quarta-feira, 17 de maio de 2017

431 - OS 4 MAGNIFICOS DE MOUNTAIN VIEW ...


Mais por curiosidade do que por quaisquer outros motivos, passado algum tempo após ter iniciado este blogue, anexei-lhe duas aplicações que poderão observar na margem direita do dito cujo e que inicialmente me indicavam na hora e sem falhas a proveniência dos meus leitores. Passada a satisfação inicial, essa particularidade infalível das ditas aplicações permitir-me-ia dar-me conta das visitas de alguns dos meus amigos ao blogue e conhecer em simultâneo a cidade onde vivem. De salientar que alguns desses amigos são veros amigos e gente conhecida, gente daqui, de Évora, gente que emigrou, com quem inclusive troco correspondência electrónica, geralmente mensagens breves e curtas no Hotmail e no Facebook.

A precisão matemática dessas aplicações deu-me uma melhor noção dos lugares ocupados pela diáspora portuguesa, e mais que isso, a noção da deslocação de alguns dos seus membros, e também ou provavelmente apenas o aparecimento de um ou de mais uns leitores. Aos eborenses que acompanho, e em especial aos que não se fixaram, antes se tornaram nómadas da diáspora, observo os movimentos, muitas vezes sabendo de quem se trata, um ou outro conhecido, vagueando por exemplo de Itália para a Europa Central, República Checa, ou então para a GB e Escócia, pois até em viagem de férias e turismo acompanhei o percurso d'alguns, pela França, Bélgica, Holanda, movimentações igualmente assinaladas no Facebook pois os recentes telemóveis captam e informam, dispensando ordens do dono, os passos dados e os lugares visitados, no dia, na hora, e no segundo em que o fazem. Mercê desta modernice drones armados já têm "despachado" terroristas cujo número é conhecido e se esquecem de desligar o telemóvel ou esta aplicação...

Essas duas aplicações no meu blogue regozijavam-me e distraíam-me, informavam-me, conjugadas com o serviço de estatística do próprio blogue, dando-me uma panorâmica bastante completa do universo dos meus leitores a ponto de poder afirmar com exactidão onde se encontram e sobretudo onde se concentram. Estou em condições de vos afirmar e garantir que na Lua e em Marte p’ra grande tristeza minha e por enquanto não possuo ainda nenhum, mas talvez não demore…

Naturalmente também terá havido quem tenha vindo embater no blogue por acidente ou engano, daí que só contabilize as visitas que se repetem uma e outra vez denunciando alguma constância, uma procura propositada e não aleatória, casuística ou errónea. Contudo paulatinamente o número de visitas e de lugares de onde são oriundas tem vindo a aumentar, se considerarmos ser a língua portuguesa uma língua difícil para estranhos, embora seja a quinta língua mais falada do mundo, considerando a especificidade do blogue, cuja leitura não é para todos pois é algo difícil, essa persistência e constância da procura aliadas ao aumento de leitores certamente me regozija ainda que não seja esse o fito deste texto.

Na realidade devido ao aumento do volume de visitas as ditas aplicações perderam alguma da sua eficiência, não tanto o globo, no qual é necessário clicar para que entre em funcionamento, mas especialmente a outra aplicação, que além da falta de instantaneidade e precisão que agora acusa, tem-me contudo dado a conhecer a perda de leitores da diáspora, concluo ter a instabilidade ultimamente registada no mundo afectado sobremaneira as suas vidas. Ou isso ou a merda do blogue a alguns não cativa, também tenho que ver e aceitar a possibilidade oferecida por esse prisma. E assim chegamos ao cerne deste texto, nem mais nem menos que quatro leitores muito especiais que há muito me seguem, ou perseguem, e de cuja perseguição há muito me apercebera. Tenho em Mountain View, Califórnia, USA, quatro servidores fiéis, e quando falo em servidores refiro-me a computadores, servidores esses que só numa condição me acompanham e visitam, condição que religiosamente há anos cumprem com inusitada eficácia.

Não fazem visitas aleatórias, antes a sua curiosidade é despoletada se e quando mexo no blogue, exclusivamente quando mexo no blogue, seja para adicionar um novo texto seja para corrigir um erro nalgum outro, haja mexida nos textos e eles quatro aparecerão quase de imediato e todos de uma vez. Hoje quis, deu-me vontade de conhecer, saber que cidade é essa, saber mais sobre essa cidade de  Mountain View, e nã é que tive uma surpresa ?

Há muito me apercebera ter ali não quatro leitores mas quatro controladores, quatro perseguidores, foi para mim uma enorme surpresa ter-me apercebido que Mountain View é a sede da Google, logo o pensamento me derivou para este simples facto, a Google espia-me, mas para quem ? A mando de quem ? Porquê ? Quando na brincadeira acusamos o Facebook, podem incluir a Google, de saberem mais sobre nós que nós próprios não estamos a brincar, “eles” pelo menos não estão, a tecnologia e os modernos filtros e algoritmos permitem-lhes espiar e filtrar tudo e todos, temos tido provas disso, até com os telemóveis e os televisores, que nos espiam mesmo que os desliguemos.

Mas por quê eu ? Que mal fiz ? Sou terrorista ? Não, não sou, mas há perto de quinze anos integrei uma missão humanitária inserido numa ONG internacional, numa missão de paz em visita ao Iraque precisamente quando a operação “Choque e Terror” eclodira, operação que parcialmente vi e vivi e acerca da qual na altura escrevi um livro. Tal foi o bastante para ser colocado na lista negra, ou foi por isso ou foi pelo meu papel em África há quarenta anos, mas neste último caso duvido, porém não brinco, vejam com os próprios olhos, cada vez que meter um texto novo no blogue ou simplesmente lhe mexer aparecerão seguidinhos e automaticamente as quatro visitinhas dos quatro magníficos de Moutntain View !


- Olá !! Estão aí ????? Isto é p’ra vocês !! Beijinhosssssss !!



No dia seguinte um amigo remeteu-me este link : 
http://tempocontado.blogspot.pt/2010/01/mountain-view-causa.html

domingo, 14 de maio de 2017

430 - OS ALGORITMOS E AS POSSIBILIDADES...*

Não que tenha alguma influência, que não tem, nada do que possamos dizer teve, tem ou alguma vez terá a mínima influência, contudo quem numa mesa de café segura o fio aleatório que as conversas tomam qual fio de Ariadne, caindo matemática e regularmente no centro do círculo quadrado que a mesa representa, tal qual nela caem as bicas, as minis e os tremoços ou as ervilhanas ?

Dizer que a coisa este ano ou desta vez vai ser aguerrida como alvitrou o Maiorgas, não fosse ele de Alvito, é coisa que já nem pega, tanto que ninguém na mesa o levou a sério mantendo continuidade a candente questão do tetra ou a do Sobral, não esse em que estão pensando mas o genro do Guilhermino que é natural de Sobral da Adiça e foi contratado pelo Marrazes para a próxima época, tendo-se deslocado este fim-de-semana a Leiria para cheirar o ambiente e arranjar quarto.

Mas a conversa pegou e continuou, apesar de todos os candidatos apresentarem uma promissora e confusa imagem na bola de cristal em que a endiabrada da Ada, que nem é próspera nem endinheirada, antes natural da aldeia de Endiabrada no concelho de Aljezur vê ou imagina ver quando a olha, quando olha a bola à luz singela de uma candeia de azeite como havia na sua terreola. E sendo verdade o que ela afirma nem valeria a pena o trabalho e o gasto com estas eleições, esclareço que me refiro a este nosso concelho, onde quem está está, ou ficará, e quem vai vai, ou seguirá.

Mais pela Ada que pela conversa a coisa pegou, pegou mas não chegou a arder, quero dizer a aquecer, a primeira a pronunciar-se foi naturalmente ela, Ada, defendendo o seu ponto de vista, isto é defendendo o que a vista lhe alcança quando se põe, tal como há muitos anos víamos os fotógrafos à la minute na entrada do jardim público, espreitando secretos e misteriosos segredos debaixo duma mantilha preta, a fim de travarem a mínima iluminação externa capaz de lhes estragar ou alterar o resultado do banho de sulfeto de prata, assim faz a Ada debruçada sobre a bola de cristal, chegando a trazê-la para o café corroborando o que há muitos dias vem afirmando à boca cheia.

Por duas ou três vezes me calhou ser convidado a meter a cabeça debaixo do improvisado xaile da Ada e a espreitar o secreto futuro que ela apregoa, mas em boa verdade vos confesso, a única coisa que lembro é o inesquecível e frescatível perfume dela e as cores dos sutiãs que em cada um desses dias levava, quanto ao resto a bola de cristal foi sempre para mim um misterioso segredo e um mistério secretissímo. No que respeita às cores o fúxia teve sempre a minha preferência, o que há muito é do conhecimento geral.

E quanto a preferências as da Ada recaem sobre o candidato do PSD, segundo a ela o único que satisfaria os pontos de vista por si incansavelmente sublinhados, é um homem jovem, culto, bem-parecido, com postura e experiente, mas com o burburinho que se levantou mal ela falou, fiquei sem saber se a mesa estava contra ela, contra a suposta e por ela não suficientemente explicada ou justificada experiência, ou contra ele, visto ter havido quem alvitrasse, sim esse mesmo, o tipo de Alvito, o Maiorgas, ao alegar que pela primeira vez em mais de vinte anos esse partido apresentava um candidato a sério e não um qualquer para inglês ver, como era habitual e ao que a cidade já se tinha habituado, isto é ao que a cidade se terá habituado tanto que nunca levou esses candidatos a sério, facto que iria custar muitos votos a este, mesmo que os merecesse, contudo estava capaz de apostar em como este novel candidato obteria o melhor score das últimas décadas. Porém será mais um daqueles casos em que pagará o justo pelo pecador adiantou.

Ele não queria e bem o escondia mas toda a gente sabia, o Maiorgas era xuxa e envergonhava-se disso, daí que escondesse as suas preferências mas a malta é manhosa e conhecendo-o há bué de anos, nunca esqueceu nem lhe perdoou os dias e os fins-de-semana em que se manteve hirto e firme ao portão do Estabelecimento Prisional de Évora, facto com que de vez em quando alguns o confrontam e pelo qual ainda é gozado. Não era o caso agora em que ele perdeu a vergonha e veio em defesa da sua dama, mas a dama dele não passa de ilustre desconhecida para o resto do pessoal em volta desta mesa e decidido a afiar as facas, preferindo centrar as atenções no passado recente do partido de que a ilustre dama é candidata.

Não faltou quem de imediato deitasse achas para a fogueira, mas de modo generalizado e concordante a opinião maioritária era a de que o Zé do Cano só tinha feito trampa e esta desgraçada agora é que iria pagar as favas. Só fez caquinha e não foi pouca avançou a Ermengarda, doze anos imaginem, o que esse partido ganhou com isso é que agora durante os próximos vinte e quatro não vai ter lugar no poleiro, pelo menos enquanto as pessoas se lembrarem da muita conversa fiada e do muito mais que ficou por fazer ou foi mal feito, os compadrios e a promiscuidade entre amigos e cargos, ou as urbanizações que ninguém entende. Ela está desempenhando o papel de idiota útil aventou o Sobral sem gaguejar, calhando já os partidos decidiram p’ra quem ficará Évora e ela não passa dum verbo de encher p’ra apaludir as iludências ou iludir as aparências, seja como for ela agora é que vai pagar as favas da merda que o outro fez, lixou as espectativas de alternativa a toda a gente e agora não se admire se o Zé Povinho lhe fechar as possibilidades de alternância...

Alto aí e pára o baile, ponto de ordem à mesa disse eu impondo-me, nem a senhora é uma idiota útil nem é parvinha como parecem estar a fazê-la, ainda há dias confrontei o meu amigo Romão precisamente com essa questão e a resposta dele foi pronta, ela não é parvinha nenhuma nem está fazendo um frete a ninguém nem sacrifício nenhum, ela é esperta e sabe ao que vai, agora aguenta, e depois espera a vez dela, a presidência da CCDRA, ou da D.R. Educação do Alentejo, ou da Direcção Regional da Cultura, ou do IEFP, aposto que aceitará quaisquer nomeações, não há almoços grátis, ela é esperta não é tolinha nenhuma rematou ele, e tendo dito isto calou-se, como se já tivesse falado demais.

Enquanto emborcámos mais um uísque e lhe disse para não contar comigo nesse tal almoço da efeméride de fim de curso cujo convite me trouxera dado o meu estado de saúde. Deixei cair na conversa isto é Portugal, ninguém leva a mal, não havemos nós de estar como estamos, ter chegado onde chegámos… De qualquer modo essa candidata vai ser lançada às feras, é um sacrifício que irá custar à bondosa senhora o score mais baixo do seu partido nos últimos anos, vai uma apostinha ?   

- E tu Januário, em quem apostarias rapaz ?
- Eu ? No vencedor pá !! Só aposto quando vejo dinheiro em caixa !!
- E já agora quanto a ti quem vai ganhar dizes-me ?

– Claro que digo, o Pinto de Sá, afinal é o único que está limpinho, puro, livre de todas as culpas, o único que podia fazer alguma coisa e não pode porque o preto e o Zé do Cano só lhe deixaram uma montanha de dívidas, não é de cá, nunca cá esteve, não tem culpas no cartório, se for inteligente e não abrir a boca, não disser nada e não fizer nada ganhará com maioria absoluta e averbará a maior vitória da sua vida e que ficará para a história.

Falas a sério ? Deixa-te de brincadeiras pá.

Nunca falei tão a sério, é dos livros que em caso de dúvidas ou incertezas o que a sociologia política nos ensina é o jogo eleitoral beneficiar quem detém o poder pois leva vantagem, é mais fácil conservar o poder que conquistá-lo, Pinto de Sá não precisa convencer quem já está convencido, basta-lhe não hostilizar ninguém para que não perca votos, com uma postura dessas antes ganhará mais alguns.

- E Évora ?

- Évora ? 
- Que tem Évora a ver com tudo isto ? Évora nem é para aqui chamada pá... 

              - Que interessa Évora ?


* Nota importante, todos os nomes deste texto são inventados não correspondendo a nenhuma realidade, circuntância ou pessoa. 

Pintura de Sónia Barreto (pormenor) Évora 2017

terça-feira, 25 de abril de 2017

429 - ALCÁCER-QUIBIR, DISSE O ASTRÓLOGO

  
Observo neste domingo ensolarado pela montra de vidro, antigo, biselado, o movimento na rua e, destacando-se entre os intervalos do ferro forjado, na orla do quadrado que a montra qual moldura desenha na parede deste vetusto prédio, os traços argênteos duma loura parecendo carregar sobre os ombros pesada melancolia, delineando-lhe a irregularidade dos passos num rumo apontando à solidão e em cuja projecção se atravessa uma florida mimosa atapetando de amarelo o chão por ela pisado mas que não pisa, pois chuta p’ra diante as flores, p’ra diante e para longe ficando eu pensando no meu recanto se aquela mulher loura carregando tanta tristeza, retirada, recolhida em si mesma, supondo eu ao ver-lhe vagamente no dedo uma aliança, se o fará por entretanto ter criado aversão ao casamento, não tendo eu contudo a certeza de ser ela casada ou não e a ser, se terá falhado esse vínculo cuja existência uma visível mágoa parece denunciar.

Mágoa espelhada numa carinha de anjo de rara beleza, uma beleza rara, daquelas capazes de conduzir à loucura o mais listo, uma loucura translúcida, das que se podem carregar sem que os demais dela dêem conta, dela loucura, não dela beleza, porque a beleza essa é elegíaca, insensata e extravagante de manifesta duplicidade, tanto nos fazendo meter para dentro como sair de nós mesmos, cada um de nós a seu modo inda que raramente imbuídos ou impelidos por um raio de luz que, professara um astrólogo, desde Alcácer-Quibir seria por alguém cavalgado numa manhã fantasmagórica de nevoeiro.

Porém quem nos surgiu e surge não passa nunca de cornaca, bufarinheiro, ou marinheiro, como com o último anacoreta aconteceu, o mesmo que se apresentou totalmente tatuado, roda de marear nas costas da mão direita e, na esquerda, compasso traçando firme um azimute certamente arrancado duma bússola, essa palavra esdrúxula, rumo que sob a luz trémula da incerteza torna duvidoso o caminho apontado a uma miragem e, quando já perto da margem, da orla, dissipado o nevoeiro o comandante avistou terra, algumas aves raras e uma estranha e florida ilha, acorreram a vê-la, interessados, em júbilo e em horda incessante toda a marinhagem, toda a canalha arrebanhada para as artes da nau em véspera anterior à partida por tavernas, albergues e bordéis e, entre todos eles nem um probo, antes e na generalidade cobaias, heróis uns mártires os outros, todavia a todos o mar, os ciclones, tornados, furacões e o escorbuto dava conta, levando-os a lento agonizar e profunda depressão.

Fundearam num extenso vale entre montanhas albergando o planalto aí existente uma vasta planície por onde deitaram correndo na sua sede de terra, tremendo, de pernas bambas, dolentes, inseguros e induzidos ainda pela dança dos balanços no mar, tendo reparado então que de terra todos quantos para eles acorriam dando as boas vindas estavam loucos, esfarrapados e esfomeados. Foi só nessa ocasião que a tripulação, em delírio e dando conta da sua própria demência reparou em toda aquela faixa de terra estéril, num lindo e florido jardim à beira mar plantado pelos andrajosos indígenas, entretidos há quarenta e três anos lançando ao mar nas noites de lua cheia e do alto das falésias os mortos purulentos de olhos cavados e línguas inchadas, a fim de poderem ver o mar levá-los como foice prateada nas mãos de ceifeira desastrada.

Alguém trouxera do navio uma ampulheta e duas clepsidras, ajeitando-as equilibradas na praia, sobre o cadáver dum cachalote em decomposição ao qual já tinham comido uma barbatana, assim calcularam o tempo, a hora, o dia, e, com o luar no auge estimaram estar a viver esse prodigioso momento numa terça feira, p’las zero horas do dia 25 de Abril daquela terra onde a diferença entre natureza e sociedade não chegara ainda, nem chegaria nunca, mas quem o sabia ?

E, enquanto na abóboda celeste a lua caminhava lentamente, em terra os loucos e os dementes festejavam sem saber o quê, lançando uns os foguetes e correndo os outros a apanhar as canas, das quais uma loura ensimesmada e receosa se ia desviando desde que se conhecera a si mesma, temente dum medo que agora não lograva evitar, esquecida da medicação, esquecida das consultas, recordando somente que a primeira cana a assustara mais do que ferira já lá iam quarenta e três anos, quarenta e três anos em que fugia a uma festa que não compreendia mas que perniciosa insensatez ano a ano replicava automática e irreflectidamente reproduzindo-a sem refutação,  agora sem graça por não haver quem saiba biselar um vidro ou construir uma janela em ferro forjado a cuja montra possamos sentar-nos observando através dum vidro antigo, trabalhado, biselado, o movimento da rua num qualquer domingo ensolarado.  


sexta-feira, 14 de abril de 2017

428 - POESIA OU PROSA, GOSTOS NÃO SE DISCUTEM ...


Gosto de poesia, contudo deixo desde já bem claro não ser ela a minha praia. Gosto de ler poesia, e se consigo entendê-la, não estou ainda à altura de a depurar, quanto mais de a elaborar duma forma perfeita, elegante, como a prosa que vou tentando e conseguindo umas vezes, outras nem tanto. A prosa sim, é a minha praia e a minha onda, adoro cavalgá-la e, sempre que posso, ou estou lendo ou escrevendo, entre uma e outra coisa venha o diabo e escolha.

Desde cedo a literatura me seduziu e acerca dela poderia dizer o que Sócrates nos disse falando para si mesmo, conhece-te a ti próprio, e eu, quanto mais sei de literatura mais concluo só saber que nada sei. Nunca tive ouvido para a música ou mãos para tocar viola, mas fico feliz com um livro à minha escolha ou com quatro folhas de papel e uma boa esferográfica, deslizando bem, correndo bem sobre o papel e me permita acompanhar as ideias sem que as perca. Falo da prosa claro, porque a poesia demora, tem uma maiêutica dificílima, a formatação demorada, é como uma gestação, é parida a custo, e aqui os cuidados serão antes não esquecer meter a tampa na caneta para que a tinta nunca seque no aparo.

Uma seca a poesia ? Eu não diria, alguma talvez, não a maioria, mas com a poesia chia mais fino, e o que menos conta será a rima. A poesia é do âmbito do transcendente, é uma subjectiva objectividade múltipla, como quem espreita um caleidoscópio ou se delicia com uma mandala. A poesia intima-nos, exige de nós muito mais que uma qualquer prosa, por vezes intimida-nos e tanto nos pode assustar como deslumbrar, comover ou convocar a raiva, a solidariedade, tanto quão a repulsa ou a rejeição.

E não faz isso a prosa ? Claro que faz, é evidente que faz, mas não o faz num verso, num soneto, num poema, numa estrofe, é esse o ponto fulcral da poesia, a prosa lida com descrições, explicações, narrativas, parágrafos, pontos finais e reticências até nos dar uma imagem, até que percebamos onde quer chegar, a poesia dá-nos imagens, atira-nos com imagens, convoca-nos ante uma imagem baseada em três palavras ou três linhas, confronta-nos com metáforas, toma, pensa, medita, desvenda, traduz, desenrasca-te, bastando uma palavra para nos exigir que saibamos ou tacitamente reconhecer que conhecemos todo um texto, todo um livro, toda uma história, trabalha num patamar diferente a poesia, num degrau mais elevado, não como o arame farpado e rasteiro que evita as vacas no lameiro, trabalha no arame, no limite, brinca connosco, faz malabarismos, ri-se de nós umas vezes elogiando-nos noutras e, nalgumas raras ocasiões condecora-nos.

A poesia não ensina, exige que saibamos, que conheçamos, mas depois, maravilha das maravilhas, torna-se cúmplice, de sentimentos, sensações, e confronta-nos com o que sabemos com o que julgamos saber, sobretudo com aquilo que ignoramos saber. Diria que a poesia nos convoca, nos convida e desafia a entrar e a desvendar o seu mundo imagético cuja diegese a partir desse momento reparte cumplicemente connosco, bandeirantes da sua geografia, aprendizes de feitiçaria, duendes numa floresta de gnomos e gigantes de um mundo nem liliputiano nem dos ciclopes onde se nos torna acelerada a pulsação, precisamente quando reclino a cabeça, fecho os olhos deixando-me transportar, viajar no espaço e no tempo, ou num abraço ternurento, outras vezes sobrevoando uns lábios sequiosos mergulho num corpo quente, abrasando, sendo então que em sobressalto acordo e corro a tomar um duche frio pois a sensibilidade da poesia afoga-me os sentidos num caldeirão em turbilhão, em lume quente, ebulição, fazendo que me sinta João Ratão rodeado de canibais famintos, dançando em transe em redor duma fogueira ameaçando cozer-me em lume brando mas, soltando um urro animal deselegante furto-me ao fantástico e fantasista erotismo sensual do amor poético cuja fantasia, enrolando-me, enleando-me, ameaça quebrar-me submisso ao fogo que ela mesma aviva com ervas de cheiro, rabos de lagartixa e folhas de ulmeiro, cujas fragrâncias me enovelam quixotescamente dentro das palavras que eu próprio murmuro.

E agora ? Agora, outro duche naturalmente …




quarta-feira, 12 de abril de 2017

427 - UMA CASA MILAGROSA * ..............................


Frei Baltazar estava satisfeito, vira-se livre da velha abadia que remontava ao tempo dos romanos, conseguira aproveitar todos os materiais ajudando-se a poupar para o muito ainda a gastar, a satisfação notava-se-lhe nas bochechas avermelhadas que as noviças adoravam repenicar, mas só quando tinham oportunidade e sempre que a irmã Blimunda, a madre superiora, não as estivesse observando.

Frei Bento, dando passinhos mais parecidos com saltinhos percorria o perímetro das obras, mãos cruzadas sobre a pança, impando de contentamento como só um abade sabe impar. Depois de quarenta longos anos conseguiram erguê-la, pô-la de pé, não sem que tenha tido que arrancar grandes exigências aos mesteirais, aos mestres e operários cujas vidas eram passadas ali, mas finalmente ali estava ela, solenemente erguida apontando aos céus numa prece ao divino Senhor.

De modo elegante tinham solucionado o problema das altas paredes, altas e estreitas, altas e finas, atreitas a tombar, mas em simultâneo a solução encontrada evitaria que caísse sobre elas o peso do tecto da cobertura, da abóboda à cúpula, da abside e deambulatório e do baptistério claro não o esqueçamos nem à sua importância.

Durante alguns dias houve festa na vila, arlequins, bobos, aedos, caçadores de faisão no braço, archeiros e cavaleiros, tocadores, todos e cada um no seu mister contribuíram com canções, músicas, habilidades e jogos para as festas daqueles dias de alegria, mas uma preocupação dominava alguns deles, depois de assentarem o tecto que seria da luminosa claridade que deveria preencher a casa de Deus ?

Naquelas finas, graciosas extensas e elegantes paredes teriam que ser rasgadas janelas, teria que ser aberto caminho à luz, mas como evitar que por elas entrasse também a inclemência do clima ?

Ainda a obra não estava completa e já Frei Bruno para ela conduzia as criancinhas na hora da catequese, o seu jeito para contar histórias era um tributo à tradição e à oralidade, tendo sido ele mesmo quem sugeriu ao mesteiral-mor aproveitar aquelas paredes e nelas pintar cenas da vida de cristo, do nascimento à morte, parábolas dos evangelhos, pinturas em cores vivas que o ajudassem na divulgação do exemplo de vida e da palavra de Deus. O mesteiral-mor anuiu num movimento do queixo e desandou, pois tinha que vigiar o trabalho dos canteiros vindos de Carrara e a quem fora entregue uma valiosa quantia para a feitura de uma dúzia de estátuas marmóreas.

Alguns dias depois, vendeu o mesteiral-mor ao mestre artesão da obra e como sendo sua, a ideia de pintarem nas paredes grandes painéis aludindo à vida, obra e exemplo do Senhor, pinturas alusivas aos dez mandamentos por exemplo, ao que o dito artesão, cofiando a barbicha, respondeu: Não poderia ser assim, pois as paredes teriam que ser rasgadas, abertas, inda não sabia como mas teriam, a fim de deixar entrar a luz.

Numa anterior conversa soubera esse artesão, de nome Geraldo, através do comerciante Nacodemo, terem em Itália, em Murano, perto de Veneza, o clã Barovier, uma antiga família de vidreiros, inventado o vidro plano e sobretudo o modo de lhe dar cores, que adicionavam ao vidro e o tornavam ligeiramente opaco mas alegre e lindamente colorido, pelo que em sua mente começou a brotar a ideia de rasgarem as paredes sim, mas preenchendo o espaço com esses vidros, painéis grandes desses vidros às cores, e matutava nisso quando frei Benedito se aproximou com um cesto de ovos assentes em palhinhas.

- Ovos de grifos frei Benedito ?

- Saiba vossa mercê que só após comidos saberá se sim se não, pois que os trouxe para com prazer os ofertar a vossa senhoria.

Quebrado o gelo teve o artesão oportunidade de dar conta ao frade dos seus pensamentos, das paredes rasgadas, do vidro de Murano, da hipótese de painéis coloridos taparem o espaço aberto e protegerem da inclemência do tempo mas permitindo a entrada de luz, podiam mesmo animar a nave com painéis de vidros aos quadrados, ou faixas de diversas cores, um vidro colorido ligeiramente opaco e lindo, tal vidro prestava-se a isso, que achava o bom frade da ideia ?

- E porque não construírem painéis com figuras, aproveitando a diversidade de cores e a habilidade de mestre Nicolau ? Ninguém corta vidro como ele ! Já que não podem pintar as paredes, pois se terão que ser rasgadas, então que não pintem, ao invés de pinturas criem-se desenhos, porque não ? Que pensa vossa senhoria desta minha humilde ideia ?

- Não está mal pensado não padre, os caixilhos vão ser um problema mas tudo se há-de resolver ! Porém, com a ajuda de Deus, nada haverá que mestre Bonifácio não consiga.

Dez anos depois desta conversa era inaugurada a nova catedral, lindas colunas sustentavam por dentro o peso da nave, no exterior os contrafortes, agora desferindo graciosos arcos a que chamaram arcobotantes, escoravam as esbeltas paredes lindamente guarnecidas de painéis coloridos, cada um deles versando um episódio da vida de Cristo, e, beleza das belezas, à medida que os viajantes se aproximavam do templo todos reparavam num enorme círculo encimando a frontaria e que depois de entrarem a todos deslumbrava.

Esse círculo permitia que o sol da manhã irrompesse pela nave, mas também a inundava das várias cores com que o vidro que o preenchia imitava uma rosa, uma mandala, o fundo de um caleidoscópio, coisa mais linda ! exclamavam todos, enquanto as criancinhas se quedavam embevecidas ante as histórias coloridas que as paredes contavam.


Uma menina de dez anos, Leonor de seu nome, com um cãozinho no colo, não descansou enquanto não viu com os seus olhos uma catedral perto de si, adorou, ela que tanto gostava de cores e de desenhar. 


*
https://www.google.pt/search?q=Catedral+medieval+de+Bruges&espv=2&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved=0ahUKEwiyz82_55_TAhVMkRQKHRKyAaQQsAQIIQ&biw=1024&bih=548#imgrc=mEdxPZ8znefqrM:

 Altar da Igreja dos Salesianos - Évora, onde o vitral tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitral, tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitrais, têm um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitral, tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
 Baptistério da Igreja dos Salesianos - Évora, onde o vitral tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural.