segunda-feira, 25 de julho de 2011

E À ESQUERDA O SOL ...............................................


Juro-vos que me não lembro inteiramente. (s.e.o.) salvo erro e omissão, a sala tinha quatro grandes janelas à minha direita, altas, eu, tão sumido na carteira que nem lobrigava o largo, à frente o quadro negro, a cruz e as fotos dos presidentes, contou-me o Alvarinho da terceira classe que um presidente de branco, como o chefe da policia de Évora na farda de verão, o outro à civil, com nariz de judeu, tal qual o Abel, e à esquerda, não recordo bem mas decerto o sol porque D. Cristina:

 - O braço bem assente, o punho fechado sobre o lápis, peguem na ponta do lápis só com três dedos, a mão escorregando devagar da esquerda para direita, inclinada, a cair, atenção à luz das janelas, levantar a cabeça, e as janelas da luz eram as da esquerda, e por isso a minha certeza ainda que delas não me lembre

e à esquerda o sol, o recreio, uma palmeira grande, julgo que uma palmeira porque me aconchegava na sombra dos seus ramos caídos que eram grandes e picavam

- Vá agora devagar, com atenção e cuidado, a letra c, que é pequenina e fácil, olhem para o quadro, olhem para mim, vejam a minha mão, quem não for capaz é burrinho, um traço a partir da linha de base, inclinado e a subir, pára a meio do espaço, a curva em gancho em cima, volta e desce, em curva redondinha e acaba com o pezinho no ar

e a minha mão vermelha de responsabilidade e da força com que agarrava o lápis de xisto, os dedos brancos da pressão, os três dedos, o suor da mão na tábua de ardósia, o traço, o gancho, a curva e a perninha, mordi o lábio

já está

e o recreio um quintal de muros altos e do outro lado de um deles as raparigas brincando à cabra cega e ao galo, aos elásticos, à corda

- Meninos ! todos a rezar ! pousem os talheres, mãos postas !
 
e quando era grão ou feijão com arroz eu gostava, só não gostei nunca foi das colheradas do óleo de fígado de bacalhau porque sabia a rançoso e me dava vómitos e ás vezes ânsias por isso fugi da cantina e nesse dia almocei em casa, o senhor Jeremias

- D. Antónia, ainda não se fabrica melhor ou mais moderno que esta Oliva, a senhora vai agradecer-me a hora em que

e em casa o meu pai de pincel na ponta de uma cana comprida pincelando os altos de um cor-de-rosa desmaiado que ainda hoje lembro, e desse cor-de-rosa tive eu duas camisolas de manga curta porque a primeira o Tita ma rasgou numa brincadeira

- Parte do meio, inclina para a direita e sobe, agora para baixo, a direito, e termina sem pé, vá lá, todos, três linhas todas com o número um, certinhos e em sentido

a casa era alta por ficar nos baixos de uma igreja, por cima outra escola, a dos mais crescidos. Quando o sino tocava a minha casa tremia de fé e devoção o meu pai dizia que os toques soltavam a caliça dos tectos que eram altos, só ele com uma cana, um pincel na ponta, era capaz de os caiar. 

Acho que o meu mano mais velho andou ainda nessa escola, depois o seminário, e do seminário trazia desenhos plenos de devoção  e de cores que eu só vira nas revistas da loja do senhor Léca que era droguista e onde o meu mano comprava os mosquitos e os mundos de aventuras dos quais eu lembro os bonecos 

- Vá lá meninos ! os da primeira todos a desenhar os números, três linhas cheias com uns, bem feitos, irei vê-los a todos,. Os da segunda copiam a página do livro com o desenho do menino e das bolotas. E os da terceira preparem tudo e atenção ao ditado, não repito, cuidado para não perderem palavras, toca a trabalhar, não quero ver ninguém parado, tudo a mexer ! Vá lá meninos !

e ora batia palmas ora batia com o ponteiro na carteira da frente, a do Álvaro, e ninguém piava, todos mais caladinhos que ratos que a D. Cristina não era para brincadeiras e tinha a mão leve para bordoadas no cachaço dos mais renitentes, Eu com ela aprendi a sério e a valer e de um cachação de vez em quando não me livrei, lembro-me bem, porque eu vermelho e me doíam onde mais doem as pancadas, no orgulho

o chefe do meu pai antes do senhor Massano era do norte e comia a melancia enfiando a cabeça toda nela e debruçado sobre uma lata, o que me dava vontade de rir, não cortava talhadas como nós, cortava metades e enfiava o focinho nelas que mais parecia um bácoro, disse uma vez o meu pai depois da abalada dele

D. Cristina, Maria Cristina Calhau Pinto, gostava de mim e eu que ela gostasse de mim, e por ela gostar de mim fazia as letras e os números todos bem feitinhos. Só me lembro ser era alta, vestindo sempre de negro. E no pátio do recreio nem um baloiço, só covas de berlindes e os maiores, não pises aí senão levas uma galheta

um coração de oiro pendia-lhe do peito e por aí sabia quando estava zangada porque o estava sempre abrindo e beijando. E o giz chiava no quadro quando o arrastava, quando ela assim ninguém  piava. 

E ninguém éramos nós, muito mais de cinquenta, e só a quarta classe na outra escola por cima da igreja, mas aí as raparigas e os rapazes estão juntos

a senhora Benvinda veio outra vez queixar-se do cotovelo que as limpezas inflamam, e D. Cristina sente-se lá ao fundo um bocadinho, naquela carteira vaga, descanse um pouquito que bem sei como elas mordem, tenho um joelho que com o frio nem sei se lhe diga

e o Álvaro, sempre o primeiro a acabar as cópias, e ele com o braço no ar, e de caderno no ar, sempre orgulhoso apesar dos outros; - graxista, és um lambe botas da senhora professora, 

e ninguém para jogar com ele ao berlinde no recreio,. E como não, hoje é o director das finanças e já não lhe chamam graxista de merda nem há quem não lhe rogue favores.

- Quando era vivo quem me massajava o joelho era o meu marido que Deus tem que até me davam arrepios

- E nem assim filhos D. Cristina ? foi nessas brincadeiras que o meu Timóteo me deslocou o cotovelo que estou mesmo a ver que sem ir ao endireita isto não vai lá

e depois no ditado dos da terceira classe arrastava na voz para saberem que era para eles

- Mal a folha tombou no chão a raposa, virgula, virou-se de repente para a latada, virgula, repito, virou-se de repente para a latada, virgula, escrevam, 

e acabada a frase fechou entre as mãos e com estrondo o livro da terceira classe, 

- podem sair, 

- os da terceira só saem quando acabarem o ditado, 

e eu, devagarinho, corri para o recreio e, repentinamente eu aqui, recordando-te porque lembrei os cabelos da espanhola que não eras, e eu de dedos em pente, penteando-te até fechar os olhos, feliz,

e foi assim que ainda hoje te lembrei mãe e assim gostaria ainda que pudesse acontecer sempre…