sábado, 30 de abril de 2011

43 - TRISTEZA... (ou o meu 25 de Abril*) ....................

               

Contra meu hábito, mal dormira nessa noite. Pesadelos e sombras pressagiavam já o que eu não entenderia nos dias, semanas, meses e anos seguintes. Por isso recordo ter acordado muito cedo nesse dia fantástico, não tanto devido às insónias sonhadas mas antes devido ao alarde que desde madrugada se fizera sentir na quintarola.

Como por artes mágicas tudo naquela manhã se conjugara para que jamais a esquecesse, se bem que na minha modesta idade não me fosse permitido entender os prodígios a que assistia e impossíveis de, em minha mente, serem de imediato transformados em augúrios felizes de dias vindouros. Nessa manhã de sol a quinta parecia ter ficado entregue à bicharada e eu, sozinho, reinando ignorado no meio dela. Galos haviam abandonado o galinheiro escavando com unhas poderosas os locais mais inconcebíveis da quinta, modelarmente arrumada e engalanada por canteiros de diversas espécies, onde o sol avivara a clorofila e rebentos de variadissímas flores matizavam de cores diversas o espaço a perder de vista. Poedeiras pedreses viravam, sobranceiras, as costas ao cativeiro e depunham os ovos nos lugares mais dispares e que vez nenhuma tinham pisado, mostrando, arrogantes, soberbas poses que a vida inteira lhes tinham sido interditas.

Que me lembre, nem caseiro nem quaisquer outros dos homens apareceram nesse dia e, aflitas, as vacas mugiam impacientes, amojos cheios que nem balões de festa majestosa, sem viv'alma que lhes acudisse. Cães corriam de lado para lado enlouquecidos pela festa e era absurdo não entender os seus latidos como advertência e agoiro de milagres futuros que teriam, certamente, eles e eu, a felicidade de vivermos. Tal era a minha alegria e a de todos quantos na quinta não estavam que nem dei pelo sol transpor o zénite e, absorto, aguardava, vendo passar filas e filas de gentes entusiasmadas, empunhando cartazes e gritando palavras de ordem que hoje entendo como traídas no tempo, pois desse dia apenas a minha tia Inácia, ainda viva, conserva o mesmo sorriso, um sorriso de esperança que na hora afivelou, dia em que pela primeira vez a vi bater com a mão no peito e lhe soube de um filho que alguém levara para as longínquas terras do Gungunhana, onde jazeu, nome estranho que me assustou e cujo pavor só ultrapassei meses mais tarde.

Também por esses dias me foi dado a conhecer o primo Hilário, recém chegado dessas terras remotas e que pisou pela primeira vez esta metrópole que jamais conhecera ou vira, razão pela qual nem considerou a importância de tão banal pisadela. Pelo fim de tarde a festa era já um arraial colossal, embora eu não lhe entendesse a causa, habituado que estava às comemorações do Natal, Carnaval, Páscoa e Senhor dos Passos, em que multidões se arrastavam pela vila, apesar dessas vagas nem por sombras terem, nem nos seus melhores dias, chegado aos calcanhares do mar de gente que seguia agora eufórico, desfilando alvoroçado a meus olhos.

Então, como hoje, todos falavam mas ninguém ouvia, cresci portanto no meio de gentes meio surdas que prolongaram no tempo, embalando-me e iludindo-me, histórias de felicidade inventada, prometida e futura, que ainda hoje estou à espera de ver e viver e, desse dia mágico, ficou-me uma esperança teimosa e um optimismo militante que, uma vida inteira vivida, finalmente lograram acomodar no sótão das ilusões em que guardei os pesadelos premonitórios, os sonhos prodigiosos e todas as recordações deslumbrantes dos presságios que nesse dia vivi.

É domingo, nuvens toldam o dia, e o futuro anunciado é de um inverno glaciar onde nem as aves se atreverão aos voos rasantes e às piruetas de outrora, e eu, triste, acordo e lamento que o meu sonho não tenha continuado...