quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

223 - FAROL, BERLENGA GRANDE .........................


Naquele lado da ilha o sol batia menos, em compensação era mais protegido do vento e não sofríamos os salpicos da rebentação, contudo não era por isso que ela o escolhia, mas sim por ser mais abrigado de olhares vindos do farol, ainda que o velho Baltazar estivesse entretido lá no alto polindo-lhe e limpando-lhe lentes e mecanismos.

Deste lado poderíamos pescar e lançar as armadilhas para as lagostas sem o tormento ou a violência das vagas, e depois estender as toalhas turcas sob a “anta marinha”, como eu chamava brincando com ela àquela rocha, debaixo da qual nos deitávamos gozando o sol ou trabalhando para o bronze.

A bem dizer fugíramos da Estrela,* eu com direito a seis semanas de licenças acumuladas, que aproveitei para dar continuidade à convalescença e que vinham mesmo a matar, credo, lagarto, lagarto, lagarto, o diabo seja cego surdo e mudo, quero dizer vinham mesmo a calhar. Carmelinda aproveitara e metera férias, farta que estava do bulício da capital e mais ainda daquele hospital onde, dizia, era eu a única coisa interessante e que valia a pena, o que para o meu ego superava o beneficio de vinte sessões de terapia como devem calcular.

Por tudo isso a Berlenga grande era mais que um paraíso, aquele verão quente aconselhava-nos lonjura da capital e a deixar o caminho livre à revolução, que grassava como fogo em capim e cujo calor afogávamos com os vinhos de Colares e as caldeiradas do velho Baltazar.

Dez minutos depois de estendidas as toalhas no aconchego da “anta marinha” transformávamo-nos em verdadeiros “homens” das cavernas, dando largas aos instintos, e esquecendo as armadilhas das lagostas e os iscos nos anzóis encostávamos as canas, mais preocupados em não ir ao mar para não perdermos o lugar, sucumbindo à primeira dentada muito antes de sentados à mesa frente a uma açorda de camarão, uma feijoada ou cataplana de marisco.

Era eu quem normalmente o fazia, desfazendo-lhe com os dentes o lacinho do calção, olhos ardentes, tal qual um miúdo desembaraçando da prata um chocolate e impaciente por degustar o bombom.

 Bombons ou salgadinhos ! Que também apreciava, e ainda aprecio. Raramente esquecíamos as toalhas e uma cesta com caju, morangos, mousse de chocolate, cervejas frescas e chantilly, e uma laranja ou duas, ou clementinas, que ajudavam a tirar da boca outros sabores e odores antes de regressarmos.

Aquilo era mais que um reflexo inato para nós, bastava que um começasse a salivar p’ra esquecermos o sol, as armadilhas, o velho Baltazar e a mais elementar cautela, como se a ilha fosse só nossa e nós os únicos ao cimo da terra.

Às dentadinhas repartíamos os morangos, outras vezes eram barrados em mousse de chocolate ou chantilly e comidos como a cereja no topo do bolo, lembro-me de uma vez em que fui obrigado a tirar um com o dedo, enquanto embaraçados desenleávamos as linhas iscos e anzóis das canas que a ventania derribara.

Momentos que jamais serão esquecidos, sobretudo quando ela, juntando o indicador ao polegar e fazendo um anel me tirava do sério, passando os dedos por mim suavemente, deslizando, fazendo deslizar a mão levemente numa cadência delicada e conspícua que me desorganizava os neurónios e eu, c’o pensamento desalvorado, entornava as caixas dos doces e, atrapalhado, procurava os morangos com os dedos lambuzados, uns dias de mousse de chocolate, outros de chantilly, numa aflição, enquanto ao mesmo tempo os guizos trinavam nas canas acusando peixe, e o cordel retesava-se e relaxava nas armadilhas prenhes de marisco e nós moita carrasco, esquecidos de tudo, dos guizos, das armadilhas, da caldeirada, do almoço, do farol, do velho Baltazar e do tempo, entregues às delicias da sobremesa enquanto no transístor

- Última hora ! Operários soldados e camponeses cercam a Assembleia Constituinte !

Recordo vagamente ter balbuciado ainda qualquer coisa como

- Será um putsch da esquerda ou da direita ?

E a Carmelinda afobada com os doces entornados, com o morango perdido, com os guizos que não se calavam ou os cordéis das armadilhas que não paravam quietos

- Fogo não ligues !
- Não pares agora !
- Em frente porra !

- Que se fodam as esquerdas e as direitas, jurei a mim mesma que nada havia de me estragar estas férias caraças !

E quando eu, no pleno gozo de direitos adquiridos e por adquirir me preparava para lhe censurar a linguagem desbragada, senti repentina dentada na orelha e ela, muito meiga e muito terna sussurrando-me ao ouvido

- Eles que chamem o Vasco meu querido, porque a mim daqui ninguém me tira e agora não saio e desliga a merda do transístor que nem as horas quero saber férias são férias e

E nem acabou a frase, ofegante, compenetrada de que a minha convalescença fosse bem aproveitada e a recompensasse de tanto desvelo, nisto a língua no meu ouvido e o anel apertando-se numa cadência mecânica e certa, como o rátátá de uma metralhadora, ou o rude ttttrrrrrooouuu das pás de um helicóptero, o coração batendo-me que nem um cavalo, o rubor conquistando-me o rosto, os olhos virando e revirando incapazes de focar o infinito quanto mais o finito próximo,

furioso o vento soprava por cima da “anta marinha” fustigando as canas e as armadilhas, ela desembaraçando-se do sutiã, estendendo-se na toalha turca aconchegada a mim em conchinha e eu, deixando de ver, protegendo-a num abraço enquanto o transístor repetia as noticias de última hora e dava o meio dia precisamente quando ela empinando e eu, que já nem via, vi nesse instante o farol aceso, piscando intermitente como nas noites quentes e negras em que ela me espantava despindo-se sob essa luz estroboscópica, e vi, juro que vi sob o sol escaldante mil grinaldas coloridas resplandecendo em cores vivas e vistosas e ainda mais fogachos multicores refulgindo e deslumbrando-me de tal modo que os dentes me rangeram e caí desfalecido na toalha, já sem forças, sorriso na cara, e a certeza de que a convalescença era coisa do passado.

                   Nesse domingo ainda almoçámos juntos, foi o último, ao fim da tarde regressámos à capital, ela ao hospital da Estrela, eu a Vale de Zebro e ao Alfeite. Perdemo-nos nesses tempos agitados, a revolução tragou-nos e durante décadas nada soubemos um do outro, até hoje, precisamente hoje, em que, maravilha das maravilha e graças às redes sociais a encontrei e soube na Tailândia, na Coreia, Camboja, no Vietname, no Laos, percorrendo toda a antiga Cochinchina, refulgindo escaldante por onde passa, resplandecendo em cores vivas e vistosas, linda e deslumbrando-me como sempre, acreditará ou pensará após tantos anos que esqueci o farol ?                                                                                                                                                   

        
* http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/221-contratempo-em-xangongo.html