a natureza do homem,

a Berliet tombada,

os destroços em redor,

o adeus dos camaradas,

e chorei…


Humberto Ventura Palma Baião in manuscrito de "MEMÓRIAS DE UM SOLDADO  DESCONHECIDO", Évora, 28 de Março do ano da graça de 2018                   

 








terça-feira, 27 de março de 2018

JOSÉ CARDOSO PIRES, A NEW SMALL STORY


JOSÉ CARDOSO PIRES, novamente ele. Já tínhamos de Vergílio Ferreira a “Conta Corrente”, a “Conta Corrente Nova Série” e os “Cadernos do Invisível”, ou de Saramago “Os Cadernos de Lanzarote”, obras indo além das suas, obras onde é possível, ou quase, dialogar com os autores, compreender melhor a sua obra, as suas razões, o seu caracter, a sua persona.

Era isso que não tínhamos de J. Cardoso Pires, mas a D. Quixote se encarregou de compilar. “Dispersos”, uma colectânea que se estenderá por uma ou duas dezenas de volumes e reunirá textos ou contribuições deste autor ao longo da sua vida, dados à estampa prefaciando obras de amigos, catálogos de exposições, textos dispersos por jornais, suplementos literários e revistas. Enfim, contributos vários de J. Cardoso Pires através dos quais melhor se nos dá a conhecer e que versarão sobre literatura, liberdade, ditadura, artes, desporto, contos, crónicas, cinema, reportagens, diversões e o que mais se verá.
  
O primeiro texto deste volume versará sobre literatura e intitula-se “A Outra Tendência”, datado de 1957 e publicado no Diário Ilustrado poderia ter sido escrito hoje mesmo… O segundo, “ A Estratégia do Requiem” é uma preciosidade que não quero tirar-vos da boca, leiam, comprem e confirmem por vós mesmos. Para os incondicionais do autor e da sua obra uma pérola, para os restantes filigrana de literatura do mestre, inda que duma forma avulsa. À incontornável Fonte de Letras,  * que me deu a conhecer esta obra e este projecto, o meu muito obrigado. 




segunda-feira, 26 de março de 2018

" SHALOM ", SMALL STORY, SHORT STORIES ...


Há horas de sorte, há horas de sorte, não se cansava de repetir o velho soldado por trás do balcão do quiosque agora restaurado, renovado, a que o restabelecimento da circulação ferroviária local e regional dera de novo vida. Mais uns anos e toda a Europa estaria novamente reconstruida.

“Casa Francesa”, assim se podia ler numa tabuleta manual amorosamente pintada e colocada sobre a última prateleira. Tabacos, cigarrilhas, cachimbos, quinquilharia diversa, almanaques, magazines, rebuçados de menta, chupa chupas de açúcar e mel, revistas, jornais, maçãs caramelizadas, amendoins, tremoços, gelados, brinquedos, canetas, óculos de sol, isqueiros e lotarias.

- Sorte na vida, azar no jogo, está em branco meu caro amigo, lixo ?

e ainda não acabara a frase e já a cautela, amarrotada entre as mãos era chutada ao cesto com indisfarçada displicência como coisa inútil.

- Shalom para si ! Nem a terminação ?

- Shalom ! Nem a terminação meu caro amigo, tente de novo esta semana, faça favor de escolher um número.

- É sempre o mesmo, levo o mesmo.

E lá abalou o judeu, apressado e direitinho à Gare de L’Orient após guardar ciosamente a nova cautela na carteira.

De um dia para o outro a vida do velho soldado deu uma volta de cento e oitenta graus, derrubou o quiosque e no seu lugar construiu uma vivenda de dois andares, loja por baixo, a nova “Casa Francesa”. Os miúdos, ranhosos, passaram a ter ama, a andar bem vestidos e apresentáveis, madame Amélie passou a ter criada, o bem-estar da família Poulain melhorava na razão directa das dificuldades atravessadas pelos Aharon Cohen, mau grado toda a recuperação do pós guerra.

À medida que os três filhos do velho soldado Poulain atingiam a maioridade a cada um deles montara um negócio, ao último foi dada a “Casa Francesa”, agora remodelada, maior, mais ampla, muito mais apresentável, confortável e rentável. Constou que o velho Poulain teria tido a sorte d acertar na lotaria, ele que a vendia e nela também jogava. Dizia-se. Soava-se.

A verdade porém era bem mais prosaica e, umas cinco décadas depois, num dia em que os velhos se juntaram ao sol no “Jardin du Paradis” atrevi-me, antes de avançar com a dama no xadrez do tabuleiro, a perguntar ao judeu Aharon se ele sempre tinha jogado na lotaria com o mesmo número, como me queria parecer.

- E ainda jogo, toda a vida tenho jogado. Respondeu-me ele sem tirar o olho das pedras.

- Não era o 0260601915 ? Não é esse ?

- É precisamente esse ! Como é que o meu amigo sabe ?

- Fácil, tirando os zeros é exactamente a data de nascimento do meu saudoso pai, além disso é o número que há uns anos trouxe a sorte ao Poulain, portanto foi fácil decorá-lo.

O judeu levantou-se de um salto e saiu fungando.

Nem Shalom me disse.