segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

94 - PORQUÊ AQUELE MENINO ?.............................



Vi-o. Não sei se por prodígio sobrenatural ou fenómeno do destino, mas vi-o. A mesma carinha redonda, a mesma franja, ainda parecendo escorrida pela água, os mesmos olhos azuis profundos que tanto me haviam chocado.

Era ele, era ele sem a mais pequena duvida !

Era ele sim, mas já sem aquele ar de paz que sossega os cadáveres para que não mortifiquem em demasia os presentes.

E ao vê-lo, vi-me a mim mesmo, nesse dia fatídico que jamais me acudira à memória nem mesmo, quando, esporadicamente, desfolho velhos álbuns de família e me revejo, com dez ou onze anos, talvez nem tantos, no meio de uma histórica bicicleta, rodeado pelos meus manos, e na qual o mais velho realizava prodígios acrobáticos, tais como conduzir de costas quilómetros sem fim, connosco à pendura, numa foto feliz, ocasionalmente tirada minutos antes da tragédia.

Num atropelo revi instantaneamente toda essa quarta-feira de cinzas, o passeio, as inúmeras pessoas presentes na Albufeira do menino “D’Oiro”, as apreensões de meu pai que, apesar de menino me não passaram despercebidas e por isso não nos tinha acompanhado.

A recente mudança para a cidade, o encargo com um casebre cuja renda eu depreendia muitas vezes multiplicada pela insignificância do que lhe custava o palacete em que na minha terra vivíamos, o futuro dos filhos, as distâncias que, nesta cidade, então para todos enormes se comparadas com a vizinhança a que na aldeia tudo distava de nós, assustavam.

Era ele sim, mas como possível estar a vê-lo, tão bem o recordar, com quase quarenta anos de diferença, ele o mesmo rapazinho inocente que naquele dia não entendeu, como eu não entendi, as palavras sucção e morte, eu, hoje um homem maduro, em nada crente no que a magias, feitiços, encantamentos e a almas do outro mundo diz respeito ?

Que mistério o colocava ali, perante mim, e qual o motivo ?

E nessa tarde malfadada, as minhas tias, porque enfermeiras, confirmando a desesperança de horas de trabalho dos bombeiros, do desespero das sirenes, da impaciência dos polícias, da apreensão da multidão, dos rogos da família desse menino agora aqui perante mim.

Céptico, mirei-o e remirei-o várias vezes, um brinquedo na mão, o mesmo cabelo alourado, só nos calções divergia porque agora os não trazia.

Uma senhora loura acercou-se dele sorrateiramente, rodeou-o com os braços, beijou-o terna e demoradamente, mimou-o, e, pela mão, o levou com ela dali, deixando-me só com os meus pensamentos que, num ápice desbobinaram pela minha mente dezenas e dezenas de anos.

Então a mesma carência dos mimos maternais que nunca tive e desde pequenino sofri, a violência desesperada e frustrada de meu pai ante as decepções que lhe dei, as muitas saudades dos meus irmãos, que a vida colocou longe de mim, a dolorosa falta de intimidade entre nós e que o viver sempre ergueu como obstáculo, as apreensões de meu pai connosco, as de tantos pais que no momento presente se confundem quanto àquilo que pensaram ser certezas, e hoje se culpam pelo futuro que lhes é negado e aos filhos, a dor crestante dos momentos em que meu único filho quase me morria nos braços, o terror de um cancro que nos anos 98 acometeu a Luísa,  (repetiu em 2010) todas e tantas atribulações pelas quais passei, passámos, e solidificaram na minha família laços indestrutíveis que vicissitude alguma desfará.

Durante metade da vida desconstruí medos, complexos, traumas, inibições. Minhas amigas, Ana e Maria compreender-me-ão.

Certamente derivado de tudo isto entreguei-me devotadamente à amizade, à felicidade, ao amor e, confesso, não ter dado por perdido nem um minuto sequer desde então. Do que não tive fiz forças, do nada, ambição, das frustrações vividas e superadas as motivações que me animam, do vazio uma aura de empatia que a todos envolva.

Um carácter vincado, uma personalidade forte, uma disponibilidade sempre presente, uma entrega, uma certeza para os que em mim apostam.

Talvez nunca saiba os motivos pelos quais, tão próximo do Natal, aquele menino me visitou, talvez para me lembrar que o amor, a amizade, a solidariedade, sejam as únicas coisas que vale a pena ter presentes, sempre presentes.

Haverá verdade no facto de serem ínvios os caminhos do Senhor?

Tenho agora mais um motivo para crer que sim.