quinta-feira, 13 de novembro de 2014

208 - ATIROU UM PAU AO GATO ...


Embrulhados no meu melhor sorriso dei-lhe uns bons dias calorosos, rematados por picardia :

- Olha o Margarido ! Vai trabalhar malandro, passas os dias no café.

e, claro, levei logo com uma resposta pronta que me coíbo de mencionar aqui. Todavia tomei lugar na mesa dele, este não é como o Martinho que à mínima piadola perde a compostura e ofende tudo e todos, a esse não lhe podem tocar no grelinho que não se atire logo ao ar, diz a malta dele, e é verdade.

Mal me sentei retrucou:

- Trabalhar para quê e para quem, dizes-me ?

Conhecemo-nos há anos, talvez desde gaiatos, na verdade nunca o vi trabalhar, ou era da oposição ou estava contra, e assim vivia, ou mesmo assim vivia, ou sobrevivia, e nisto, enfastiado, atirou um pau a um gato.

Aos poucos a mesa foi-se compondo e os últimos a chegar arrebanharam as cadeiras disponíveis afim de enfeitar a roda, a assembleia como diz o Amadeu. Mas o mote das conversas do dia estava dado, e o Margarido, que devia ter ficado remoendo na coisa, de vez em quando trazia-a à baila, ou seja de novo à tona da agenda. 

O tema tempo foi abordado por alto dado que o sol se confirmava, o que seria bom para o consumo e para a retoma, depois debruçámo-nos sobre a visita do PR a Borba e Vila Viçosa e reinámos com os políticos a quem recomendou fizessem os trabalhos de casa, coisa que ele mesmo aliás nunca estudara nem fizera, quando, exaltado, o Branco saltou em sua defesa alegando que ao PR, quando fora PM, lhe tinham feito a vida negra portanto teria agora direito a uma vingançazita, à boa moda portuguesa, e azucrinando a moleirinha às “forças de bloqueio”.

O Branco representa na roda o Portugal profundo, imbuído de uma filosofia empírica de arrepiar os cabelos, e a conversa só tomaria outro rumo quando o Teles chegou, coberto do pó das obras em casa e resmungando contra as mudanças nas chefias, e que se mal estávamos pior ficámos, que os diplomas nem sempre contavam, que o factor humano era muito importante, que nesse item, cruzes canhoto que a tipa que lá meteram agora é trinta vezes pior que a retirada, que mais parecia um zombie, que não via mais que um palmo à frente do nariz, mas que esta agora nem isso.

Metade do pessoal não descortinaria o desabafo do Teles não fora a alusão à zombie remeter-nos para a viúva do Euletério, foi então que a mesa se animou em excesso e as conversas se atropelaram em cambalhotas umas por sobre as outras.

Parece que o Euletério se fora desta para melhor sem pagar as dividas que por cá deixara, e muitas, sendo que, do apurado entre meias conversas e meias frases muita gente ali não se importaria caso fosse a viúva a pagá-las, preferencialmente em géneros, suposição que a maioria da roda partilhava e até aplaudia, pelo que o tema só terminaria, e bruscamente, quando chegou, toda sorridente, a mulher do Caetano, a quem ninguém ousava fazer frente, nem ele, tendo sido quanto bastou para que os cães parassem antes de por completo terem esfrangalhado a coitada da viúva.

Sim concordo, a precisar de apoio, sim concordo, a precisar de um ombro amigo, sim concordo era um desperdício deixada viúva tão cedo, sim concordo não mais que cinquenta quilos, sim concordo também gosto de violões, sim concordo não mais de cinquenta anos, sim concordo os amigos são para as ocasiões e não, não concordo ! Nem posso concordar ! Como é que raio tu, Margarido, que nunca fizeste nada na vida tens um crédito desse tamanho sobre o falecido Euletério ? Esperas que concorde contigo ? Acreditas que caia nessa ?

Nisto a Tv chamou a atenção para uma Gabriela ou Floribela ou Legionella, e todas as cabeças se viraram deixando em paz a viúva e a digníssima do Caetano, de quem se dizia todo aquele ar feliz não lho dever a ele, mas agora calo-me eu porque as conversas são como as cerejas e atrás de uma vai outra e nem toda a gente tem telhados de vidro ou esqueletos no armário.

E bem fiz eu em calar-me, porque acabou de entrar o tenente Emanuel, bota de cano alto, cabelo rapado à escovinha, boné da fardamenta entalado debaixo do braço o pingalim permanentemente açoitando a barriga da perna e olhando todos de cima, como habitualmente. 

                     Nem um só se desviou para lhe dar lugar, nunca ninguém o fez, ninguém o topa, contudo arrastou para o círculo uma qualquer cadeira e, antes que se sentasse todos se calaram, na presença dele sempre nos calámos. As conversas mudaram de temática automaticamente e assuntos de mulheres nem pensar, tudo porque a dita cuja do Emanuel é a única pessoa que ele não olha de cima, dizem as más-línguas ser ela sim quem por cima gosta de ficar e olhar-nos nos olhos. Serão afirmações de gente sem escrúpulos, sem vergonha, gente de má-língua e capaz de tudo.

E estávamos nisto quando todas as cabeças em redor da mesa se viraram como um cata vento ante a aproximação da viúva, cuja presença não deixava ninguém indiferente, o nosso tenente cofiou o bigode, alisou com a palma da mão os cabelos que não tinha, ajeitou o nó da gravata, desfez uma ruga de enxovalho nas calças e pressuroso ergueu-se airosamente oferecendo-lhe a cadeira e o lugar, ela declinou, não sem dar mostras de se sentir embevecida, a sabida…

- D. Guida queira perdoar-me a ausência no féretro mas sabe, o verão, operações stop dia sim dia sim, foi-me completamente impossível.

- Oh ! Não tem importância senhor tenente, de qualquer modo ele teria detestado ver qualquer um no seu funeral.

Com um sorriso matreiro deixou-o de monco caído, cadeira pendurada da mão, hesitante entre colocar uma cara séria ou rir-se da espirituosa resposta dela, e quando voltou a si toda a gente na mesa se tinha levantado debandando na mira do almoço, pelo que o nosso engatatão, que em casa diziam as más línguas, tinha falta de apetite ou passava fome, nem teve habilidade para responder ao Margarido que de boca aberta:

- Mas afinal trabalhar para quê e para quem, dizem-me ? Alguém me diz ?