O dia
despontava, um rebordo alaranjado acompanhava a linha do horizonte e nem meia
hora levaria até vermos esboçadas as primeiras sombras, nas quais nos abrigaríamos, pois por essa altura o sol
já castigaria. Todos estavam exaustos, tinham sido oito horas de marcha sem
outras paragens que não as estritamente necessárias para fixar o Cruzeiro do
Sul e a partir dele calcularmos a nossa posição. Os homens arrastavam os pés ansiando
por estender-se, elas não davam parte fraca, mas repetiam exasperadas o gesto de
levar os cantis aos lábios secos denunciando um desespero abafado. Uma sombra e, mal a encontrassem, por aquele dia, melhor seria dizer por aquela noite, a marcha
estaria terminada e os corpos jogados ao descanso.
Não faltariam
muitos quilómetros para a fronteira, a zona de perigo fora ficando perdida na
retaguarda, a campanha correra-nos mal, perdêramos dois homens, todas as viaturas e
muito material, mas salváramos o coiro. Uma batalha não faz uma guerra e nem
tudo estava ainda perdido. Cansados e abatidos homens e mulheres espojavam-se
na areia fresca da sombra. Apesar do revés o ânimo não se perdera. Eu observava-os
na improvisação de instrumentos que lhe marcassem o ritmo e a velha canção de
esperança, Lebam Ku Bo, ia surgindo
aos poucos da boca de cada um e cada uma com pedras, armas, ossadas, galhos ou
cascalhos marcando o ritmo que lhes corria nas veias. Notável se considerarmos
tratar-se de perto de 30 elementos, exaustos e oriundos de meia dúzia de
nacionalidades.
Eri Zuma não
me saía debaixo de olho, a sua costumeira tagarelice, ora abafada, não
prenunciava nada de bom, uma das baixas do recontro dumas horas antes fora o seu
prometido noivo e, não ter chorado nem bradado aos céus preocupava-me, estava
acumulando azedume, enchendo a alma de revolta, as mulheres ovambo eram
ensinadas a calar a dor mas quando a bolha rebentasse ninguém esperasse coisa
boa. Era um grupo excepcional, gente superiormente preparada, corajosa, tenaz, perseverante,
resiliente, mas até o aço mais duro em determinadas circunstâncias quebra…
Abrigámo-nos
sob a sombra de uma pequena ravina, a partir daquela hora o sol seria
inclemente e o Calaári mataria os descuidados. Dois homens, os mesmos que
haviam caçado um babuíno* e lhe tinham dado comida salgada, soltaram-no e
seguiram-no na busca desenfreada da fonte da preciosa água de que precisavam, água
a fonte da vida e onde o macaco os levou directamente apesar de bem escondida
entre fragas. Poderiam passar-lhe ao lado que jamais adivinhariam haver ali
água em tal quantidade. Os que ficaram limparam e lubrificaram as armas antes
de adormecerem resguardados pela sombra da ravina. Naquela zona os helicópteros
sul-africanos não se atreveriam a procurar-nos, temiam os cubanos e os velozes
Mig para quem eram presas fáceis. Durante a noite, durante a caminhada e no espaço de poucas horas esbarráramos com dois meio enterrados na areia, um deles abatido recentemente,
as cores e os estofos ainda não comidos pelo sol, procuráramos água mas tinham
levado os cantis juntamente com os mortos, via-se sangue seco, muito sangue.
Ainda nos não
encontrávamos a salvo, nem suficientemente afastados para não temer os
helicópteros e demasiado longe para sermos procurados pelos nossos camaradas de armas,
estávamos por nossa conta, felizmente um combate frontal estava fora de
hipótese, quase não tínhamos munições e fôramos obrigados a abandonar o
armamento pesado se quisemos salvar a pele. O equipamento de comunicações fora
também atingido e estávamos nas mãos da divina providência.
Deus e a
providência eram ali muito requisitados, por nós e por eles, o inimigo, umas
vezes cada um com o seu outras disputando os favores e a graça d’Ele. Não fazia
grande diferença, nem faria, na hora da morte só desejávamos que fosse breve, e
que não nos complicasse a vida, muito menos a dos outros. Nunca abandonáramos
um moribundo, mas felizmente também nunca tivéramos que carregar com nenhum.
Certa vez um deles para não nos atrasar a marcha em dias e dias metera o cano
na boca e solucionara o problema, resolvera a questão, há homens assim,
práticos, pragmáticos, uma padiola é do pior que pode haver para qualquer
ferido grave, é uma forca, uma sentença de morte, um mau feitiço atirado para
cima de um homem. Viver é fácil, difícil é morrer, exige-nos toda a coragem.
Todos dormem,
de duas em duas horas a vigília roda, a noite fora extremamente cansativa,
caminhara-se para fugir do inferno e p’ra aquecer, no Calaári as noites são de
gelo, entre os menos zero e os quarenta e muitos só os insectos se aguentam. O
pico a seguir ao almoço é mortal. Os homens
retornaram com vários alforges de água fresca e limpa. Não dará para tomar
banho mas todos vão poder dessedentar-se e beber que nem camelos, sobrará para encher
os cantis. A sede será doravante o nosso pior inimigo, era importante partir
abastecido. Para cúmulo as rações de combate provocam demasiada sede e os
homens, esfomeados, adivinhando a fronteira no máximo a um dia de nós,
vingam-se da fome e empanturram-se.
Um dos homens
mira-se num estilhaço de espelho apanhado no último héli pelo qual passáramos,
ordeno-lhe que se desfaça dele e o enterre bem fundo na areia. Um descuido, um
reflexo e a nossa posição pode ser denunciada a milhas e milhas de distância. Todo
o cuidado é pouco. Aqueles dois preocupam-me, têm borregas nos pés e
recomendo-lhes que os limpem bem e passem nelas gordura das latas de rações.
Kristna está assada debaixo dos braços, tem o peito farto e pesado, a presilha
do sutiã, o suor e o pó da areia constantemente roçando-lhe a pele feriram-na.
Digo-lhe que largue e enterre o sutiã, que passe tintura nas zonas feridas, não
sendo casos graves se tivermos cuidado não nos atrasarão. Reiniciamos a marcha ao som de “Lebam ku bo”, o
canto da esperança reafirma ser a esperança que conta, a esperança tornou-se a
fé destes homens e destas mulheres, esperança de conseguir sair com vida do
deserto, de chegar à aldeia, à cidade, esperança de sobreviver à independência frustrada, de ter filhos, família, vida, alguns já andam nisto há quase vinte anos,
ou mais, vieram das matas, só conhecem a guerra e as matas, e agora o deserto.
Néli fez de
mim a sua esperança, faço-me distante, despercebido, duro, todos temos que
estar prontos a perder tudo a qualquer momento, o segredo é ter pouco, ter tudo
exige capacidade de renunciar a tudo, não quero iludi-la, não quero enganá-la,
somente à noite nos procuramos. Há que ser superior a tudo, a todas as tentações,
renunciar é sobreviver, o compromisso tolhe, coarcta, prende, compromete,
obriga a ceder, tortura, fragiliza, pode matar. Desapego é sobrevivência,
liberdade, vida. Tudo isto Néli sabe, quem não sabe cedo ou tarde intui. Ela sabe e só me procura quando todos dormem, ou quase
todos, sem barulho anicha-se em mim, em conchinha. Nem o suor ou a areia nos
incomodam, mas travam. É esguia e magrinha, bela, marchamos há uma semana sob
condições péssimas e nem isso lhe retira a beleza, nem o ânimo, nem a doçura.
Há duas horas
que notamos mudanças na vegetação, há mais verde e mais arbustos e árvores,
provavelmente estaremos neste momento pisando a linha vermelha de fronteira e
entrando em Angola, sobrevivemos a mais uma provação, a mais uma missão, e
continuamos cá, para o que der e vier. A guerra será ganha ou não valerá a
pena, ou não terá valido a pena.
Brigadeiro, e adido
militar, o Chino deve andar agora perto dos setenta anos, mas não parece,
os pretos enganam a gente, mesmo com essa idade alguns quase não fazem rugas. Hoje
levei-o a almoçar à minha terra, o grande lago deslumbrou-o. Conto-lhe das
minhas primeiras paixões no varandil, sobre a cisterna, diz-me constrangido que casara com Néli. Mostra-me
uma fotografia de ambos tirada poucos meses antes dela falecer. Um grave
problema de rins demasiado tarde associado a paludismo levara-a, um caso
extremo e galopante. Ele também fora acometido pela malária mas safara-se
devido a ser Major General e a saúde dos membros da forças armadas estar
primeiro. De seguida emborcou instantânea e repetidamente dois copos de
Reguengos reserva, o sorriso matreiro e os dentes brancos, impecáveis voltaram-lhe à cara numa caricatura simultaneamente inebriada e feliz.
- É a vida, a
vida não pára m'ermão.
Alargando os
colarinhos, o cinto e os sapatos balbuciou algo como nunca se ter habituado a
mais nada que não a farda. Fora guerrilheiro toda a vida, não conhecia mais que
a guerra e a mata, nem tempo tivera para aprender uma letra, bem vistas as
coisas tem mais cicatrizes que medalhas. Brindámos, rimo-nos do secretismo de
antigamente. Agora o Facebook conhecia-nos todos os segredos. Não nos descobrira
e juntara passados tantos anos ?
- Brindemos à
savana, às picadas, ao Calaári, aos computadores, facebooks, intermetes e MPLA !
… Propôs ele…
Ergui o copo mas
recusando-me a brindar, ele sabia bem quais e desde quando vinham as minhas divergências
e dissidências com o MPLA. *
- Se lá
estivesses serias general ou brigadeiro m'ermão ! À tua !
Fingi nem o
ter ouvido, olhei o lago e embrenhei-me no ensopado de cabrito, carne muito
parecida à da pacaça observou ele, talvez sim, talvez não…
** Estava-se então no principio da década de oitenta e os
problemas no sul de Angola, derivados de tácticas e estratégias profundamente
erradas, ditariam os factores subjacentes à minha divergência e afastamento.
Erros que ditariam um elevado custo em vidas humanas e somente ultrapassados em
1987 com a Batalha de Cuíto Cuanavale, o maior confronto militar da Guerra
Civil Angolana, ocorrido entre 15 de Novembro de 1987 e 23 de Março de 1988. O
local da batalha foi o sul de Angola na região do Cuíto Cuanavale na província
de Cuando-Cubango, onde se confrontaram os exércitos de Angola FAPLA (Forças
Armadas Populares de Libertação de Angola) e Cuba (FAR) contra a UNITA (União
Nacional para a Independência Total de Angola) e o exército sul-africano. Foi considerada
a batalha mais prolongada e mortal do continente africano desde a Segunda
G. G. e terá provocado para cima de quinhentos mil mortos.
http://sistemasdearmas.com.br/ca/bushwar4.html
http://mentcapto.blogspot.pt/2011/09/manhinga-mami.html ***
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