quarta-feira, 29 de junho de 2016

355 - DEFINITIVAMENTE q.b. igreja de S. Vicente...

 "Temeraire" um dos mais lindos quadros do pintor  inglês William Turner

Estou habituado ao ar festivaleiro com que por vezes sou recebido, agrada-me a empatia que muitos dos meus amigos me prodigalizam e procuro retribuir-lhes na mesma moeda, mas ontem, mais precisamente segunda-feira, ainda estaria a cem metros da Igreja de S. Vicente quando, repentinamente, campainhas tinindo e luzinhas piscando, de tal modo que, não fossem dez da manhã e pensaria ter entrado pelo S. João dentro.

Lesto enfiei a mota no estacionamento e desliguei a chave com brusquidão calando a charanga. Nunca tal me acontecera, e afinal tanto banzé nem festejava a minha chegada ao vicentino santuário, para visita a mais uma iniciativa levada a cabo pelos Ciclos de S. Vicente, e que até depois de amanhã, portanto 30, estará patente em exposição no dito templo. A charanga, chamando a atenção de todos sobre mim, afinal tinha que ver com a gasolina que entrara na reserva, coisa que apesar de ter a mota há dois para três anos nunca me acontecera. Raio de modernismos.

Os CS~V, Ciclos de S. Vicente são uma meritória iniciativa da Colecção B, Associação Cultural, que de uma forma inteligente e expedita procura ocupar positivamente um espaço nobre no centro do burgo e, em simultâneo, presentear-nos com mostras culturais que animem a urbe com um tipo de oferta em que ela é manifestamente carente. Não é fácil. A exposição desta vez apresentava-se como “Definitivamente q.b.” embora eu tenha ao chegar a casa aberto no pc uma pasta com um ficheiro a que dei o nome de “até sempre”. Mas vamos com calma e não dêmos o corpo pela alma, pois é a alma que a exposição ali instalada, ou a instalação ali exposta, nos quer acicatar. 

Tenho pena de vos não trazer aqui fotos, pela segunda vez no momento crucial a bateria nem um flash vomitou, pelo que me fiquei p’la contemplação dos folheto explicativos da Beatriz Agria e da Inês Gomes e, lendo os folhetos e avançando pela igreja adentro, andando isto tudo ligado cada palavra delas despoletava uma conexão entre os meus neurónios, já avivados pela charanga da indicação de reserva do combustível e portanto excitadíssimos, pulando contentes na penumbra fresca e sacra pelo que abandonei o pensamento, afim de que as ideias fluíssem entre mim e um outro ser que também eu, um de nós encafuado na sua capsula do tempo o outro tentando sair da casca, interligando-se ambos, entrecruzando-se num sistema de vasos comunicantes em que o percebido e o sabido finalmente se equilibraram devendo ter sido aqui que confidenciei ao Marco;

- Já valeu a pena Marco, só pelos folhetos já valeu a pena, “… a conexão de todo o conhecimento adquirido… “ então não é Marco que só ontem ao ler o Expresso soube, soube eu e devem tê-lo sabido uns milhares de pessoas, que aqueles céus vermelhos tão característicos nas pinturas de Turner não se devem à sua suposta vontade de impressionar, mas ao facto de na época não sabermos o que se passava na rua ao lado, quanto mais do outro lado do mundo. Conectar é somar, é saber tudo. 

O simpático Marco Miguel é o guardião da igreja, o seu anjo da guarda, ou cão de fila, cada um que o julgue que eu nada lhe devo nem sou seu confessor, a mim tem-me demonstrado bastas vezes a sua gentileza e empatia ainda que nunca me tenha pago um gelado ou sequer uma bica na Zoka, ali mesmo à frente, mas enfim, feitios.
Meia porta da igreja de S. Vicente comida pelo sol.

Mas voltando a S. Vicente, bem sei que aquilo não é o Guggenheim, a Tate Modern ou o Grand Palais, onde há pouco o nosso Amadeo de Sousa-Cardoso marcou presença, nem eu sou o prof. Jorge Calado, mas mantenho-me au pair como dizem os franciús, até deambulo por lá nas minhas visitinhas online que nem sempre são à borliú.

Parece que o nosso Amadeo Sousa-Cardoso será finalmente promovido a Amadeo, como Matisse o foi a Matisse, Picasso a Picasso, Cézanne a Cézanne e Vincent a van Gogh, Monet, Gauguin, para citar aqueles que toda a gente conhece, Amadeo sim, Amadeo simplesmente, como Bosch, Bosch, Black e Decker Black + Decker, Junkers Junkers, Mazda Mazda, que nestas coisas o nome conta, conta contra tudo e de modo singular contra os preconceitos.

Mas ia eu meditando nos folhetos da Inês e da Beatriz e pensando que valeu a pena lê-los. Dizia eu para o Marco que isto anda tudo ligado e não vale a pena a Inês condenar-me ou forçar-me à participação como o folheto observava, pois há coisas em que acreditamos mas pelas quais jamais seremos capazes de mexer um dedo, um pé, ou dar um passo. Como raio vou eu habitante pobre de uma pobre cidade provinciana fazer frente à frota baleeira japonesa operando na Antárctida e chacinando baleias ? Ou como raio posso lutar contra os machos dinamarqueses que num festival anual de excessos e sangue se fazem homens desfazendo golfinhos ? Ou como iria eu enfrentar as petrolíferas que ameaçam os mares do norte cujas plataformas, mais de seiscentas, irão ser desmontadas, mas apenas quatrocentas e setenta delas nos próximos trinta anos ?

Mais de 600 ! Quer dizer, nem me atrevo a imaginar ou a ligar a menor importância às três ou quatro que querem erguer no Allgarve, quem me dera petróleo mais barato que já não ganho para a gasolina. Confesso estar fartinho de assinar petições online pelas baleias, pelos golfinhos, pelas girafas, pelo Mar do Norte, contra a destruição do ambiente, contra a Monsanto, contra o Japão, contra a Dinamarca, a Noruega a Finlândia a Suécia a Rússia a China a Austrália, pelo Tibete, pelo Butão, pelos linces, pelas abelhas, pelos magriços, pelo Zico, pelo Palito, e contra o Palito, contra o Vale e Azevedo o Joe Berardo o Salgado, o Jardim Gonçalves e o outro Jardim, o da Madeira, o Catroga e o Mexia, o Vara, o Guterres, o Barroso, o boca de favas, o piquinino, e nada se mexe, o mundo está condenado a ser consumido, condenado à avidez, à destruição, e ainda o Marco Miguel se preocupa com o património e as portas da igreja, mas é precisamente por isso mesmo que gosto dele estão vendo ?

Os folhetos da exposição estão bons, gostei de os ler, provocam, lembram, relembram, despoletam, criam, motivam, a Beatriz e a Inês deviam apostar nos folhetos, dedicar-se aos folhetos. Já vos disse que por falta de bateria não tirei fotos ? Ao menos valha-nos isso, mas deixo-vos aqui ideias, meditações, invocações, ilustrações, visões, impressões, opiniões, e à borla, que mais poderiam desejar ?

Ainda a propósito de William Turner, o tal que se mandava amarrar aos mastros dos navios durante as tempestades para não perder pitada do espectáculo da mãe natureza e poder depois replicá-la fielmente na tela, o vermelho dos seus céus tem que ver com o que o padre bracarense José Manuel Tedim nos conta sobre o ano de 1815, chuvoso e frio, com as vindimas a fazerem-se somente nos fins de Novembro e os frutos a amadurecerem em Janeiro seguinte. Hoje temos uma visão completa e sincrónica do mundo, nessa época porém muito reduzida, parcial e diacrónica, hoje sabemos ou conhecemos os efeitos mundiais, i.e. por todo o planeta, da eruptiva convulsão do Tambora em 1815, e sabemos pelo registo dos anais dos estaleiros que o “Temeraire” foi pintado em 1815, ano em que esse navio veleiro foi rebocado para ser desmantelado após uma vida gloriosa ao serviço da esquadra de Lorde Almirante Horatio Nelson tendo participado na célebre batalha de Trafalgar. Turner pintou o céu vermelho porque o Tambora espalhara por toda a atmosfera e estratosfera o seu pernicioso efeito, que o fiel pintor captou para a tela. Contrastando com o dito hoje sabemos o que se passa no mundo e desconhecemos o que fazem na nossa própria rua. 

Quanto à exposição/instalação em si, e já apreciei algumas cuja critica neste blogue se encontra*, bem, vamos lá, diria que não é de bom tom desmoralizar a juventude e que a Inês e a Beatriz são ainda novinhas e coiso e tal, acrescentarei ser a arte cousa de sua natureza altamente subjectiva, para acabar recomendando-lhes poisarem os olhos na Áurea, também ela frequentadora do curso de artes da UE, portanto uma ex-colega, e sobre quem já ficcionei neste blogue, é verdade que a Áurea às tantas acreditou saber mais que os mestres, ou o suficiente, mas a Áurea arriscou, arriscou aquilo que se diz couro e cabelo, singrou, trabalhou, vingou, porque era boa no que fazia, a Inês e a Beatriz que tentem o mesmo, porque não vale andar a brincar às exposiçõezinhas, alguém tem que dizer alguma vez às jovenzinhas que melhor que aquilo até a exposição de garrafas recicladas com que as criancinhas fazem as árvores de Natal que expõem na Praça do Geraldo na época indicada. Para terminar, se ainda não foi ver aquilo não vá, nem perca tempo, espere que elas cresçam, elas as artistas.

PS: Procurei o normal livro de presença dos visitantes para deixar a impressão da minha desilusão, mas tinha sido retirado ou nunca lá tinha estado, então pensei que a Beatriz e a Inês poderiam não ter culpa naquilo e ter sido simplesmente manobradas e levadas ao engano, aliciadas a preencher o verbo encher. Como diz um amigo meu bem informado e por dentro destas coisas, as miúdas podiam ter sido instadas a tal, e todo aquele estaminé poderia não ter outro propósito que fazer número, a fim de serem preenchidos os requisitos exigidos pelos concursos de acesso aos subsídios para as artes, para a cultura. Todavia conheço demasiado bem esse meu gárrulo amigo, demasiado bem para não lhe dar o devido desconto. Contudo não adianta muito perquiri-lo inquisitorialmente pois é um tipo com uma imaginação muito fértil e muito maus fígados. Recuso-me acreditar no que diz, mas a gente vê tanta coisa, e cada porcaria…

Quadro de Amadeo Sousa-Cardoso, chamariz da sua recente Expo em Paris.