domingo, 1 de novembro de 2020

667 - O RETRATO A SÉPIA By Maria Luísa Baião *

                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Estava amarelecido já, pelo tempo, e julgando as características da película era mais que certo tratar-se de um retrato nas antevésperas da vulgarização do digital. A pose, essa, tinha sido moda meio século atrás, de pé, ar altivo, corpo hirto, a mão descansando nas costas de uma cadeira. 

A pose não enganava ninguém, pois se passara a vida a inventar destinos e grandezas, aquela foto fora tirada pensando na sua exclusiva consagração. Nunca soubera viver sem o mando, como nunca soubera que fazer com ele, o que lhe importara sempre fora sentir o palco como seu, e nele, enquanto viveu, cumpriu o triste papel de personagem enganadora gizando à sua volta um bem conhecido mistério. 

Levara uma vida visceralmente solitária, sempre ficcionando, manobrando, iludindo, intrigando, enganando e mentindo, mas porque em público se calava, a todos fizera julgar ser superiormente inteligente. De quem provavelmente nunca lera um livro, foi de estranhar ver na sua lápide aquela homenagem, como de grande vulto da cultura se tratasse. De sua memória muitos dirão reverências, mas quando descoberto o logro devastador que foi a sua vida, soará o prenúncio de uma queda abissal. Biógrafos registarão o falso charme religioso com que se cobriu e a sua figura será reescrita de forma consensual como a duma personagem nada sensual. 

Causa dos males e dos remédios de que toda a amoralidade é capaz, veremos então surgir o verdadeiro recorte de uma personagem sinistra, narcísica, megalómana, que simplesmente morreu como sempre vivera, cultivando uma fingida discrição, mas, com estudada perfídia arvorando sempre uma doentia arrogância. 

Uns anos mais e tal figura não merecerá mais memórias que D. Sebastião, pois fizera da sua vida uma selva e nela devorara, submetera, achincalhara, todas e todos quantos se lhe atravessaram na frente. A falta de veros amigos provocara-lhe irreversíveis perturbações psicológicas. Lembro ainda quando, com um pretensioso gesto de mão, afastava os conselhos de quantos médicos lhe haviam recomendado internamento psiquiátrico. Amigos de Peniche somente uma ou duas figuras, justamente quem pacientemente lhe escrevia os discursos que com ar grave proferiria como seus. 

 Sempre julgara saber mais que todo o mundo, implacável para com os que lhe estavam abaixo, era contudo irrepreensível no protocolo, adorando cerimoniais, mesuras e vénias aos que superiormente se lhe apresentassem. Passou o último dia na cadeira do poder, que tanto apreciava, certamente vira pela janela o pôr-do-sol, depois partiu, não morreu, apagou-se, deixando no vasto salão um cheiro a velas e a urina. Embora o escondesse de todos, urinava-se então pernas abaixo a toda a hora. Assim se retirara do nosso convívio, podem imaginar maior felicidade ? 

 O destino fizera-nos um favor, a sua morte libertara todos quantos submetera, para esses terminara o desânimo, a apatia. A tragédia / comédia consumara-se e, enquanto o corpo arrefecia, exultante, a populaça emergia de novo, apagando da lembrança toda uma vida sofrida e cabisbaixa, sacudindo o desânimo que durante anos a animara. A alegria de viver retornara lentamente como acontece com a Primavera, estendendo sobre todos um manto de alívio e libertação. 


 Por todo lado soavam estalidos de grilhetas quebrando, ecos de consternação, fulgores de futuros risonhos. Um fardo nos saíra dos ombros, e como quem desce uma montanha, recordo ainda a alegria incontida desse dia. “A vida não é um acaso, é um mistério”, onde foi que eu li isto? Relembro S. Paulo, sim, fora S. Paulo, vai para três mil anos quem dissera acertadamente que: “ Deus escolhera na sua infinita sabedoria e entre a natureza, o que há de mais fraco, para confundir os fortes, e o que havia mais desprovido de saber para confundir os sábios”.

 Estava explicado o retrato, a pose, e essa vida altaneira e obscena confundindo os fortes e ludibriando os fracos. Descoberta a velada e dissimulada ignorância para confundir os sábios. Que mais posso dizer ? Que a vida e os anos haviam feito dessa personagem enigmática, rodeada de falaciosos mistérios, torpes intrigas e cuidados silêncios uma figura ilustre que a morte despira sem pudor nem contemplação desvendando singelamente a sua vera e triste dimensão. 

 Já se avista Marte, chegarei a tempo do seu verão. 

 Ano da Graça de 2895.

 


By Maria Luísa Baião, escrito a 6 de Setembro de ‎2012, inédito, é mais que provável portanto nunca ter sido publicado.