quarta-feira, 29 de novembro de 2017

478 - JÁ A GAIVOTA CAGOU NA BÓIA * ................


O primeiro a cair foi um graduado, não que viesse na frente da coluna mas porque por alguma inexplicável razão não retirara as divisas dos ombros tendo o dourado funcionado como um chamariz, é sabido que quando avistamos uma cobra a cabeça é a parte que lhe devemos cortar primeiro. Tombou ao primeiro tiro embora tenha sido impossível dizer com exactidão de quantos fora alvo, quando os enterrámos parecia um passador e, naquelas circunstâncias Deus só exige que se enterrem os mortos a fim dos seus cadáveres não serem profanados pelos animais.

A operação correra bem, será caso para dizer que o Senhor esteve connosco, connosco ou do nosso lado, desconhecerem o terreno foi-lhes fatal, de outro modo uma desproporção de um para três a desfavor teria ditado a nossa má sorte, mas não desta vez. Havia dois dias que os víramos e controlávamos, persegui-los e emboscá-los foi uma consequência lógica, afinal também eles nos procuravam para nos abater, havia largos meses que as aldeias do sul, uma das nossas bases e dois ou três acampamentos tinham sido objecto da sua inclemência, o assunto não ficara por agora totalmente resolvido, mas travar-lhes-ia o ímpeto antes de pensarem em nova incursão fronteiras adentro. Desta vez apanhámo-los a leste de Ruacana, vilazita onde as àguas do Cunene guinam para oeste fazendo fronteira entre a Namíbia e Angola, uma zona quente, o triângulo que fazia com Outapi e Ondangwa era um inferno e perto desta última localidade desconfiávamos haver um aquartelamento base dos sul-africanos, base de hélis e de artilharia de campanha. 

Em redor tudo “ardia”, arder é modo de dizer, a norte e a nordeste o antigo Congo Belga e a leste e sudeste a antiga Rodézia estavam em erupção, surgira o Zaire ou Republica Democrática do Congo, a Zâmbia, o Zimbabwe ("Zimbábue ou Zimbabué" em português), a sul a Namíbia onde a SWAPO era um tampão pronto a saltar sob pressão, mas Angola contava com o braço armado do ANC (African National Congress), Umkhonto we Sizwe a lança da Nação Zulu e o braço armado do Congresso Nacional Africano fundado a 16 de Dezembro de 1961 pelo ANC de Nelson Mandela e pelo Partido Comunista Sul-Africano (SACP), como resposta à opressão política, social e económica movida contra a população negra e mestiça, por sua vez neste barril de pólvora cabia ainda a citada SWAPO (South West Africa People's Organization), que por aqueles dias alinhava ao lado da UNITA, esta por seu lado e curiosamente apresentando como seu mais importante aliado, precisamente o exército sul-africano que combatíamos.

Aviões e tanques cubanos e russos aqueciam esta guerra fria, a África do Sul temia que toda a África austral se incendiasse e, sub-repticiamente apoiava os peões em jogo ou retirava-lhes apoio com a mesma rapidez de um drible em campo, aproveitando-lhes as forças e as fraquezas de acordo com interesses momentâneos. Alianças e divergências emergiam condicionando tudo e todos a todo o momento e de um dia para o outro vimo-nos acossados pela SWAPO, então unida à UNITA e esta por sua vez alvo de ricos apoios económicos e logístico/militares por parte da Africa do Sul, ciosa da manutenção do seu estatuto de apartheid, uma coisa obscena que os tempos condenavam mas a todo o custo a maioria branca tentava manter. 

O oficial sul-africano recuou com o impacto do tiro e parecia ter sido atirado para trás quando se lhe dobraram os joelhos, caindo curvado sobre eles como se fosse rezar. Antes de beijar o chão mais quatro ou cinco elementos da coluna tinham sido atirados por terra e sucumbido, os restantes surpreendidos, deitaram-se no capim baixo procurando abrigo, reduzindo o corpo oferecido às balas e a descoberto. Fizeram-no talvez no intuito de, ganhando tempo, se reorganizarem ou pensarem na retirada. Melhor abrigo que cosidos ao chão não encontrariam duzentos metros em redor e no entretanto o Pereira, um pexito de Sesimbra e especialista com a metralhadora pesada, fazendo-a crepitar e saltitar no tripé obrigava-os a manter as cabeças baixas enquanto lhes gritava:

- Não mexe ! A gaivota tá cagando na bóia seus cabrões !  *

O que quer que fizessem seria inútil, estavam condenados, o erro custar-lhes-ia caro, não se caminha em fila por campo aberto pois cercados cairão todos na mesma ratoeira, em campo aberto caminha-se em linha, uns ao lado dos outros, intervalos de vinte metros, pouco menos, poderá cair um ou dois mas não cairá a linha, dificilmente cairá, será muito improvável abarcá-la e tombá-la toda.


Dispusera os meus homens em V, com o vértice a jusante da projecção do rumo seguido pela fila de tropas da SADF (South African Defence Force), cada lado desse V não ficaria com o outro lado, onde metera todas as mulheres do grupo, na linha de mira, na linha de fogo e cobriria qualquer tentativa do inimigo, estavam cobertos, estavam encurralados, estavam fodidos.

Havia que ser rápido e fomo-lo, rápidos e eficientes, aquela coluna não trazer um transmissor nem um homem das transmissões só poderia significar estar por perto outra força mais numerosa. Esta seria composta somente por batedores, portanto tinhamos que apressar-nos, por isso nem os enterrámos muito fundo, no fim lançámos-lhes umas pedras em cima, rezou-se uma oração e estava a coisa feita, acabada, numa das sepulturas deixámos o molho de chapas de identificação, alguém as procuraria e apressámo-nos a sair dali. A qualquer momento um helicóptero poderia surgir vindo do nada, apesar da rapidez a tarefa ocupára-nos quase a tarde inteira, era muita gente mas a consciência ficar-nos ia pesando se os não enterrássemos.

Sim era a guerra, mas até a guerra tem leis, e há a ética, a moral e o caracter, há princípios, a vida não pode ser vivida numa selva.

Quase sem munições e com dois feridos ligeiros encetámos o regresso à base, seriam três a quatro dias de marcha penosa debaixo do sol arrasador do Planalto Central da Namíbia, quase tão hostil quanto o Calaári, ou então caminhávamos somente de noite, mais uma operação de busca e ataque e mais um sucesso, cumpríamos a Cartilha João de Deus, como dizia o Massumba, mostrando os dentes brancos que lhe enfeitavam a frente e na verdade tratava-se disso, cumprir a cartilha, cumprir os preceitos, aquela coluna não o fizera e agora estava toda enterrada e bem enterrada.

Isto da guerra também tem o seu quê, saber montar uma emboscada significa também saber o suficiente p’ra não cair nelas, é preciso saber, saber se há nevoeiro a levantar ou a manter-se, saber se o sol irá estar a nosso favor ou na nossa frente e encandeando-nos a nós ao invés do inimigo no momento de atacar, conhecer o terreno, saber se caminhamos na orla, no fundo de um vale ou se numa das encostas, aplicar a táctica ou a estratégia correcta se a ravina ao nosso lado sobe ou desce quando e se estamos sendo atacados ou somos os atacantes, nada disto é despiciendo numa emboscada, devemos escolher os lugares cimeiros, e nunca caminhar pelos vales mas sim no cimo das ravinas. É crucial saber dispor os homens em cada um destes cenários para que tenham vantagem sobre o inimigo e não se matem a eles mesmos, saber a cartilha é isso, saber a cartilha será a nossa única safa no meio do caos duma qualquer guerra. Naquela foi.

Saber significa ficar, resistir, durar, viver …  A ignorância mata ...


* " agora já é tarde " linguagem popular da população piscatória Sesimbrense.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

477 - O PLANO DE FINANCIAMENTO MALÓ ...


Hoje é um dia triste, não porque ao olhar pela montra do café ou pela janela de casa (onde estou é comigo, detesto que me controlem) o dia se apresente acabrunhado, escuro, bucólico, também ele tristonho. Contudo não me acomete a tristeza nem a inveja ao ver o meu amigo Azevedo dirigindo-se a mim de sorriso rasgado até às orelhas como se fosse dele o sorriso, ou o sorriso ou os dentes brancos e alvos, ou alvos e brancos, como se as duas coisas não fossem a mesma coisa, sabendo eu quanto os dentes ou o sorriso lhe custaram, os olhos da cara foi o que foi, neste caso mais os dentes pois poucos ou nenhuns serão dele mesmo que já estejam pagos, o que eu duvido conhecendo o Azevedo como conheço.

Mas em frente que atrás vem gente como diria uma amiga minha, torta que nem um garrote e a quem todas as infelicidades da vida caem em cima e atormentam. A pronto ou a crédito o Azevedo tem dentes novos, azar foi ter feito um seguro contra todos os riscos à mota, que afinal saiu daquilo sem um risquinho, tendo-se esquecido dele mesmo, a quem tiraram da valeta com a cara desfeita. Sei que fazem seguros de mãos a pianistas, e de outras coisas por exemplo a actores porno, desconheço é se haverá um seguro exclusivo para os dentes ou os joelhos dos motards, quem souber que me diga qualquer coisa porque eu só sei de ouvir dizer, que a clinica Maló financia até 72 suaves prestações dentes cuja garantia pode atingir os duzentos anos, dentes que, dizia um folheto que uma vez nem li, fariam a inveja de toda a gente. Os do Azevedo fazem.

O mundo anda virado do avesso e os valores éticos e morais, tal como as tradições, andam virados de patas para o ar. Antigamente “a gente” propunha uma obra a uma editora e das duas uma, ou ela nos respondia que sim que valeria a pena apostar na coisa, que teria pernas para andar e fazia por ela esperando ganhar ali algum dinheiro, ou nos mandaria de caras aprender a escrever aconselhando-nos a limpar o cu àquela merda. Simples e directo, resposta mais clara não poderia haver, assunto arrumado.

Agora não, agora por maior merda que a obra seja a editora gaba-a, gaba-nos a nós por arrastamento, glorifica a coisa, afirmará ser uma pena perder-se a sua edição e distribuição, avisando-nos que na segunda página se encontram as condições gerais do contrato e aconselhando-nos a aquisição de um número mínimo de exemplares entre os 100 e os 200. Claro que ficamos sem saber se aquela merda vale ou não vale alguma coisa, os modernos meios e processos de impressão, ON DEMAND, assim se designam, permitem imprimir de um a um cento, um milhar ou um milhão com o mesmo custo unitário e como tal tudo que venha à rede é peixe, será ganho, e jogando com as emoções, as vaidades e o ego de cada um teremos edições cujo número de exemplares irá de um cento ao infinito, e seja como for que vieres a pagar os cem ou duzentos ou mil da praxe o lucro da editora estará sempre assegurado mesmo que tu meu papalvo fiques com 99 ou 999 ou 9999 livros na mão, que ninguém quererá nem saberás como prender na casa de banho, se com um cordel ou um arame pendendo da canalização do autoclismo, ou empilhados a um canto a fim de lhes ires arrancando folha a folha para ...

Há umas semanas propus a várias editoras uma belissíma obra que alinhavara, contactos por correio electrónico em que nalguns casos esqueci enviar ou anexar o ficheiro PDF com a dita obra, porém nada a recear, duas ou três responderam-me, daquelas respostas automáticas que o hotmail permite, que sim que se estava perante uma obra bem estruturada valendo a pena editá-la e bla bla bla, ao que lhes respondi que sim que aceitaria as condições e que poderiam portanto começar já a imprimi-la bla bla bla, pois quero ver o que me dirão quando se aperceberem terem-se pronunciado sobre uma obra que nem receberam e muito menos leram.

Pelo menos uma editora foi honesta, temos trocado mensagens, a obra proposta tem potencial, a ver vamos como diria um cego, a ver vamos se chegaremos a acordo ou se serei comido ou não pois as condições são leoninas, o leão tem a faca e o queijo na mão, a mim resta-me espernear, ou não, não ir na conversa, não aceitar, afinal não sou o Lobo Antunes, não tenho força negocial, estou nas mãos dos editores, vai ser um jogo de paciência, um jogo do empurra, porque ao fim e ao cabo eles também precisam dos escritores e se bem me parece nem serei dos piores, tenho para mim ser até bastante bom, ouvirão falar do Baião, talvez esteja na calha para o Nobel e ainda não saiba, o futuro a Deus pertence, modéstia é coisa que não partilho e a humildade nem sequer é a minha cena, o Nobel sim é a minha onda, e embora por enquanto tenha que me contentar com a minha Suzuki ou com uma Honda, essa é a realidade e não há realidade mais enganadora que a virtual. Editores e filhos da puta são pares iguais, entre os dois venha o diabo e escolha.

Como tal meus amigos e minhas amigas ou minhas amigas e meus amigos, as senhoras primeiro, só não é escritor e não tem livros editados quem não quer, o problema é ter leitores e compradores para eles, seguidores, admiradores, apreciadores, apoiantes, porque o resto é tão falacioso quanto as boas práticas e intenções da Fundação EDP, da Coração Delta, da BPI Capacitar ou BPI Solidariedade, da Frota Solidária da Fundação Montepio, e outros projectos de solidariedade e responsabilidade social que tais, quanto a mim tudo mecenato ou patrocínios destinados a baixar lucros e evitar que se paguem impostos ao fisco, quantas vezes se beneficia mais do que se dá eu nem sei, sei apenas que há comendas e doutoramentos honoris causa dados que custaram milhões a quem foi agraciado, ou milhões dados a quem agraciou alguém mas que não mereceria um chavo… 



terça-feira, 21 de novembro de 2017

476 - CARTEIRO EM BICICLETA by Luísa Baião


Acabou de passar o carteiro na minha rua e, uma vez mais, não me trouxe uma carta tua, não que a esperasse, embora muito a desejasse e tu, sabido, nunca ma tivesses prometido.

Mas neste momento seria uma carta tua a única coisa a fazer-me sair à rua, recolhida que estou, inda que amante de guarida nunca tenha sido, nem sou. Mas aborrecem-me os pixéis, os posts, os tweets e os instagrams, confundem-me os neurónios e sempre preferi o cara a cara com os Sertórios ou outras abéculas que essas ao menos não me enleiam a molécula.

Gosto de ver-te, de sentir-te, de tocar-te, ouvir-te sorrir, gargalhar, consigo até gostar das caneladas atiradas quando rindo te estiras, quase caindo da cadeira c’a bebedeira de riso. Às vezes basta-me isso, um sorriso e pouco mais pois até os animais, e a minha Mimi que o diga, apreciam coisas tais e também ela, mal soa o carteiro corre à varanda primeiro e corre depois os quintais, saltitando pelos ares apanhando borboletas, gafanhotos e lagartixas, ou aventais nos estendais e, esquecendo completamente o que a levara à varanda, o barulho do carteiro numa bicicleta a pedais.

Carteiro em bicicleta é, deste modo e para nós duas, novelo bem enrolado que ela empurra brincando fazendo-o rebolar, mas para mim cheio de nós que me canso a desatar, porém, desde que a linha vá sobrando e eu com ela enquanto espero, novos laços vou atando... Desfaço nós enlaço laços, seja ou não seja Natal, porque os nós que desato são laços que irão ficar, são paixões que largo no ar, que qualquer um pode apanhar, juntá-los presos num nó e p'lo correio enviar a qualquer uma de vós a quem deseje enlaçar.

Depois é ver-vos felizes, e p’los cafés saltitando, as cadeiras derribando ou no quintal esvoaçando, as borboletas caçando, os gafanhotos temendo e das lagartixas fugindo em cada manhã de sol e até ao carteiro se ouvir a campainha tinindo, avisando sua excelência que tráz para vossa eminência uma cartinha perfumada e por abrir. Dizei-me então raparigas qual a cartada jogada no hotmail ou no gmail que vos deixe assim desvairadas ?

Tanto progresso anda a matar-nos e a deixar-nos frustradas, eu inda tenho guardadas cartas de cores bem rosadas que hei-de escrever um dia e enviarei às carradas a quem sei que as aprecia. Bastarão dúzia e meia de frases bem estruturadas, pozinhos de perlimpimpim feitos das caudas cortadas às lagartixas p’la Mimi, uns salpicos de perfume e a língua bem passada p’la cola do envelope para que, desde o carteiro a quem quer que seja carreteiro e a leve ao seu destino, a todos faça rejubilar, saltar, pular de contentes e, como uma amiga diria, subir correndo um escadote, ou, como o refrão duma canção cujo mote é a paixão, deixar-lhes o maravilhoso coração despedaçado.


Por isso caras amigas dai laços, apertai nós, pois o mundo anda desgraçado e mui pior sem nós andaria, nósinhas, nozesinhas onde o amor navegará por sobre mares e oceanos porque é para isso que cá estamos e, ao contrário do que afirma a ciência na sua infalível inocência, não são os musaranhos que sobreviverão à emergência, à inclemência, à impaciência, à hecatombe, à destruição, à bomba, ao apocalipse, ao armagedão, ao caos. 

Somos nós, nosinhas, avós, filhas e mãezinhas, somos nós qual casca de noz quem terá que, nos momentos fatais fazer de mães e de pais, levar a bom porto o barco, incutir esperança aos demais, espalhar o amor p'los quintais, dar trabalho a carteiros em bicicletas a pedais fazendo promessas aos demais.

Natal será pois quando e sempre que uma mulher quiser, e, visto entre o ser e o querer ir um passinho de pardal, irá ser o ser o ser ou não ser da questão, eu já tenho a minha parte, eu já tenho o meu Baião, cada uma fazei por si q’uisto nã é uma lição mas foi cousa que aprendi. 

E fico vendo-o passar, ao carteiro não há que enganar, pedalando sem parar, a campainha calada, e, embora mui desejasse não me trouxe uma carta tua, a tal carta que tu, marido, nunca juraste enviar-me por nunca te sentires perdido.

O sol brilha na varanda desta janela francesa onde me quedo recolhida esperando divisar-te mal apareças gingando ao fundo da avenida. Gosto de ver-te, de ouvir-te, de tocar-te, de sentir-te, de sorrir-te e dar-te umas caneladas p’ra te ver rindo atrapalhado a bandeiras despregadas e tentando o equilíbrio nessa mesmíssima cadeira donde em várias ocasiões já te estampaste. 

Gosto, gosto de ti já to disse bastas vezes, tanto tanto que o que mais gosto é mesmo sarrazinar-te a molécula e meter-te a mão nos neurónios. Amo-te Bertinho matreiro, mesmo que seja a Mimi quem ganha festinhas primeiro.

Era uma vez um cavalo,
que vivia num lindo carrossel,
tinha orelhas altivas,
e um lindo lacinho de papel !
A correr xá lá lá !
a saltar xá lá lá !
cavalinho não saía do lugar xá lá lá !
(canção da minha infância)

by Maria Luísa Baião, Évora, 21 de Novembro de 2017






domingo, 19 de novembro de 2017

475 - AJUDAR A PESCAR OU AJUDAR A VIVER ...


Quando quiseres ajudar um pescador não pesques para ele, ensina-o a pescar. Os últimos dias e as ultimas semanas têm sido férteis em comemorações e reportagens sobre a Revolução de Outubro e certamente deixaram muita gente meditando sobre esse acontecimento, eu inclusive, em especial sobre as razões que terão estado na causa da queda desses ideais de então e que, queiramos ou não, mudaram, moldaram e modificaram o mundo, moldaram e determinaram até a politica e geopolíticas de hoje.

Cheguei à conclusão, como diria Anna Hatherly, que também adorava jogar com palavras e tem agora decorrendo até 15 de Janeiro próximo uma exposição retrospectiva na Gulbenkian, “ter havido muita galinha para tão pouco milho, ou antes, tanto milho p’ra tão pouca galinha”. Fiquei com a impressão que, onde se impuseram ideias pela força as coisas falharam, poderia resumir o meu pensamento a uma questão de paternalismo serôdio como afirmar que Salazar pretendera ser o pai da pátria e substituir-se a todos nós e falhou, falhou ele e falhámos nós que, sem paizinho que por nós faça a papa não temos cabeça para fazer nada, ou pelo menos nada de jeito.

O mesmo terá acontecido com a Revolução de Outubro onde, falhada esta falhou todo o seu povo, incapaz, como nós, de se erguer de per si, sozinho, sem a ajuda do paizinho. Há povos que nunca foram habituados a viver a pensar e a fazer algo sem a intervenção de primeiras, segundas ou terceiras figuras, e na falta do paizinho ou fazem asneiras ou ficarão esperando que novo paizinho, ou padrasto, lhes volte a guiar os passos.

Putin sabe-o, conhece a história, conhece o ser humano, conhece o seu país e o seu povo, é culto, é informado, é determinado, é o estadista que muito naturalmente se imporá. Se é bom ou mau, melhor ou pior que A, B, C, D, E ou F é questão que no momento nem se coloca nem interessa, interessa sim que nós por cá, a quem ninguém ensinou a pescar, não encontrámos ainda um novo paizinho, não encontrámos ainda quem nos ponha no bom caminho, quem nos dê quando necessário umas palmadas no rabinho.

Parece-me que em todas as opções onde, ou quando não houve recurso ao ensino da pesca as coisas se descontrolaram, descambaram, ruíram, faliram. Apesar das suas cada vez mais evidentes fragilidades o império capitalista do grande Satin não soçobrou, o grande rival dos ideais da Revolução de Outubro não capitulou, mas a história também ainda não acabou, o fim da história foi prematuramente anunciado portanto em frente, deixai passar que atrás vem gente, como diria uma amiga minha.

Tenho-me interrogado sobre que razões ditaram o facto de, enquanto país, só termos avançado debaixo do chicote, não recuarei muito e começo com o Marquês de Pombal cujo cartão-de-visita contra a poderosíssima inquisição será suficiente para o apresentar, Fontes Pereira de Melo que irrompeu Regeneração adiante após a guerra civil que opusera constitucionalistas a miguelistas, o (Duque) Marquês de Saldanha uma personalidade de vulto do século XIX, tendo participado nas guerras napoleónicas, liberais e nas guerras do Brasil, e feito sentir a sua influência em domínios como o político, o diplomático, até na área científica, para terminarmos em Salazar, que dispensa de apresentação, que encontrou um país sem nada e deixou uma nação com muita coisa e sobretudo muitíssima incompreensão, carregando um estigma medonho e que certamente por isso está muitíssimo mal estudado.

Mas foi na história que unicamente procurei esclarecer as minhas duvidas e questões, na história e no que da história a estatística guarda provas e explicações, quer para os factos ocorridos quer para a associação de ideias que acabei de vos fazer, a de que enquanto país só temos avançado debaixo do chicote. Não encontrei para tal uma explicação cabal, linear, clara, inequívoca, embora os dados históricos do país e do mundo por mim consultados me consintam ou permitam fazer deduções, gizar induções, orquestrar intuições. Não pretendo impô-las a ninguém, mas permito-me satisfazer-me minimamente com elas até que outras melhores, mais lógicas, ou mais bem fundamentadas e portanto mais veras venham substituir as que agora acolho.

Os americanos, esses capitalistas, não só não soçobraram como se mantêm na senda do progresso cientifico, Lua, Marte, etc etc etc, bem poderão argumentar haver por lá muita miséria, pobreza, desemprego, e o que mais calhar que não ignoro nada disso mas, apesar disso a sua supremacia, actualmente disputadíssima, em especial na ásia, é ainda notória, eles americanos são a vanguarda do mundo e, para agradar a gregos e troianos direi que no bem e no mal, para o bem e para o mal the americans são contudo o farol que vai na frente, o que me leva a deduzir que, nunca tendo dependido dum paizinho estarão habituados a resolver os problemas que lhes apareçam pela frente sem ficarem à espera que alguém faça as coisas por eles, isto é sem ficarem esperando que os outros venham fazer o que deve ser feito por eles mesmos.

O que os move é secundário, o egoísmo, a riqueza, a avareza, a fama, a vaidade, o poder, a ambição, não me interessam as razões, aliás subjectivas demais para que eu as possa classificar ou catalogar, interessa-me que se movem, que se mexem, que avançam, que evoluem, que resolvem, que fazem, que produzem, ás vezes ou tantas vezes até merda, mas isso todos fazem, todos nós fazemos, e o que interessa é o que os diferencia e não o que os mergulha no mar da boçalidade onde outros escolhem afundar-se. O império capitalista americano não é o melhor dos mundos mas ainda não faliu, porém diga-se em abono da verdade ou para equilibrar a balança das ideologias que sem o contrapeso que constituiu o bloco de leste e a URSS nunca o ocidente teria provavelmente visto crescer, ou crescer e instalar-se tão cedo e tão largamente o modelar estado providência ou estado social, de bem-estar social e impulsionado pelo Kaiser Otto Von Bismarck na política da Alemanha ainda antes da I Grande Guerra Mundial, coisa que muita gente desconhece e com a qual se surpreende, estado providência que foi e é o cunho do ocidente e que agora, com o fim da URSS e dos seus idealismos e princípios, estão constantemente sendo colocados em causa pelas matilhas neoliberais que um pouco por todo o mundo vão deitando as unhas de fora e cuja rudeza se sente aqui sobretudo desde que Sócrates atirou com o país ao chão. Neoliberais que confundindo o monstro com a besta acreditam que os “mercados”, como as nuvens ou o céu, se equilibrarão miraculosamente por si mesmos sem atropelarem os que estão por baixo, como se o “homem” não fosse ruim por natureza.

Ao terem conquistado, colonizado, submetido à custa do seu esforço o oeste americano, com razão ou sem ela, isso daria outro texto, outro ensaio, nem é intenção deste fazer julgamentos da história, the americans dispensaram o paizinho e avançaram por si mesmos. Essa é a verdadeira questão, a do paizinho e sua necessidade ou não, nós tivemo-lo durante quase quarenta anos, rejubilámos quando em Abril de 74 nos emancipámos, mas decorridos mais quarenta anos não fomos ainda capazes de avançar sozinhos, sem andarilho, tropeçamos cada vez que damos um passo e mais parece estarmos recuando que avançando, se é que não estamos mesmo regredindo.

Falta-nos tacto, bom senso, juízo, racionalismo, pragmatismo e lógica, tudo que nos podia fazer avançar. Sobraçamos tudo quanto devíamos sacudir dos ombros, a ignorância, a estupidez, a parvoíce, a tacanhez e o provincialismo sufocam-nos. Não somos pequenos por acaso, mas por opção, foi escolha que cada um fez, uma escolha infeliz.





sábado, 18 de novembro de 2017

474 - CARNE DE PEIXE E MAÇÃ OFERECIDAS ...

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Tu falas pouco,
nunca dizes nada,
pouco ou nada dizes,
mesmo assim sonhei contigo,
eras uma fada,
e eu, acabrunhado,
tive porém ainda tacto para,
mesmo envergonhado,
te soprar os cabelos da testa quadrada,
e nela depositar um beijo matreiro,
depois nos olhos,
roçando na tua face a minha face,
os lábios nos teus lábios,
e,
ruborescendo, qual aventureiro,
tocar c’a ponta da língua a tua língua,
o que despertando aberto o apetite,
viu despertar também um seio,
a descoberto,
oferecido,
como uma maçã do paraíso,
coroada por doce auréola,
então,
toldada a minha mente,
 endoidecida p’la névoa,
desatou-se-me a língua enlouquecida,
que passeando-se nele,
tornada anónima pelo denso nevoeiro,
ousou poisar com estilo no mamilo,
sugado com maternal ternura sim,
com candura, mas,
abruptamente arrependida,
recolhi a língua ao palato, atrapalhada,
quando,
gizando a mente uma guinada,
me levou a genuflexão acalorada,
persignando-me e,
abraçando as tuas coxas,
roliças, quentes,
olhando-te a pele branca,
qual carne do melhor peixe,
beijando-te paternalmente os pelinhos,
chamando-te filha, filhinha,
chamando-te minha,
e sinceramente acanhado,
aflito,
embaraçado,
mergulhei em ti desvairado,
ébrio p'lo olor mentolado,
p'lo sabor acidulado,
tendo sido então que,
receoso do Senhor,
arrependido acordei desse sonho lindo,
que tudo daria para não dar por terminado.

Christina Camphausen's in book Yoni Portraits

473 - LEONOR AO CONTRÁRIO DO IMAGINÁRIO

                                    Obra de  Mairek Haiduk

Ao contrário do que muito boa gente pensa sou ferozmente apartidário, inda que simpatizante, sim, da razão e de vocábulos compostos, isto é, de sentido não único, aglutinados, junções de palavrões vários, que, dependendo da intenção ou do contexto em que se inserem ou os proferimos são ou podem considerar-se ou julgar-se dúplices, dúbios, metamorfoseados em figuras de estilo, eufemismos, metáforas, prazer que me ficou desde quando, sentado nos bancos corridos do antigo Farggi, hoje New Concept Coffee & Shop e jogando com a minha netinha Leonor à colagem de palavras como a Sandra e o José da Fonseca faziam e fazem com papel e outros materiais arrebanhados para as suas esculturas, construções ou instalações.

             Isto porque ela Leonor se prendera de amores pela obra de Marek Haiduk, cujos trabalhos versando a infância mui a tinham sensibilizado e, enquanto comíamos um mil-folhas, fugindo das coca-colas, jogando ao esconder com um velho abre-latas que em tempos recuados me oferecera um amigo ferroviário, agora reformado e engordando a pensão com uns biscates no sector rodoviário onde, num ferro velho da city, se transformara e reciclara em sucateiro, para bem-estar do mundo inteiro.

Eu, não querendo ser malcriado e fugindo ao ita não ita ita não há quem está livre livre está que ela teimava impingir-me, tratava-a por senhorita ita ita, e mostrando-lhe o horizonte, procurava distraí-la com essa linha divisória, ora recta ora inclinada, ora partida ou horizontal, raramente vertical e na maioria quebrada. 

               Assim abordámos uma manhã a Cruz-Quebrada, olhando o mar esverdeado, azul-marinho ou turquesa, do alto da falésia em meia-lua em cuja esplanada eu, qual mestre-escola, emborcava ou bebia uma sangria num instante, num pisca-pisca, diria ela, como noutras ocasiões acontecia em que, por um copo de vidro pernalta eu bebia a aguardente benfazeja que o frio da manhã me punha em falta depois de cumprida a lida na liça ou horta onde colheria as couve-flor que, osdespois, apuradas e depuradas em boiões plenos de vinagre, esse vinho acre do qual me socorro p'ra fazer os próprios pickles os tais que, além de me ocuparem salutarmente o tempo e a mente, me alimentam o amor próprio e apimentam a couve-flor com atum Bom-Petisco com que adoro regalar-me. 
Obra de  Mairek Haiduk

Posteriormente percorremos a pé o planalto sem construções frente ao café onde beija-flores esvoaçam em redor de meia dúzia de vasos que alguma alma piedosa colocou numa armação em tripé, donde arrancamos pelo pé uma qualquer linda flor antes de regressarmos ao torpor do banco corrido do café, visto ser até ali que o nosso raio de acção nos permite ir, ir em busca dos radiosos raios de sol expandidos pela luz da manhã nas mil cores do arco-íris, um passeiozito enganador para depois lhe dizer meu amor é hora de ires, está na hora de partires, e, inerentemente de terminar o papel de ama-seca, mestre-escola ou baby-sitter. Ela vive a menos de cem metros de mim mas nem sempre almoçamos juntos, digamos que cinquenta em cem será um número injusto e, quando o Justo passa na sua nova motoreta eléctrica sabemos ser meio-dia certo, exacto, pois se podem acertar por ele todos os relógios.

O tipógrafo que lida com a máquina linotipo ajustando-lhe os ritmos e os humores, o Canelas, passa apressado, como sempre, vemo-lo quase correndo do outro lado da vedação de vegetação quando ele, tropeçando numa qualquer coisa, ao invés de cair sai correndo ainda mais depressa do que viera até ali e foi aqui que nos rimos a valer, demos duas gargalhadas, apontámos ao destino e regressámos do safari que dia a dia ou dia sim, dia não fazemos ali, ao planalto florido e que nos deixa estender a visão entre os prédios da urbanização, do bairro, distendendo as pernas pelos atalhos cavados nas ervas conducentes ao tal decente tripé atraindo os beija-flores, com suas flores mais coloridas que coloridos são os namoros e as paixões de apaixonados embriagados e de aldrabões efeminados que, como nós, se passeiam por estes campos ou sertões imaginários deixados em herança precisamente a esse, adivinharam, ao nosso amigo Imaginário.

Bom almoço :)

Obra de  Mairek Haiduk


sexta-feira, 17 de novembro de 2017

472 - TER OU NÃO TER PEITO, OU MAMAS .........


Naquela época a estrada vinda de Beja ou de Reguengos não tinha a diversidade de variantes onde desembocar que hoje lhe conhecemos, pelo que, quando delicadamente travei para, cordialmente lhes ceder a passagem estava mesmo sendo gentil e prescindindo do meu direito de passagem pois apresentava-me pela direita. Mais que o código fiz valer a deferência. 

Correria o ano de 80 ou 81 do século passado, no máximo 82, a manhã radiosa, eu abrira o tejadilho da Dyane novinha em folha e, mesmo não querendo, juro ter tentado a todo o custo porém ao vê-los, o rosto, sem que o conseguisse dominar não evitou o largo sorriso que me aflorou aos lábios, provocando neles uma notória e visível atrapalhação, por não conseguido impedir-me tanta satisfação ao vê-los, mau grado todo o esforço posto nesse sentido a Fernanda corou que nem um pimentão não tendo eu podido deixar de pensar no por quê de tanto embaraço.

Apesar dos nossos olhos terem embatido uns nos outros contornaram na minha frente e sem me olharem a rotunda onde lhes cedera a passagem, não me cumprimentando sequer, fingindo nem me verem, sem que me apercebesse quanto aquele acaso me viria a custar, me viria a sair caro. No Num movimento repentino guinaram a meio da rotunda saindo dali como se alguém lhes tivesse pisado os calos, ou levassem fogo no rabo, eu, uma vez mais fiquei sem perceber tanta pressa, tanta precipitação, tanto mais que tinha o professor Nuno por pessoa calma e moderada, contida, comedida, circunspecto, prudente.

De nada me serviriam doravante os conhecimentos adquiridos ou tidos, lembro aqui ser eu uma dezena de anos mais velho que a média de idades da turma, das colegas, delas e deles, ser mais experiente, mais vivido, mais viajado. Aquele ocasional encontro à rotunda da Repsol ditara a minha sorte mui antes de eu mesmo o saber. E por falar em saber, saber onde ficava o estreito de Dardanelos, o Bósforo, o Mar de Mármara ou o Mar Negro e qual a sua importância histórico económica e até estratégica foi coisa que nada me deu a ganhar, inda que fosse dos que mais précuras respondidas contabilizasse no jogo do Quem Quer Ser Milionário, bem antes pelo contrário, facto de que somente mais tarde me viria a aperceber.

O professor Nuno leccionava-nos duas ou três cadeiras, História Económica do Ocidente, História Económica Social e Politica e Geografia Histórico Económica isto se a memória me não falha e se falhar não andarei muito longe da verdade, já lá vão uns bons trinta e tal anos.

Verdade verdade é que aquela estrada era linda antes do arranjo levado há uma meia dúzia de anos e do corte do arvoredo, uma recta alcatroada, ladeada de eucaliptos mal percorridos dois ou três quilómetros, um pulmão mentolado encostado à cidade, ar fresco, puro, caminhos rurais de terra batida atravessando os campos e pela qual poderíamos imergir numa encantada floresta de eucaliptos, tendo sido por mor deste encantamento que comecei a perceber o prof Nuno, o seu embaraço, a sua confusão, a sua aflição, a sua embirração para comigo, as minhas notas descendo como nunca esperara quando eu nem namorava, era tudo tempo ganho, já era casado e trabalhava, nem me distraía por aí além.

Eu estava sendo entalado como se o tivesse apanhado com as calças na não, não tinha, mas estava começando a ver o filme todo, a cena, e entendendo melhor a sua aversão por mim cujos segredos não lhe adivinhara quando do “embate” na rotunda mas agora eram traduzidos pelo meus olhos espantados.

De um teste que me correra excepcionalmente bem saí respondendo-lhe que nem que as perguntas tivessem sido o dobro, que me correra bem, e que melhor ainda teria sido caso pudéssemos ter respondido a todas elas uma vez que a opção era de cinco em dez à nossa escolha. Galgámos duas ou três semanas em que nem nos vimos e um dia, descendo eu a escadaria em caracol para o bar vinha ele subindo-as, ao ver-me nem aguardou que eu abrisse a boca e disparou:

- Então Baião, tão bem que lhe correra o teste e tira-me uma nota daquelas ?

- Stor, não leve a mal se abandonar alguma ou todas as suas cadeiras, para o trabalho que me dão não estou vendo resultados correspondentes, talvez por ser trabalhador estudante não ande a dar o rendimento que a mim mesmo exijo por isso, se tal vier a acontecer não estranhe nem me leve  a mal, ficarão para fazer mais tarde, nas calmas.

O doutor Nuno não se deu por perdido nem achado, virando-se para mim arengou durante mais de meia hora para me dizer o que posso resumir nisto:

- Baião, nunca dou mais que 10 a um trabalhador estudante, se você agora teve 8 no próximo teste levará com um 12. Oito com doze dará média de dez, irá com essa média a exame, onde lhe darei naturalmente outro 10. Fique bem.

Nunca um qualquer outro filho da puta tinha sido tão claro para mim, o meu destino estava traçado, verdade que nunca mais estudei a sério nas cadeiras dele, verdade que tudo e sempre foi como ele, qual oráculo, afirmara ou prometera. Para ele era uma questão de rectidão, ser recto, isso, recto.

Eu não tinha boas mamas, nem grandes nem pequenas, nem coxas que cobiçasse, comi e calei-me, ele comeu e fartou-se, acabou ministro dum qualquer governo que já nem lembro, a Fernanda directora de uma qualquer escola alentejana, terminara o curso com média de 18 ou 19, outras que por lá andaram com cotas de 36 umas, maiores outras e mais pequenas bem poucas, rabo alçado e pernas de morrer deixaram-me pensando quanta sabedoria caberia naqueles cus, perdão cérebros.

Eu nunca gostara dele, e então desde aí é normal, natural, nunca deixei de gostar de mim, cada vez mais, isso é o principal. 


quarta-feira, 1 de novembro de 2017

471 - ORA PONHA AQUI O SEU PÉZINHO ..............


  Há muitos anos já ensinou-me mestre Sena,* saudoso professor de economia que a morte levou de imprevisto e demasiado cedo para tanto que ainda teria para nos dar, nos porque era eu e a Luisinha e mais uma sala cheia de maltinha, mas ensinou-me ia eu dizendo, não ser a economia coisa de coca-bichinhos, sendo até uma bola fácil de rebolar, mais fácil arrastar esta que o escaravelho a sua, sua dele, dado cientificamente confirmado visto depender ou basear-se a economia na lei dos grandes números, coisa facinha de manusear e entender. 

 Bom bicho, digo bom tipo aquele José Sena, quando se punha a falar nunca mais se calava dando imenso gosto ouvi-lo. Tornava tudo fácil, pelo menos fácil de entender, de compreender, assimilar, e sobre as contas nacionais o deve e haver do estado, a despesa e a receita, eu diria agora o orçamento de estado, sobre o qual diria ele não ser mais do que uma conta de somar e subtrair, mal indo as coisas caso dessem em aritmética de sumir…

Sumiço levou ele antes de tempo coitado, ainda foi convidado a cumprir o seu dever cívico como presidente da Câmara Municipal de Estremoz mas foi sol de pouca dura, morreu no exercício do cargo, Deus é mais exigente que a contabilidade do estado, tendo-o requisitado quem sabe se para elaborar alguma auditoria às nuvens do céu ou a anjos e arcanjos.

Passados tantos anos parece-me ainda estar a ouvi-lo, eu e ele de barba rala, ele de sorriso sempre pendurado nas orelhas e eu com as ditas sempre espetadas a fim de não perder pitada do que dissesse. Afirmava ele e estou a citá-lo de memória, haver sempre em qualquer economia de um qualquer país minimamente organizado, sectores ou áreas por natureza geradoras de permanente prejuízo, afirmava-o referindo-se à justiça, ao ensino, à saúde, à segurança, áreas criadas para garantirem bem-estar e não para darem lucro, o que não significava que não o pudessem dar, daí serem por natureza permanentemente deficitárias.

Mas quem quereria abrir mão das vantagens que esses prejuízos e essas áreas nos traziam ? Ninguém quereria claro, embora nessa altura nenhum de nós adivinhasse quão caras nos viriam a ficar no futuro, futuro que é o hoje. Mas… acrescentava. Para além dessas áreas outros sectores da economia há igual e naturalmente deficitários e, dando uma volta sobre si mesmo rodopiando sobre o tacão de um dos sapatos adiantava:

- Os transportes, a administração pública, a cultura por exemplo, já não vivemos nos tempos gloriosos da revolução industrial em que o lumpemproletariado vivia lado a lado com as usinas, as machines, os empregos, hoje há necessidade de deslocar em movimentos pendulares dos dormitórios para as cidades e vice-versa milhares ou milhões de trabalhadores e se os bilhetes reflectissem o custo real do serviço de transporte ninguém os compraria, portanto a sociedade subsidia o sector dos transportes de molde a tornar suportável e acessível o seu custo fomentado a sua utilização, ela também e por sua vez vantajosa em termos económicos, sociais e ambientais, o mesmo acontecendo com a cultura ou a administração pública.

Naturalmente há que idealizar e projectar estradas, conceber e produzir ou adquirir material rolante, idem para portos e embarcações, bibliotecas, teatros e anfiteatros, palácios da justiça, edifícios camarários, hospitais, escolas, aeroportos, cais, pontes, tuneis, salas de chuto e complexos desportivos, polivalentes para arraiais, carruagens, autocarros, kimboios, portanto imensos sectores e áreas deficitárias, buracos e buracos para encher e preencher, e com tanto buraco onde ir buscar dinheiro, o muito dinheiro necessário para os alimentar ?

Mais um sorriso malandro, mais uma voltinha sobre o tacão do sapato, desta vez sobre o outro e em sentido contrário ao da volta anterior, para desfazer tonturas, rebentar nós, e naturalmente desatar o karma e desenlear o mantra, ficando de sorriso pendurado até algum de nós aventar uma resposta, uma hipótese ou uma asneira.
 
Informalmente a resposta certa era encontrada depois de uma algaraviada entre todos, vulgarmente achada após um longo intervalo e uma vez esvaziadas as bexigas e sorvidos os cigarros. Essas aulas eram animadas e participadas como nenhumas outras, e a resposta para um milhão era nem mais nem menos que a sugerida por uma balança cujo fiel era um porquinho desses que aparecem aleatoriamente como mealheiros no qual ele Sena, ele senhor professor espetava ou equilibrava um facalhão que para o efeito traria na pasta.

         Confuso ? Nem por isso, a explicação era simples, a colecta dos impostos (mealheiro/poupança) teria que chegar para quitar as despesas, não chegando havia que recorrer a uma de duas soluções, ou ambas em simultâneo, metia-se a faca ao pescoço do contribuinte e sugavam-se-lhes mais impostos, por isso a faca na ranhura do mealheiro, ou sacavam-se os lucros às empresas do estado. Portanto na balança do deve e haver, o que havia num prato teria que ser suficiente para equilibrar o prato contrário.

O sector empresarial do estado era e é, na maior parte do mundo que não nesta terra e neste momento, contemplado com monopólios altamente lucrativos como a electricidade, as comunicações, os combustíveis, a distribuição postal, e muitos muitos outros cuja importância estratégica aconselhava a sua posse nas mãos do estado, não só por serem estratégicos, como a energia por exemplo, mas por serem demasiado importantes para ficarem ao sabor das leis do mercado, leis implacáveis para com os de menos posses, o estado cuidava de que fossem lucrativas sem contudo nos esmifrarem sem qualquer arroubo de sentimentalismo serôdio. O dinheiro ganho por elas, os seus lucros, iriam colmatar os buracos na justiça, na saúde, no ensino, nos transportes etc etc etc…

Ora sucede que paulatinamente temo-nos desfeito de dedos e de anéis, isto é, já não temos essas empresas, aliás já quase não há empresas nas mãos do estado, pelo que quando haja necessidade de tapar buracos ou reforçar meios a solução é apertar o pescoço ao contribuinte. Nós ganimos, os chineses e muitos outros rejubilam com os lucros, culpa nossa, ninguém nos mandou vender as galinhas dos ovos de ouro. Hoje não temos EDP, nem REN, nem CTT, nem Telecom, nem estaleiros, nem SETENAVE nem LISNAVE, nem portos nem ANA nem aeroportos, nem OGMA, nem TAP, nem seguradoras nem bancos, a bem dizer nem temos as estradas do país, elas também entregues às celebérrimas PPP…

Que esperar do futuro ? Não sei, estamos a morrer mais e a nascer menos, emigramos, definhamos, não temos futuro nem segurança, um descuido e o emprego vai-se, e vai-se a casa, não há quem nos defenda, são só bluffs e faz de conta, e fico eu imaginando que se Puigdemont corre o risco de cumprir 30 anos pela brincadeira ou aventura catalã, quantos anos deviam apanhar os nossos políticos por andarem há 40 anos a gozar com este povo e a vender a pataco o país ? 

E termino deixando um agradecimento saudoso e sincero ao prof. José do Nascimento Dias Sena, homem animado dum modo de ensinar peculiar, ensinava brincando, e todos sabemos ser a brincar que se dizem as verdades e ter sido a brincar que o macaco foi ao... Pois foi com o prof. José Sena que muito aprendi, e aprendemos coisas que nem o Passos Coelho nem a Maria Luís Albuquerque nem o A. Costa sonham, ou nem sabem ou parecem nem saber, nem esses nem tantos outros antes deles, decididamente estamos entregues aos bichos…  

Amigos, façam as malas ou matem-se… Não vejo outro caminho…



* José do Nascimento Dias Sena (1953-1994), professor emérito da Universidade de Évora e último presidente da Câmara Municipal de Estremoz, falecido durante o exercício do cargo.