quinta-feira, 31 de outubro de 2019

619 - ASTROS. FADO, FORTUNA, SINA, SORTE ...


  
Disse ela que me expresso bem, inclusive as emoções, tendo adiantado vagamente uma qualquer coisa sobre o PLAN ou PAN, táctica ou estratégia adoptada por alguém de família cuja prática dominará e ensinará pelo que, atordoado pela sigla e com tão franca confissão me tirei de cuidados e obriguei, preto no branco, as cores entre as quais a vida agora me encarreirou, a indagar sobre o significado dessa aberração que afinal o não era, sendo simplesmente a capacidade de melhor ou pior me exprimir, voluntária ou involuntariamente suponho eu, na linguagem das emoções, algo assim a modos de linguagem gestual mais dissimulada, mais natural, mais própria ou não, dependendo a titulo de exemplo da capacidade conteres ou não conteres o pranto, de suster ou não suster uma lágrima, pelo que deduzo com o pensamento induzido por estas premissas ser a minha neta, na inocência dos seus treze aninhos, mestra nestas andanças ou andando perto duma carreira de cartomante, quiçá podendo vir a assegurar-lhe o futuro dando cartas ou formação naquilo que já hoje parece uma ciência empírica, a leitura das emoções, tal qual a leitura dos búzios, das borras de café e por que não das viscerais entranhas das aves, dos seixos nas praias, da disposição das nuvens ou da agitação que rodeie quaisquer formigueiros.

Por muito menos e movidos pelas melhores intenções, drones sobrevoando os gentios têm causado emoção cada vez mais deslavada suprimindo cirúrgica eficaz e friamente quando não erradamente, as gentes escolhidas, criando revolta nuns, sincera emoção noutros e a apoteose de alguns yes we can, portanto em frente que atrás vem gente just do it, ne cést pas mon petit ? E que se lixem os danos colaterais, o preço irrisório das façanhas actuais…


Portanto a questão roda ou balança em torno das emoções, sua expressão, observação e práxis ou ausência, pois estou plenamente convencido haver quem as camufle, finja, imite, daí tirando proveito, livre de impostos suponho, pois a AT não é para aqui chamada nem ao menos desejada e nem quero sequer pensar em levá-la a tributar emoções, praticamente a única coisa de valor sobre a qual a sua desmesurada ganancia não recai.

Boa gente como somos, eu pelo menos assim me considero, mui naturalmente só abarcamos as emoções nobres e veras, pelo que repito o já dito, em frente que atrás vem gente pois esta conversa está a prolongar-se em demasia e já vos deve cheirar a escatologia, não da teológica mas da outra, portanto avancemos, passemos adiante, às emoções propriamente ditas e à sua apresentação ou expressão, quer dizer apalparam-me, eu senti-me, reagi e alguém registou ou observou as emoções que soltei, que larguei, como quem num laboratório analisa ou disseca um gás largado. Será possível dissecar um gás ? Sei lá, o método certamente científico o dirá, a mim somente foi dito ser claro nas emoções que largo, sim porque outra coisa não largo e juro-vos que raramente me descuido, coisa que a escatologia cientificamente explicará senão a fisiologia. Freud e o cozinheiro responsável pela feijoada que comi ontem também terão neste particular a sua parte ou no mínimo uma palavra a dizer.


Mas não banalizemos a questão, o mesmo é dizer não banalizemos as emoções por muito emocionante que seja o resultado de uma feijoada, pois não é isso que buscamos e quem busca procura, neste caso a verdade, o reflexo de uma mágoa, o rasto de uma lágrima escorrendo rosto abaixo, um leve ruborizar de pudor, um homem não chora, quando muito desculpa-se perante a esposa de que estará suando, isto supondo que mijou na cama.

O caso é sério, deixemo-nos de brincadeiras porque está em causa a solidão para que fui embora antecipada e avisadamente atirado e por arrastamento a inesperada perda do sentido da vida em que em vi embrulhado, enleado, possuído, e me decepou parte da identidade, parte do ser. Sendo o homem por natureza um animal social, e eu não sou menos animal que quaisquer outros, irreflectida, ingénua e inocentemente acusei esse estado de alma, deixei transparecer essa aura negra que me cobriu como nefasto manto e, inda que não tivesse envergado o luto preto da praxe acusei-me emocionalmente, era quase impossível tal não ter acontecido tão magoado me encontrava, encontro e, sendo extrovertido, franco, transparente, aberto e directo, jamais dissimularia o meu modo de ser ou razão de estar.

Tão visível a coisa se mostrou que um expert das emoções logo a captou no seu radar, tendo ditado do alto da sua sapiência encontrar-se perante uma personalidade, a minha, rica de linguagem emocional e soberbamente capaz de a exprimir. Imagino que deveria ter seguido uma carreira teatral ou política, mas segundo Heidegger, Stranger e Junger eu nem me vi perante qualquer dilema identitário, nunca duvidei da fé em mim mesmo, nunca tive dúvidas de quem era e sou, nunca me traí, nunca manifestei angustiantes problemas existenciais, limitei-me tão só e sempre a ser eu, simplesmente.

Aceitei o meu destino na ordem peculiar deste universo, ocupo o meu lugar no cosmos, aceito esse fado, fortuna, sina, sorte, o meu mantra e nunca me senti apesar de tudo por aquilo que passei habitando uma comunidade vazia, sem nada, desprovida de sentido como diria Esposito. E, como atrás foi dito e para rimar, apesar dessa mágoa jamais sofri de platitude, nem sequer me vi como um solitário partilhando a existência com milhares de outros solitários portadores de um sentido de incompletude ou de ausência que vez alguma senti vívido em mim.


Sempre considerei as emoções o sangue da vida, o espírito do karma, e sempre busquei doseá-las. Ter agora sofrido uma overdose de sentido negativo foi excepção que a minha linguagem emocional logo acusou, foi mágoa que magoou, tristeza avassaladora E não mais debandou, aliás cultivo-a como catarse e simultaneamente como punição pelo mais que poderia ter feito, quando podia, e não fiz por comodismo ou alheamento, pois imaginava a felicidade vivida uma certeza sem fim nunca imaginando neste universo por mim habitado outra sina cruzando-se com as minhas certezas, outra intersecção pudendo cortar na diagonal e profundamente a órbita por mim julgada eternamente traçada e cuja trajectória repentinamente alterada, geradora desta inconcebível instabilidade no meu campo magnético provocasse o caos entre as forças gravíticas sustentando o meu viver, tudo desordenando e descoordenando, descontrolando-o como se eu tivesse sido brutalmente atirado fora do sistema solar e vogasse agora com rumo incerto no mar do Cinturão de Edgeworth-Kuiper, desconhecendo de todo quando elíptica tão larga me trará de novo à Terra, a esta Terra de emoções e sentidos, historicamente patológica, doente, desestruturada, disfuncional, dissoluta e onde não somente eu mas cada um de nós terá cada vez mais dificuldade em encontrar o seu lugar e, sendo essa impossibilidade o actual fenómeno de massas ou caldo de cultura em que nos movemos (movemos? regredimos?), triste será o destino que nos espera, um abismo.

Dores, mágoas, sentimentos, emoções, tudo quanto faz de nós humanos, de mim humano, a minha nova identidade, o meu novo ser, a minha nova existência, a minha vida, agora em busca dum salutar retorno a uma práxis de felicidade que já foi minha, a minha onda, a minha praia, tal qual as gentes serão obrigadas a encontrar ou gizar uma nova eternidade, mais conforme com o passado que alguém porventura nos tenha roubado. Confiemos, esperançados que o universo não se destrambelhe…


segunda-feira, 21 de outubro de 2019

618 - O DÉCIMO PUNHAL, by Maria Luísa Baião *



Fui ao cinema ver fitas. Vi jovens muito (a)normais, algumas meninas bem bonitas e um lançador de punhais. Fanática de cinema, logo ali lembrei com pena tempos não longe demais... Outras eras... Em que pessoas, não feras, nos abriam horizontes. Foi assim que lancei pontes e me levei a lembrar, roubando ao passado distante imagens lindas de encantar e que revivi num instante.
Vi uma fita dezasseis em que gente, que não reis, consigo se confrontou. E c'os medos amealhados  se viram então contristados, enredados em enleios, confundidos, aturdidos cos possíveis caminhos a que levam os anseios. É que entre sonhos e desejos, vai um imaginário de ensejos a que muitas não resistem, outros apesar disso persistem e poucas há que desistem.
E c’a memória girando ao cinema fui voltando até à fita trinta e cinco. Não foram precisos tantos, dez, apenas dez punhais puseram pontos finais num império de desvalidos que, antes de perder os sentidos se afundaram, imortais, no mistério desses punhais de um velho baú saídos.
Uma vez subido à cabeça o sentimento vazio do alcance do poder, não se portaram diferente do que fazem muitos eleitos quando pensam que são gente. Quais D. Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança é vê-los, prometer hoje abastança, no dia seguinte temperança. É ouvi-los gritar bem alto à moirama, sabendo nós de antemão que se esconderão na cama quando tudo der para o torto.
 Entre um destes vivaços e um morto bem parecido, prefiro na certa o falecido, não chateia, não refila, não contesta nem protesta. É de longe mais simpático e capaz até, com ar enfático de me gabar atitudes. É que estar morto e bem morto pode ter muitas virtudes, entre as quais, não sendo demais, friso tempestades tais, potestades celestiais que na certa não provoca nem levanta, mesmo quando se agiganta.
Mas voltando às chinesices daqueles dias felizes que a fita atirou p´ro ar, é de bom tom recordar os desígnios do amar que nos podem mesmo levar ao perder, à perdição. Vi isto com os meus olhos, num cantinho bem espremido ali à Diogo Cão. E entre gemidos e ais, os amores desafiantes da cegueira dos amantes os lançaram por disputa de quem contra si mesmo luta na vertigem do abismo...
O filme acaba como um sismo,  em que o décimo punhal, põe fim ao amor fatal, à traição e à razão de quem ama amando mal. O desafio, o abismo e a vertigem de quem julga ser seu amor caso único, um primor, alvo de dádiva virgem.
É um punhal na garganta (não nas costas) que coloca fim ao caso mas não mata ali a esperança. Não sendo até por acaso haver gente bem feliz por tal não lhe acontecer. Não que o não possam merecer, pois arriscam por um triz, devido à diferença notória entre o dizer e o fazer, que não estejam um dia cobertos do branco pó, cor do giz, com que tapamos a escória.
O filme termina terminado. Arrumado no baú já mencionado, pronto para outra partida, pronto para outra viagem. De viagem andou o autor, premiado nessa Europa, pois por cá como é já hábito, o mais a que pode aspirar é levar c’a bota da tropa.
Vítor Moreira se chama, o autor da fita que inflama sendo eborense de gema. Talvez haja já quem o tema por ser revelação latente. Que ele existe o sabe mais gente em Veneza e de certeza noutras cidades mais belas que, às cautelas o premeiam, não vá o home envaidar-se ou subir-lhe o sangue à cabeça.
Por cá vai fazendo uns biscates, pois as verbas não dão para dislates, como aquela fita com uis e sem imagens reais que custou a quem dá ais, os impostos anuais de quem leva a vida dreta sem ter que fugir aos chuis.
                     
* by Maria Luísa Baião, escrito ‎na sexta-feira gelada e fria de ‎14‎ de ‎Março‎ de ‎2003. Muito provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.






quinta-feira, 3 de outubro de 2019

617- A RONDA ESTÁ PRISIONEIRA by Luísa Baião*



Em boa hora me chegou às mãos um convite, que agradeço, para assistir a um dos dois concertos que a “Ronda dos Quatro Caminhos” deu no Garcia de Resende. Com pergaminhos firmados, e uma história de dezoito anos de carreira, a “Ronda” não deve nada a ninguém. Maturidade é coisa que lhe não falta e a sonoridade ganhou efectivamente a frescura, irreverência e simplicidade que só os mestres sabem harmoniosamente conjugar.

Como eles comungo da opinião que cultura popular e tradicionalismo são características identitárias do nosso povo, em especial e se, como o fazem, essa cultura é fruto de árduo trabalho de pesquisa e investigação, que muito devemos a Artur Santos, Giacometti e Lopes-Graça, o que aliás modestamente admitem no catálogo dos espectáculos. A modéstia só lhes fica bem, sobretudo se alicerça trabalhos de qualidade que nada perdem, pelo contrário só têm a ganhar com o valor acrescentado de reputações sólida e arduamente firmadas.

Ao contrário de muita música “Pimba”, de que no final deram um exemplo tão irónico quanto mordaz, a cultura popular nada deve ao populismo consumista, tão vazio de tradição quanto de significado e que infelizmente tanta aceitação tem entre grande parte da população portuguesa, de memória por preencher e sentido por perceber.

A inclusão no espectáculo da colaboração dos “Cantares de Évora”, “Coral de Évora” e do coro infantil e juvenil do “ Eborae Música”, convidados, deu não só aos temas como a esses grupos uma riqueza inesperada, como que um colorido inabitual que em actuações isoladas desses mesmos agrupamentos não é normalmente conseguida.

Se apreensões manifestou a “Ronda” antes do espectáculo, e tal é visível no texto do catálogo, sosseguem pois, já que talento lhes sobrou na interpretação das intimidades com que nos brindaram. Por mim só fico à espera do reencontro, ou para mitigar saudades, do CD a editar. Até lá festa, pão e vinho, que se não hão-de acabar, como não se acabarão as noites quentes e namoradeiras deste nosso Alentejo.

Está prisioneira a “Ronda”, prisioneira de um compromisso que assumiu para com o nosso povo e que hoje faz parte da sua ementa musical. A culpa será tanto dela quanto nossa, dela porque prometeu, não desiludiu nem deixou de cumprir, nossa porque consideraríamos uma afronta aos nossos hábitos educados e às nossas expectativas, não gozar do som e da palavra a que nos habituou e cujo futuro deixa antever potencialidades que de modo nenhum desejamos traídas.

Um só caminho portanto lhes fica aberto, o de continuarem a pensar que a cultura popular e a música tradicional são parte de nós e não no-la podem subtrair sem azo a crime de lesa património. A nós cabe cumprir solidariamente no respeito por um trabalho que nos é dedicado e que preserva tradições dessa língua mãe que muitos ingratos filhos por vezes olvidam.

Lamenta-se a “Ronda” que as duas últimas gerações votaram ao ostracismo a nossa cultura popular e as nossas tradições, não lamentem, é passageiro. Preocupadas que estão na voracidade do consumismo e facilitismo a que têm sido acostumadas, não têm tempo para parar e pensar, preferem a música vazia de conteúdos, como preferem hambúrgueres  dispensando mastigação enquanto sonham estar vivendo a “americam life”.

Tanta cultura alheia ingerindo, sem digerir, nem tempo têm para pensar, nem querem perdê-lo fazendo-o. Aguardemos que cresçam, que amadureçam, e quando o emprego faltar, a renda da casa assustar e o carro não puderem comprar, tomarão a pose do “Pensador”, de Rodim, e interrogar-se-ão porque mudou o mundo, antes de reconhecerem serem eles que estão a mudar.

Promova a “Ronda” os seus espectáculos nos grandes espaços que as cervejeiras dominam, e que hordas de não pensantes preenchem, extasiados com o trip fenomenal do extasy, dê-lhes ritmo e toneladas de decibéis, e verá se a juventude aparece ou não. Claro que os espectáculos perderão o carácter intimista e cúmplice com que agora os desfrutamos, e não creio que seja isso que a “Ronda” procura, nem ela nem nós, seus espectadores fiéis e comparsas de uma atitude que durante os seus dezoito anos de vida não apagou a chama de que se alimenta.

Nota alta para um momento do espectáculo em que foi declamado um poema para intelectuais, sátira contundente a alguma da nossa realidade. Parabéns nos Vossos dezoito anos e obrigado.

           


*   by Maria Luísa Baião, escrito no dia 25 / Novembro / 2000 e publicado depois no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.





616 - A AVÓ QUE ME ENCONTROU, By Luísa Baião


Perdi minha Mãe muito cedo, foi uma dor que ainda é, e julgo me acompanhará durante toda a vida. Não só por isso mas também, estreitei os laços que então existiam com meus avós, todos muito queridos, e também já para mim, infelizmente, saudosas recordações.

Talvez por isso a Terceira Idade me sensibilize de forma marcante, ou talvez porque diariamente lido com essa classe etária, tão fragilizada quanto abandonada, por vezes, mas sempre tão carente de atenções, quanto devedoras somos todas das suas memórias.

Não esquecerei jamais minha avó Narcisa, com quem aprendi a enfrentar o mundo e a não adiar problemas. Dormir descansada significava para ela não deixar para amanhã o que devia ser feito hoje. Era alegre como poucas pessoas nessa idade o eram, dela herdei certamente esta disposição que me anima mesmo nos momentos mais difíceis.



De minha avó Joaquina herdei os genes da perseverança e capacidade de trabalho, ainda hoje relembro o seu exemplo, já velhinha mas sempre trabucando, o que lhe permitia ir manducando e estar em paz com Deus e consigo própria. Disputavam as duas a minha presença, pelo que os sábados eram alternadamente vividos com uma e com outra, que para o almoço me preparavam os melhores manjares.

Recentemente casada, órfã e mãe, nunca elas se aperceberam, e por isso ainda me culpo, não lhes ter dito em vida quanto as amava e lhes devia. Julgo que o sabiam, já que vivendo próximas, e ainda que almoçasse com uma delas, nunca olvidava a outra, que, ciumenta, me cobria de beijos e logo ali prodigalizava a ementa para o sábado seguinte.

Os meus avós não me eram menos dedicados, nem eu a eles, esqueci já os seus sermões, mas não esqueci o espírito que em mim incutiram, espírito de devoção, de honestidade da solidariedade, da honra pelo trabalho. Eram homens, muito me mimaram, mas era sobretudo com o meu jovem marido, homem como eles, que gostavam de conversar. E claro brincar com o nétinho, que os fazia babar e pouco maior era, à data, que um chorão.

 Rezar-lhes na campa não redime a minha culpa, por isso todos os idosos são para mim avós, os avós que já não tenho, os avós que queria ter, ainda. Por isso um destes dias, quando na rua João de Deus fui surpreendida por uma velhinha muito querida, não pude deixar de ver nela essas avós que recordo com amor e com saudade, por isso a sua presença me foi agradável, por isso me agradou que sem pudor se tivesse dirigido a mim, que com a pressa com que sempre ando a não via.

Somos vizinhas, embora eu não o soubesse, está internada num lar ali ao Alto dos Cucos, Fontanas, e espera como quem desespera, que os dias se sucedam. O nosso encontro parece ter-lhe sido grato, parece ter-lhe insuflado vida, mal sabe ela quanta gratidão senti em mim por me ter procurado, por me ter tocado, e na verdade tocou-me de perto o coração. Sei ser para ela uma amiga por quem espera à sexta feira, eu não espero, procuro, procuro a amizade e gratidão dessa e de tantas avós que há entre nós, e a quem não devemos esquecer dizer quanto amamos, antes que seja tarde, porque o tempo é uma roda, uma roda que não pára.



Mãe é Mãe, e ninguém substituirá na minha mente e na minha dor a sua memória, minhas avós sabiam-no decerto, já que nunca a procuraram substituir, muito pelo contrário, todas as suas atitudes, sem que o assumissem, foram no sentido de atenuar a minha dor, não fazer-ma esquecer, o que hoje reconheço acertado. Ainda recordo com saudade os seus mimos, as suas carícias, as suas palavras de consolo, amparo e encorajamento. As minhas avós souberam sabiamente deixar intacto um espaço que jamais alguém ocupará no meu coração, o amor por minha Mãe que ainda venero com mágoa, saudade, e sobretudo uma ternura que nem o tempo apagará em mim.

Se alguém me amou incondicionalmente foi sem dúvida essa Mãe que todos os dias lembro e ainda me dá forças, para lutar pela vida, por seguir-lhe o exemplo, que tão bem recordo.

Como é grande a pena que sinto por não a ter comigo, tão grande como o esforço que diariamente faço para que se orgulhasse de mim se entre nós estivesse. 

A saudade não tem fim.




***** By Maria Luísa Baião. Texto talvez inédito.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

615 - GOZAR COM O DESESPERO, by Luísa Baião...


O Diogo Lemos é um daqueles amigos que o infortúnio forja, não estranho por isso que me inclua praticamente entre o número dos seus familiares, quando o não sou.

Devia correr o ano de 75 ou 76, e sendo eu estagiária de Fisioterapia no Hospital do Rêgo, ou Curry Cabral, calhou-me em sorte o Diogo Lemos, rapagão bem feito e bem formado, um tudo nada mais velho que eu, e igualmente noivo. Quase havia sucumbido num desastre de moto, um despiste, um flash, e a coluna de suporte do “rail” protector decepara-lhe uma perna bem acima do joelho. Talvez hoje não a tivesse perdido, mas naquele tempo a ciência era outra e ainda insuficiente para os milagres actuais.

Certo é que quer eu quer o Diogo, ambos demasiado jovens para as agruras que a vida nos atira para cima dos ombros, ficámos bons amigos e vemo-nos muitas das vezes que vou a Lisboa, onde reside, ou ele vem a Évora, geralmente para um bom almoço alentejano, igualmente em família.

Eu, é sabido, só tive um filho, o Diogo em contrapartida tem uma equipa de futebol de cinco, todos bronzeados e tão lindos como a Cesária, uma cabo-verdiana enfermeira no Santa Maria, com quem por um acaso tardio acabou por casar, depois da falta da perna lhe ter quebrado o noivado, muitos namoros e enganos.

O Diogo é hoje uma pessoa normal, aliás, para além da falta da perna, sempre o foi, mas hoje, galhardo, é um cinquentão direito que conserva ainda o porte atlético de antanho. Isto porque durante muitos anos o Diogo não conseguiu suportar uma prótese e se arrastou de canadianas umas vezes, em cadeira de rodas outras. Por este motivo o Diogo só utilizava o sapato ou bota do pé esquerdo, tendo-lhe ao longo de anos sobrado o par direito, que ele, numa atitude de indiferença perante o azar, guardou apesar de saber não poder utilizar.
Da última vez que em casa dele estive foi dia de festa, direito, já com uma prótese, essa perna nova dobrando e tudo, livre de canadianas e cadeiras de rodas, contente com uma aleatória mas simultânea promoção que lhe coubera em sorte, o Diogo era Prof. de Matemática, colocado longe e depois tornou-se técnico de informática numa empresa de Lisboa, sendo hoje especialista em sistemas de informação, vingou-se, e bem, dos anos em que se arrastara nas suas limitações e equívocos.

Fora à dispensa buscar todos os pares de botas e sapatos direitos que lhe haviam sobrado, enchera-os de terra, e neles plantara as mais lindas flores que alguma vez vi enfeitando uma varanda. E havia para todos os gostos, malmequeres brotando de caneleiras alentejanas, camélias sustentadas por delicado sapato de cerimónia envernizado, manjericos sobrepondo-se e tapando mesmo um lindo mocassim castanho de pala, não faltando uma árvore “Bom-Sai” cuidadosa e conscientemente aparada a partir de uma colorida galocha de borracha.

A varanda era já pequena para tanto aparato, e todo aquele calçado exigia-lhe imenso tempo, a regar, a aparar, a proteger do sol, a evitar que lhe não faltasse, a atar os sapatos que por vezes se desatavam, dar-lhes graxa, enfim, cuidar da vidinha como o Diogo costuma dizer.

Fiquei como é óbvio e numa primeira reacção estupefacta com tão curiosa quanto macabra floreira, todavia, atendendo ao espírito cultivado pelo Diogo, que sempre gozou com a adversidade não se deixando por ela envolver ou vitimar, acabei por entender os seus propósitos e o seu jardim, jardim de que aliás toda a família cuida e à volta do qual parece girar a vida dela, família feliz, corajosa, trabalhadora e empreendedora, que faz, como vêem, um manguito aos desaires. Claro que numa segunda reacção me solidarizei e compreendi perfeitamente o porquê daquela aparente aberração.

O Diogo e a família visitaram-me no fim-de-semana passado,* hoje sou a feliz possuidora de um lindo par de botins de borracha, pintados a preceito, donde sobressaem, garbosos e prometedores os rebentos de inesquecíveis bolbos de tulipa. Chorei abraçada ao Diogo.


* by Maria Luísa Baião, escrito num domingo, ‎4‎ de ‎Dezembro‎ de ‎2005, ‏‎pelas 22:34h e provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.