sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

309 - VERGÍLIO FERREIRA, EU E O MONSTRO…..


Em vida Vergílio Ferreira foi editado pela Bertrand, que além de editora era distribuidora, a Distribuidora Bertrand, de nível e âmbito nacional e trabalhando com todas as restantes editoras do país, sendo-nos contudo mais familiar como Livraria, pois possuía uma cadeia de livrarias, hoje conhecida como Bertrand Livreiros. 

Em Évora, onde marcou presença em 1993, a Bertrand lançou-me um desafio o qual, após limarmos arestas e acertarmos contas eu aceitei, para o que contaram a minha experiência e conhecimentos de literatura, aliados à rede de contactos no mundo escolar e académico, ou sociais como agora se diz, tornando-me com um contrato sedutor responsável pelo seu investimento nesta cidade, que aplaudi, Évora merecia uma extensão da Bertrand Livreiros, que mais tarde prontamente contestei ao saber a localização prevista para a livraria, o “Centro Comercial Feira Nova”, hoje Pingo Doce, à saída para Lisboa e local bem exterior ao perímetro urbano da cidade. O tempo viria a dar-me razão, as gentes iam ali para o arroz e o feijão, passando ao lado da livraria praticamente sem olharem as montras. Abandonei funções em 1995, embora a Bertrand tenha teimado e tentado subsistir naquele inadequado lugar mais um ano ou dois, não consigo precisar já.

Porém, apesar ou por tudo isso foi entendido propiciar-me formação especifica, mais ainda e mais precisa, pelo que passei algumas semanas por trimestre em Lisboa, nas instalações do Chiado, e na Amadora, onde à época se situava a distribuidora, esta última gerida pelo senhor qualquer coisa Morais, hoje ele mesmo livreiro, para o que adquiriu em Lisboa uma livraria em situação de falência, após a queda do império Bertrand às mãos de gente do calibre daquela que nos tem governado, gente que durante algum tempo se foi sucedendo sucessivamente sem cessar à frente dos destinos do grupo e por pouco não rebentou com ele.

Mas do que vos quero falar é de Vergílio Ferreira, já um homem velho quando o conheci, mas opinioso, garboso e desempenado, que por esses dias e numa dessas formações me foi pessoal e casualmente apresentado pelo citado senhor Morais, não recordo se no Chiado se na Amadora, no momento em que preparavam o lançamento da sua biografia fotográfica, “pois havia que fazer render o peixe antes que se fosse desta para melhor” segundo palavras do próprio Vergílio Ferreira cujo falecimento, um momento infeliz, teve lugar um ano ou dois após este nosso encontro. Dessa biografia guardo ainda hoje com muita consideração, estima e carinho um exemplar autografado por ele mesmo, que ao saber-me de Évora e seu leitor indefectível me abriu a porta da sua amizade com condescendência.



Por duas ou três vezes nos encontrámos, falámos, por junto três ou quatro horas, se não mais, tive pois oportunidade para lhe fazer saber quanto apreciava os seus escritos e volumes do “Espaço do Invisível” e de “Conta Corrente”, memórias que considerava e considero conversas com os leitores e muito para além dos próprios romances, estes mais limitados na amplitude do pensamento e circunscritos a um tema, a uma história ou a um título, no que concordou comigo, pois esses monólogos / diálogos com o leitor encerram um caracter mais intimista que os romances, tolhidos pelos personagens, enquanto no “Espaço” e na “Conta Corrente” o sentia falando comigo liberto de amarras e constrangimentos, enquanto eu, seu leitor, o ouvia e lia permitindo-me simultaneamente desvendar-lhe a intimidade, o âmago, e arrancando desse mistério a luz.

- Acha mesmo que foi um maravilhamento amigo Humberto ? (usou mesmo esta palavra, maravilhamento).

Sim, respondi-lhe, essas obras dão-nos a conhecer e a sentir o prazer da leitura, essas suas confissões proporcionam ao leitor uma, como dizer, iniciação ao pensar, à meditação, ao pensarmo-nos a nós e aos outros, incutem um exercício mental que a convivência torna exigente e que nos força a uma conivência condescendente para com os fundamentos da existência que em cada um de nós existe, independentemente de mais conscientes uns de nós que noutros e da própria avidez com que alimentamos essa moral, essa cumplicidade.

- Os olhos comem, mas o espirito também, felizes os que o alimentam, sussurrou.

Na realidade assim é, pena que os leitores de Vergílio Ferreira lhe procurem sobretudo os fantásticos romances, fenomenais certamente, mas para quem exija mais, encontrará nos volumes de “Espaço do Invisível” e de “Conta Corrente” a alma do mestre, aberta, mostrando-nos com uma terna candura o modo como vê o mundo que nos cerca e por vezes não compreendemos, ou nem sequer vemos, por inexperientes, por desatentos, por ignorantes, por incultos. Com extrema delicadeza diplomacia e grandeza Vergílio Ferreira vai inculcando em nós, seus leitores, a sementinha da inquietação, da curiosidade, da interrogação, e vai sugerindo respostas, caminhos, versões, soluções, sem nunca nos pressionar, sem jamais pretender conduzir-nos, apenas informando, seduzindo não empurrando, mostrando não impondo, e que melhor que nos fazer acreditar e levar a fazer, e a crer, que coisa melhor que ficar vendo-nos por nós mesmos alcançar, descobrir, chegar, concluir ?

É bom lê-lo, mas melhor ainda é “falar” com ele, percebê-lo, entendê-lo, vivê-lo, porque depois de lido é o mestre que vive em nós, que vive por nós, se eterniza em nós. Devemos-lhe isso pois nos seus escritos jamais nos ocultou a sua mente ou nos fechou o coração. É o meu Nobel, será sempre o meu Nobel ainda que as circunstâncias tenham concorrido em contrário.