segunda-feira, 24 de agosto de 2015

270 - PARLAPIÊ, A DESGRAÇA NUNCA VEM SÓ


             Dia a dia as coisas tendem a problematizar-se, digo antes complicar-se, não vá companhia minha pegar no problematizar e subverter totalmente, isto é alterar completamente o sentido das minhas palavras. Há gente complicada, cada vez há mais. Ou complicam e excedem, ou nem sequer alcançam o que é ainda pior. Vai-se tornando cada vez mais difícil falar com a generalidade das pessoas, falar, trocar impressões, cara a cara, pessoalmente, porque por mensagens virtuais a coisa chia mais fino, as abreviaturas, a chamada escrita inteligente e os emoticons arrasam-me.

Desde os tempos em que Cavaco confundiu Thomas Moore com Thomas Mann as coisas têm acelerado vertiginosamente em direcção ao abismo, hoje raramente se encontrará quem saiba quem foi um, ou o outro, quanto mais quem os confunda, Cavaco estaria portanto nitidamente à frente para o seu tempo. Diariamente pasmamos de ouvir esta malta falar ou escrever coisas como; “essa frase não passa de uma aspersão corrente”, ou “a agricultura e o novo milagre da rega por expressão”. Destas com tempo citar-vos-ia centenas, das outras, daquelas que o novo A.O. branqueou seriam aos milhares, e por este andar, dentro de uma dúzia de anos regressaremos às cavernas, aos monossílabos, à arte rupestre e a agarrá-las pelos cabelos e a tê-las à força ou pela força. Bem, limito-me à força porque pelos cabelos já a gente as puxa. Eu pelo menos adoro, em especial se tiverem rabo-de-cavalo.

Mas, fora estes apartes, a coisa ta mesmo má, não vai havendo quem saiba quem foi Sexta-Feira, ou Robinson Crusoé, ou quem em troca saiba outras coisas, pois, mas não sabem, nem a Genoveva, que foi professora de francês muitos anos e faz roda na nossa mesa há uns meses. O que ela não aprendeu já ! Ela que quase só falava de Grammaire française: orthographe, syntaxe, participe passé, accord du verbe, ponctuation, conjugaison, e cujas conversas se resumiam a França, não se cansando de repetir; “La France est belle”, ou “La France est très belle”, o que vai dar na mesma coisa, e agora exulta pois os jornais citam metodicamente a necessidade de falantes de francês p’ra dar vazão aos milhares de turistas gauleses que nos procuram.

Gauleses ? Quem são esses ? Pergunta o Gerónimo lembrando os bonecos do Astérix e, por encadeamento, Tim-Tim e o capitão Haddock, os gémeos Dupont e Dupond, e, se não o calarmos, ficará ali como uma grafonola e todos sabemos que quando chegar ao capitão Nemo e ao Nautilus ninguém conseguirá calá-lo.

Esta mesa qualquer dia parecer-se-á com a de um lar de terceira idade, não fossem os arrebites ou arrepios de uns e de outros de vez em quando.

- Mourinho ? Chelsea ? Pois pois, digo eu, quer dizer, condescendo eu em responder, porque também há aqueles que só percebem de futebol e se não fosse isso de nada mais entenderiam. 

Por vezes dou comigo pensando se não seria uma felicidade Parkinson e Alzheimer tomarem mais cedo conta de certa gente. É cada vez mais difícil e mais raro encontrarmos alguém com quem possamos conversar, e que, por motivos sabe Deus quantas vezes inexplicáveis se mostram incapazes de captar o cerne da questão, da conversa, perdendo-se em divagações ou enveredando por caminhos colaterais de bradar aos céus. 

Um dia destes o Teles gabava as virtudes de um barco pneumático que comprou para a pesca e que experimentou levar para Monte Gordo. Bem, o barquito, concebido para o rio e uma lotação de quatro pessoas sucumbiu às ondas e atirou a dúzia e meia com que o tinham carregado à água. E pronto, foi o suficiente para que o Gerónimo agarrasse o assunto e ficasse a perorar sobre o Mediterrâneo, os barcos de imigrantes, os naufrágios, a politica vergonhosa da EU, o crime do século, a Merkel, essa nazi, nem sei como mas a conversa derivou para as putas, e como já passava do meio dia e meia fomo-nos levantando para ir almoçar… Isto foi há dois ou três dias mas aposto que se lá formos ainda o Gerónimo não terminou a prelecção.

Desde que encerrou a empresa e se “reformou” que aparece diariamente, invariavelmente em fato de treino, inda que nunca tenha feito dez minutos de exercício na vida, e tenha suado, isso sim, com um AVC que não o quebrou, e que  superou ! É curiosa a história do Gerónimo que com a crise entrou em perda, queria despedir uma dúzia ou duas de funcionários para salvar a empresa e equilibrar as contas mas não podia, e a quem depois veio a ASAE exigir caixas frigorificas e ar condicionado em todas as carrinhas fazendo-o levantar no ar braços e mãos em simultãneo;

- Porque caralho estes gajos me vêm com estas merdas se toda a vida distribui os queijos sem mordomia e nenhum se constipou !

O Gerónimo tinha, com esforço sorte e alguma habilidade construído, ao longo dos anos, uma rede de distribuição assente em perto de duzentas carrinhas fechadas, que escoavam a produção de centenas de pequenos produtores de queijos de todo o Alentejo e levava para Lisboa, p’ró Algarve, p’ra Sintra, Cascais, Ericeira, até Leiria, empregando mais de quatrocentas pessoas. Adaptar quase duzentas carrinhas às exigências (segundo ele parvas) da bela ASAE representaria um encargo / custo / investimento que ele se mostrava incapaz de enfrentar e ao qual os bancos, uma vez rebentada a crise, torciam o nariz, pois o Gerónimo sempre fugira aos impostos e apresentava invariavelmente balanços rasando o prejuízo permanente. Ora o crédito, baseado agora sobretudo em algoritmos e não no conhecimento e confiança estre as partes, codilhou-o, negou-se-lhe. o Gerónimo levou as mãos à cabeça, fulminado, e só acordou na unidade de AVC’s do hospital, todo cagado e mijado por falta de pessoal auxiliar, babado e nem dizendo coisa com coisa, de tal modo que quando retornou a casa temeram que baqueasse de vez com a gritaria do pessoal, os ordenados atrasados, os veículos parados por falta de combustível, o espectro do desemprego e da fome pairando nas bandeiras negras que funcionários mais afoitos haviam hasteado nos telhados do escritório, dos armazéns e dos barracões.

No meio de toda esta desgraça valeu-lhe o amigo Valério, a quem a Dolores por outros motivos, que não virão agora ao caso estará ternamente agradecida, perdão, eternamente agradecida. O Valério é sindicalista, numa noite de refrega tudo aquilo lhe deu volta ao coração e numa hora de fraqueza sussurrou à Dolita :

- Deixa lá filha que tudo se há-de resolver em breve, não se pode despedir um mas podem-se despedir-se todos, a lei está feita assim, não tem um buraco mas tem um buracão, e depois o IEFP tratará deles e o medo da fome ficará afastado, pelo menos por uns tempos, ao menos calá-los-á e tira-tos aqui do quintal que tu também precisas de descansar amor e nem pareces a mesma na cama.

E foi remédio santo, a Dolores falou com o Dr. Miguel, advogado da firma há muitos anos, tratou de tudo discretamente, a maralha desandou para outras paragens, deixaram de lhe mijar e cagar no quintal e na piscina, as bandeiras foram arriadas, a respeitabilidade voltou, até o Gerónimo melhorou, já come sozinho, já se ri, voltou a juntar-se com os amigos no café, abandonou o Mercedes descapotável por ter dificuldade em entrar e sair dele, comprou um BMW azul mentalizado que tem espaço para as canadianas e nem exige ginástica contorcionista. Ele precisa de refrescar a cabeça agora que a canalha o deixou em paz entretida que anda com cursos de formação de Excel, de controlador aéreo, de navegação marítima, de informática de Cad/Cam e outras coisas que nem entendem, nem eu, a Dolita anda feliz, tem o seu homem em casa, sabe sempre onde ele está e tem agora as costas menos vigiadas, o Valério continua a encabeçar as manifs da UGT, continua o mesmo homem dedicado a causas e escrupuloso, tão escrupuloso que nem aceitou à Dolita nem o pedido p'ra casarem logo que ela pudesse tratar da saúde ao Gerónimo nem o Mercedes usado que era dele, estava novo, novíssimo, se não fosse pela matricula ninguém diria que o carro tinha quase dois anos, e ela nem compreendeu nem aceitou as negas do Valério pois dantes o que ele mais ambicionara fora sempre o melhor que o Gerónimo tivesse.

Como as pessoas mudam, já nem há homens de palavra como dantes, nem de palavra nem com tomates que isso estava ela prontinha a jurar.

A vida retomou a normalidade, descontando umas ou outras equipas que se desfazem no meio do clamor da batalha pela eficiência que o país trava. Nota-se que tudo vai melhor, no interior centenas de pequenos produtores que não conhecem uma letra abarrotam de armazéns cheios de coisas a mirrar, a definhar a secar, e sonham com o Valério que lhes escoava o produto, que os enganava com um sorriso franco na cara, agora agricultura e pecuária param porque a produção não tem compradores, alguns juram nem saber nem ter alguma vez visto esse Valério, se era secretário ou subsecretario de estado nunca tinham ouvido falar.

Metade dos homens que trabalhavam para o Valério emigraram para onde puderam apesar de alguns terem regressado de mãos a abanar jurando;

- Não sirvas a quem serviu, nem peças a quem pediu, vida de merda que me fez preto dos pretos só por ninguém ter acudido ao patrão Gerónimo.

O Valério vai no próximo mês encabeçar a Presidência do Conselho de Concertação Social e Económica depois de anos de tarimba trabalhando no duro, o Dr. Miguel sempre comprou aquela quinta que em tempos fora da família Fidalgo, dizem as más-línguas não ter sido ele a paga-la mas o Gerónimo, seja como for sabemos que continuam amigos e é vê-los felizes & contentes no restaurante da Tia Annette, ele beberricando cervejas por uma palhinha e o Dr. Miguel debicando queijos e as melhores linguiças assadas da região.  

A Dolita agora tem página no Facebook e anda maluca com tanta modernice e tantos amigos que lhe aparecem todos os dias, a “francesa” (a Genoveva) é agora sua amiga e são só segredinhos, risotas e risinhos entre ambas as duas…

O Gerónimo anda todo contente da vida, tem uma colecção de palhinhas coloridas e não pára de, por tudo e por nada;

- Cá se fazem cá se pagam, alimentem-nos vocês agora seus parasitas de merda, seus vampiros filhos de puta.

Numa clara alusão e vingança aos tempos em que o faziam perder manhãs e tardes inteiras de boné na mão, numa atitude subserviente perante a gandulagem a quem afinal era ele que dava de comer, salas e salas cheias de gente a coçar os tomates ou a pachacha como ele dizia, sem bulirem um corno e saindo aos magotes para o lanche da manhã ou da tarde e ele ali especado esperando que alguém se dignasse recebê-lo p'ra no fim não lhe resolverem o problema e eram só multas e só pagar, agora é que os queria ver, e para ser verdadeiro queria era vê-los mesmo a gemer no olho da rua que era p'ra saberem quanto custa e aprenderem a amar a Deus.

Quanto a mim ando há três semanas tentando encontrar com quem debater a influência dos "Aforismos para a sabedoria de vida" na obra e vida do filósofo Arthur Schopenhauer, em especial na sua famosa edição de "Parerga e Paralipomena" mas todos olham pra mim como se eu fosse um marciano…