terça-feira, 22 de janeiro de 2019

564 - OS DIÓSPIROS E OS AMARGOS DE BOCA…



Era uma vez, há muitos anos, um dia sem sol em que saíra de casa para ir trabalhar mas quis o destino que não fosse. Seria um dia normal, oito e meia da manhã, dia em que ao sair do prédio deparei com três malas à porta, retrocedi mas a porta fechara-se, ela fechara-a. Busquei as chaves e nickles batatóides, tinha-mas tirado, estava a ser despejado. Um homem não verga, embora fervendo galguei as malas e meti-me no carro jurando que ela não se ficaria rindo. 

Não fui trabalhar, fui fazer p’la vida, arranjar poiso e lugar para as ditas. Ela havia de levar uma lição. Não havia provas de nada, ela estava a basear-se em dúvidas, mas as dúvidas podem ser piores que as certezas, em especial as filosóficas dúvidas metódicas… Olhei para cima, vislumbrei-a sorrindo por detrás dos cortinados e arranquei fazendo um pião e com que os pneus chiassem. *

Sair de casa era portanto a solução e tudo que não coubesse na bagageira do carro era excesso, com o tempo fui abandonando o cariz materialista e fui-me tornando tão espartano de hábitos e exigências, quão estóico na capacidade de sobreviver com meios limitados e em condições adversas.

Eu detestava dióspiros e a Gina sabia, por isso estranhou ver-me ali em redor deles apalpando-os, sopesando-os, olhando-os. E cercou-me, digo acercou-se.

Naturalmente eu procurara saídas, uma delas num segundo andar da periferia e sem elevador não augurara nada de bom para mim, quase nos quarentas, ainda se ela fosse enfermeira... Mas não era. 

Outra não tive a menor duvida quanto a uma boa localização e centralidade, contudo a inexistência de uma garagem deitou por terra todas as minhas aspirações, não podia dar-me ao luxo de deixar a moto na rua, e onde guardar os capacetes e os fatos de cabedal ? 

Uma terceira era, ou teria sido o paraíso, quinta no campo, espaços verdes, ambiente natural, ar puro, comunhão com a natureza, enfim, o único senão era o acesso que obrigava a percorrer perto de dois ou três quilómetros numa estrada de terra recheada de covas e buracos, terríveis para o baixíssimo convertível que eu então tinha, tão baixo como qualquer outro desportivo.

- Tu por aqui Baiãozinho ? Coisa estranha, se não estou em erro detestas dióspiros ou não ? Ficáramos com umas coisas por resolver recordas-te ? Talvez agora já não houvesse problema. O Rodrigo faleceu há quase 4 anos e eu herdei aquele palacete no bairro, a casa da mãe dele lembras-te ? Filhos nunca quis. Estou sozinha, e tu estás a aguentar-te sem a Luisinha ?

Aquilo foi mesmo assim, de rajada, e eu sem uma esferográfica onde anotar tanta questão, iria esquecer duas ou três de certezinha, embora não fosse coisa que me incomodasse por aí além, tinha a certeza que ela mas lembraria ponto por ponto, coisa que eu não desejava mas da qual não me livraria ou não conhecesse eu a Gina. A história repetia-se, há anos como comédia, desta vez envolta em tragédia…

Eu tentava encontrar um dióspiro com aspecto de maduro, mas ainda duro, verde por dentro, daqueles em que uma dentada ficaria de imediato travada, queria pregar uma partida à minha netinha. Queixara-se ela que uma banana verde lhe travara a boca ao que eu respondera nem imaginar ela o que era ter ou sentir a boca travada. Uma partida, quando não era ela a inventá-las era eu, garotices .

Verdade que há um bom par de anos eu e a Gina tivéramos uma grande conversa, curiosamente encostados aos caixotes de dióspiros da frutaria da ponte, há muitos anos já, em 1991 para ser mais preciso, eu tinha menos 27 anos andando pelos 38, e ela pelos 30 ou quase, já não sou capaz de acertar. Lembro sim que para pior já teria bastado assim, assim como eu me encontrara e de não ter ido na tanga dela, daí a sua invocação do palacete no bairro, espaço, muito espaço e garagem, de que na altura ela não dispunha e cuja inexistência me travara os ímpetos. Ela era a da casa sem garagem, eu o tipo que não caíra nem à primeira, nem à segunda e muito menos à terceira.

Os dióspiros eram portanto um item com história entre nós, desgraçadamente nem ela nem eu apreciávamos tal fruta, o acaso e as circunstâncias ou o destino nos colocaram junto deles como se no entretanto não tivessem decorrido quase três décadas, cada um de nós vivido uma vida e nesse interregno nos tivéssemos visto, de longe, umas duas ou três vezes, se tanto.

Agora a Gina vinha dar vida a tudo quanto ficara abafado, suspenso, como os astronautas das séries de ficção que fazem as viagens no tempo congelados em nitrogénio, criogenia acho, criogenados, a Gina vinha com um pauzinho mexer em assuntos velhos, a Gina queria colinho e vinha de mansinho tentar fazer como a minha Mimi, que desde que a Luisinha partiu anda mais carente e me salta para o colo ainda antes que eu me sente, como se tivesse receio de perder o lugar, mas a Gina não é a Mimi e eu não sou o mesmo de 91, nem estou com as malas à porta de casa, a Gina é uma querida mas não está a saber colocar-se no lugar do outro, no meu.

Ora sucede que eu não tomarei nenhuma resolução enquanto sentir este aperto na válvula mitral, este aperto no coração, este pranto que pronto largo à mínima lembrança, esta saudade que me atravessa e dilacera, esta presença constante, esta Luisinha que ainda amo como se fosse ontem e continuarei a amar.

Solução, fazer conversa. Fiz conversa, uma vez mais. Encostei-me às caixas dos dióspiros e tergiversei, aparei-lhe os golpes e tive cuidado de não desferir nenhum que a pudesse magoar. Nada mais me resta que empatar, empatar até ela perceber que não, não é o momento nem é já tempo de refazer o que nem chegou a ser feito. **

Na manhã seguinte houve fita, cena, a Gina atirou-se de cabeça e, sem que eu o esperasse, solicitou-me ligação para uma chamada vídeo, pela webcam, vocês sabem como é. Estranhei, ainda por cima tão cedo, sou exageradamente madrugador, quer dizer, a minha Mimi é que me acorda matemática e diariamente sem falta às 7:00 da manhã, parece ter engolido um despertador o raio da gata, pula-me em cima até que eu me levante, abra as janelas, os estores, e lhe dê o pequeno-almoço, depois se quiser posso voltar a deitar-me que ela já não me incomoda, mas quem vivendo sozinho e depois de um despertar destes quer voltar à cama ?

Fui atraído pelo trim trim da campainha pedindo a ligação da chamada,

- Raios, a esta hora, o que será, quem será ? Deus queira que não seja merda, nem a barba ainda fiz caraças.

Não me enganei muito, não errei todo, era a Gina dando-me os bons dias, digo insistindo no colinho, toda ela sensualidade e sedução, toda ela Tentação, como se eu tivesse dezoito anos e as hormonas repentinamente aos saltos, eu aos saltos contente por vê-la e ela sábia e calmamente escovando os lindos e compridos cabelos, a escova descendo devagar, acompanhando a fila de botões da camisa indolentemente entreaberta e, pela abertura espreitando, dois seios envergonhados, tímidos, receosos de serem vistos, assomando, mostrando-se mas não querendo ser vistos.

 Esqueci-me do diálogo, lembro apenas ou somente que eles e eu espreitando, e ela linda até àquelas horas matinais,

- Há pouca luz, mal te vejo, a janela, abre a janela.

e ela sabida escondendo ainda mais o que desejava mostrar-me e os cabelos compridos escondiam, o que a camisa mal aberta ou mal fechada escondia, a tentação vergando-me, eu resistindo e a escova insistindo, deslizando, demorando-se onde ela sabia dever demorar-se, as unhas compridas, cuidadas, de um vermelho lindo, vivo, toda ela linda, um anjo, uma anjinha, e eu pecador me confesso, resistindo, tivesse eu vinte anos e isto não ficaria assim, ou fosse eu o artista e pintá-la-ia como alguém pintou Ana Maria, ou a “Origem Do Mundo” acho que foi Courbert, Gustave Courbert, e ela teimando, e eles espreitando-me, eu espiando, perscrutando avidamente até que, envergonhado da minha própria figura, irritado com a minha própria fraqueza me enchi de brio e de coragem, desliguei repentinamente o PC, preparei uma desculpa para quando ela me confrontasse com o corte abrupto da chamada, levantei-me, enchi o peito de ar satisfeito comigo mesmo e,

- Ainda não foi desta que me deram a volta, ando distraído, tenho que ser e estar mais atento à tentação, tenho que me respeitar, que me dar ao respeito a mim, sim a mim que já não tenho idade para estas coboiadas, vai mas é ter juízo Baiãozinho ou Bertinho como alguém certamente me aconselharia.

E fui, fui ter juízo, aqui estou eu pecador impoluto, pronto para outra, venham mais cinco, traz uma amiga também, não há crise, nem receio, só é frágil quem quer, só cede quem quer, nunca cedi, nem à primeira, nem à segunda e muito menos à terceira.

Mas honra lhe seja feita, a Gina está excepcionalmente bem conservada, ainda há Deus valha-me Deus.

Fulcral é que não a magoe, quanto ao resto é fácil, basta mudar de hipermercado. Tenho certeza que se deixar de vir aqui será pouco provável voltar a encontrá-la, no entretanto ela arrefece e trava os ímpetos, como se tivesse mordido um dióspiro verde, e eu trato da próstata, evito ficar mal visto, ter uma nega, uma fraqueza, porque tal qual diz o velho ditado, o que os olhos não vêem o coração não sente.

Porra, os aborrecimentos que tudo isto me tem trazido, estava capaz de morder uns dióspiros só por desfastio, e cuspir as sementes…

Tu bem me avisaste Luisinha, mas sabes como sou, ver para crer como S. Tomé, não temas querida, sempre me conheceste, sou um homem devotado e de fé.


Amém.