sábado, 9 de fevereiro de 2019

578 - MUNDO VIRTUAL, by Maria Luísa Baião * ...


Entrei apressada e com fome no restaurante. Escolhi uma mesa bem afastada do bulício, pois queria aproveitar os poucos minutos de que dispunha naquele dia atribulado, para comer e ler alguns mails que acumulara, além de pretender planear a minha próxima viagem de férias, coisa que há tempos ando para fazer. Pedi um filé de salmão com batatas a murro em molho de manteiga, uma salada e um sumo de laranja, afinal de contas fome é fome, mas regime é regime não é ? E dieta é dieta não ?

Abri o meu caderno de apontamentos e levei um susto com aquela voz baixinha atrás de mim:

- Tia, dá-me uns trocos ?

 - Não tenho, menino.

- Só uma moedinha para comprar um pão.

- Está bem, eu compro-te um pão.

Para variar as páginas de e-mails eram mais que muitas. Fico distraída lendo-as; poesias, fotos lindas, soltando gargalhadas com as piadas malucas. Ai aquelas imagens de Londres e boas lembranças de outros tempos e de outras viagens. Calhava bem ir até lá, não conheço.

- Tia, pede para colocarem margarina e queijo também.

Percebi que o menino tinha ficado ali.

- Ok. Vou pedir, mas depois deixa-me trabalhar, estou muito ocupada, está bem ?

Chega a minha refeição e juntamente com ela o meu constrangimento. Faço o pedido para o menino e o empregado pergunta-me se quero que mande o garoto embora. Os meus resquícios de consciência impedem-me de aprovar tal. Digo que está tudo bem. Que o deixe ficar. Que traga o pão e mais uma refeição decente para ele. Sentou-se então à minha frente e perguntou:

- Tia o que está fazendo ?

- Estou lendo uns e-mails.

             - O que são e-mails ?

 - São mensagens electrónicas mandadas por pessoas via Internet (sabia que ele não ia entender nada), mas, a título de livrar-me de maiores interrogatórios ainda acrescentei:

- É como se fosse uma carta, só que via Internet.

- Tia você tem Internet?

-Tenho sim, é essencial ao mundo de hoje.

- O que é Internet ? (volveu ele).

- É um meio através do computador, através do qual podemos ver, ler e ouvir muitas coisas, notícias, músicas, conhecer pessoas, ler, escrever, sonhar, trabalhar, aprender. Há de tudo no mundo virtual.

- E o que é o virtual ?

Resolvo dar-lhe uma explicação simplificada, novamente na certeza que ele pouco vai entender e me vai deixar em paz para comer a minha refeição sem culpas.

- Virtual é um local que imaginamos, algo em que não podemos pegar, tocar. É lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer e fazemos. Criamos as nossas fantasias, transformamos o mundo em quase como queríamos que fosse.

 – Boa tia, dessa Gostei !

- Menino, entendeste o que é o virtual ?

- Sim, também vivo nesse mundo virtual.

- Tu tens computador ?

- Não, mas o meu mundo também é desse jeito... Virtual. A minha mãe fica fora todo o dia, só chega muito tarde, quase não a vejo, eu fico cuidando do meu irmão pequeno que vive chorando de fome e eu dou-lhe água para ele pensar que é sopa, a minha irmã mais velha sai o dia todo, diz que vai vender o corpo, mas não entendo, pois ela volta sempre com o mesmo corpo, o meu pai está na cadeia há muito tempo, mas sempre imagino a nossa família toda junta em casa, muita comida, muitos brinquedos, de natal, e eu indo ao colégio para um dia ser médico.

- Isso é virtual não é tia ?

Fechei o meu caderno e o portátil, não sem que antes as lágrimas caíssem sobre os papéis. Esperei que o menino terminasse de, literalmente "devorar" o prato dele, paguei a conta e dei-lhe o troco que me retribuiu com um dos mais belos e sinceros sorrisos que já recebi na vida e com um:

- Obrigado tia você é boa pessoa !

Ali, naquela instante, tive a maior prova do virtualismo insensato em que vivemos todos os dias, enquanto a realidade cruel nos rodeia de verdade e fazemos de conta que não percebemos !

Menino Chorando, pintura de Giovanni Bragolin, 1940


* By Maria Luísa Baião,‎ ‎escrita quarta-feira, ‎15‎ de ‎Março‎ de ‎2006, pelas ‏‎16:40h e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes. A escrita deste texto foi motivada por troca de conversa cibernáutica 
com o meu amigo Carlos Magalhães.


577 - AGRADECIDA, MUI, by Maria Luísa Baião *…



Prezo muito a amizade. Se sincera, sólida, desinteressada, é do melhor que podemos dar e fruir. Recebo frequente e felizmente muitas provas e testemunhos nesta órbita. A todas e todos agradeço as palavras, solidariedade e consideração, mas sobretudo o gesto de simpatia e empatia, retribuo-vos declarando-vos, como não poderia deixar de ser, a minha pública amizade.

Toda a minha vida tem beneficiado desse vosso conforto, tudo tenho feito para que não vos fique devedora ou vos desiluda. Sem querer minimamente ferir susceptibilidades, da amizade mais chegada ao simples conhecimento ou simpatia que me dedicam, desejo hoje prestar um vero agradecimento a uma pessoa especial que, embora ultrapasse o que legitimamente devo esperar, abertamente me admira e considera, e o afirma, coisa que várias vezes me fez ruborescer, deixar pouco à vontade e julgar imerecidos, quando não despropositados ou exagerados os seus elogios.

Surpreendentemente trata-se de uma amizade com a qual a propósito dos mais díspares assuntos nem sempre me encontro de acordo. Contudo, valha a verdade que tal só nos tem trazido proveito, pois é da discussão que nasce a luz e tantas vezes o reconhecimento de uma ou outra posição, encerrando e enriquecendo o capítulo, a razão.

Nacionalista e regionalista convicto, tem contribuído para o meu esclarecimento e formação em domínios nem sempre por mim compreendidos na sua particular dimensão. Autodidacta e homem de longa vivência e experiência, é, como eu, socialista empedernido, se não mesmo lícito afirmar-se sermos ambos mais socialistas que o socialismo admitiria nas suas balizas, tantas vezes redutoras quanto o podem ser os limites de qualquer ideologia, já que vertemos opiniões regidas pelo próprio pensamento e fruto da avaliação da evolução do “homem” na nossa sociedade.

“Urbana”, como tantas vezes me apelida, tem sido através das suas teorias e explanações que melhor tenho entendido a estrutura agro-rural do Alentejo e do país, tanto quantas as implicações da estrutura fundiária que mantemos e a imbricada relação com o nosso bem-estar, qualidade de vida e em última análise a estrutura social que desde o 25 de Abril temos produzido.

Tanto devo a esse rural rústico, todavia como vêem, não será impunemente que me apelida de “urbana”. Chegou o momento da vingança. E não espere que lhe peça perdão por isso porque não tenho intenção de o fazer. Fica avisado. Não o quero só para mim, podem lê-lo aqui nas páginas deste diário ou numa simples ida ao Google, digitando “alentejoagrorural” e reconhecerão com quanta dedicação e paixão deixa transparecer aspectos por tantos considerados prosaicos, contudo oferecendo-nos veras lições de história, sociologia, agricultura, e, pasme-se, até de gastronomia da nossa terra, o que, juro, é do melhor que Portugal tem.

Pois esse meu amigo, que se vai mantendo jovem apesar dos muitos anos que tem, com este exercício para o espírito, a escrita, cada vez mais me convence das razões da sua razão, se com esta afirmação consigo ser específica. A sua “doutrina das especificidades” como lhe chamarei, aliada a outras vozes e leituras que capto, levam-me hoje a crer que, a par de algumas vozes que se vão ouvindo já, a nível mundial, não estar provado que a para tanta gente famigerada globalização, fruto de um liberalismo selvagem que virou moda nas últimas décadas um pouco por todo o mundo, seja um elemento positivo para o equilíbrio social e económico dos países do mundo, do globo.

África, América latina, oriente asiático, têm beneficiado com tal moda ? Adquirimos-lhes mais produtos ? Produzem mais ? Ou viram crescer o desemprego e a miséria ? Vendemos-lhes, nós, países ricos, mais produtos e serviços ? Conseguimos ou estamos em vias de conseguir um maior alcance que as intenções, pois disso não passaram, que se anteviam no moribundo ou já enterrado diálogo Note Sul ? Há menos fome e menos pobres, menos excluídos no país e no mundo, agora que antes ? Por que não advogam tanta democracia e liberdade propaladas pelos países ricos, a liberdade de circulação das pessoas ? E a Turquia ? E a queda demográfica europeia ?

Cobiçamos-lhes as matérias-primas, fixamos os preços dos seus produtos nas nossas bolsas, de Tóquio a Nova Iorque, enchemo-los dos nossos produtos acabados e arrecadamos as respectivas mais-valias. Enriquecemos com a pobreza que espalhamos. Ganhamos tanto menos quanto mais deslocalizamos, e alegremente vamos hipotecando o nosso equilíbrio e harmonia social. Até quando ?

Virá o dia, como diz o Francisco Pândega, em que a miséria será tanta que nada mais nos restará que voltar à ruralidade de subsistência e de impotência que nos mina ? Oxalá esse pesadelo nunca vire realidade, oxalá. O tempo o dirá, acredito que a nossa amizade durará para além da constância com que tal pesadelo sub-repticiamente se instala e contra o qual tanto se bate.


* By Maria Luísa Baião,‎ escrito ‎ quinta-feira, ‎29‎ de ‎março‎ de ‎2007 pelas ‏‎10:24 horas e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes. Homenagem ao meu amigo Francisco Pândega que alimenta com a sua sapiência o bloguealentejoagrorural”, link  http://alentejoagrorural.blogspot.com/

576 - O MISTERIOSO SENHOR X, by Luísa Baião *


Há muito tempo que regularmente, semana após semana, quer esta coluna seja publicada quer não, o empático senhor X me remete um e-mail de regozijo, parabéns, contestação, critica ou incentivo e impreterivelmente na própria segunda-feira da publicação ou não, desta coluna. Em abono da verdade se diga que é muito simpático, educado, cerimonioso e contido q.b., pelo que, embora o não conheça, tenho dele a ideia de um jovem na casa dos cinquenta, que terá frequentado a velha escola e os velhos cursos. O domínio da gramática da sintaxe da ortografia e semântica da língua mãe, a par da educação e do civismo demonstrado assim o atestam, uma vasta cultura e o conhecimento que detém sobre aspectos mais herméticos da minha prosa dão-me essa certeza absoluta.

Não sendo o meu único correspondente será todavia o mais representativo, pela acutilância do pensamento, a constância da sua presença semanal no meu correio electrónico e a parcimónia que o alimenta, já que nunca alvitrou conhecer-me pessoalmente, nem envidou dois dedos de conversa ou um simples café. Mantém uma distância salutar e uma independência que eu respeito e talvez por isso lhe pague na mesma moeda. Apreço e consideração.   

Moderado, nunca deixou quando o entendeu, de fazer uma crítica ou contestar o que digo, sempre de forma correcta e construtiva, parecendo por vezes temer melindrar-me. Apenas o conheço pelo endereço electrónico, não faço a mínima ideia de quem seja, mas agradeço-lhe tanta afabilidade e regularidade vai já para três anos ou mais.

Posto este preâmbulo as palavras que vou dirigir-lhe são para todas as minhas leitoras e leitores, em especial para as (os) que comigo trocam correio ou mensagens e vulgarmente se queixam do facto de eu ser “medrosa”, de “não abrir totalmente o jogo” e por vezes as minhas crónicas serem autênticos exercícios de adivinhação, a tal ponto que sucede o senhor X esporadicamente as apelidar de oráculos !

Aprendi há muito e isto a propósito de haver quem afirme que o Diário do Sul só servirá para saber quem morreu, aprendi há muito com o seu velho Director que, na nossa cidade e no Alentejo somos uma grande família, onde todas temos parentes onde quer que seja, sendo impossível atacar uns sem melindrar outros. Num Alentejo desertificado a consideração e apreço pelos leitores conta. Também o sei, e se sei.

Do hermetismo destas crónicas, cada uma, cada um, que tire a ilação que entender, crónicas haverá que por mor disto poderão ter até mais que uma leitura, desenvolverão a imaginação, aguçarão o engenho e a capacidade de análise e crítica das leitoras, sem nunca serem, disso não há necessidade, ofensivas para quem quer que seja. Por outro lado compreenderão que há, sempre houve e haverá, temas tabu que não me compete a mim lançar como provocação ou a debate. Para isso existem lugares próprios, desde fóruns de cidadãos a associações, meios de comunicação e partidos políticos.

Sempre haverá quem melhor que eu conheça e domine os temas que gostariam que eu “esfarrapasse”. Neste mesmo jornal há quem a esses temas se dedique com proficiência e regularidade, com seriedade, boa-fé e boas intenções. Será que os lêem ? Ou passam por cima e só vos agrada o que escalda e queima ? A minha coluna neste jornal não é um anódino ou anónimo blog, é a expressão sincera e aberta do meu sentir, é um modo de convosco me dar, convosco conviver e não para vos ofender ou a quem quer que seja e muito menos modo de alimentar fogueiras ou boatos. É um modo de me conhecerem melhor já que pela cara e pelo nome ninguém me alcunhará de anónima ou sequer simpatizante desse lugar cómodo que o anonimato a tantos propicia.   

Esta coluna encerra mensagens que devem descodificar, não flechas que eu deva atirar. É por estas razões minhas amigas e amigos, que não embarco em certas loas ou temas que me sugerem. Por outro lado, leiam bem nas minhas linhas e entrelinhas e digam-me quantas vezes eles são abordados pelo seu lado humano, pelos resultados de uma acção ou pela reacção a um qualquer efeito.

Respeito e consideração devo eu e todas a toda a gente. Quem que não eu se considera no direito de lançar a primeira pedra ?

* By Maria Luísa Baião,‎ escrito ‎ segunda-feira, ‎12‎ de ‎Novembro‎ de ‎2007 pelas ‏‎15:32 horas e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.

575 - GOSTARIA DE TER IDO, by Luísa Baião‎ * ...


Na lufa-lufa dos dias algo por vezes se perde, um comboio, um autocarro, ou outra coisa que enerve. Também eu, como quem ferve em pouca água, que tanto queria ter estado presente, perdi por falta de secretária e de álibi, um evento que na semana passada teve lugar na U.E. e promovido pelo Núcleo do Alentejo da Associação das Mulheres Empresárias, por mor disso ganhei um frenesi, dos tais que tanto incomodam quem por vezes quer estar em dois lados ao mesmo tempo.

Foi realmente uma falha minha, falta de sentido de oportunidade, coisa de que não me desculpo, já que não tenho, avulso, “parenta” internada ou em maternidade.

Promoveu na nossa terra, há dias, a Coordenadora Regional da instituição a que aludi, uma mulher pró-activa, uma guerra no feminino p’lo combate sem tréguas a desigualdades certas que afectam as nossas mestras de ofícios e misteres. (e mestres).

Não foi o amadorismo a causa que ao nosso antigo Liceu levou o dever dessa mulher a valer, que ali reuniu personalidades e vontades como quem força a capicua, forçando mentalidades, desta e de outras cidades, a fazer por vivermos ou melhor por sobrevivermos, como faziam os frades, pegando numa charrua se é que queremos comer.

Não se falou de turismo, nem tão pouco de biscates, antes de muitas e variadas artes para as quais se buscou sim um caminho, um incentivo que, não o duvido, com mulheres deste quilate desate o nó de disparates que há anos se vem atando e sofrendo, qual sorvedouro ou remoinho, nado e criado por gente que sempre disse que nunca haveria défice e outros dislates tais, mas que de modo intemporal e paulatinamente, desde há décadas nos mente.

“Empreendedorismo” disse ela era a palavra de ordem, força que teremos que buscar como quem busca uma janela d’onde, de forma singela nos ergamos do abismo sustentado onde jazem enterrados o saber e o progresso tão aclamado, que muitos dizem ser sucesso mas que nesta terra como tudo, não vemos nem por um canudo.

É a economia, dizem, agora nova panaceia global e que temos que enfrentar com a mesma coragem com que enfrentaríamos decerto um qualquer bravo animal. Jargão que muito orador usa como canto de sereia, pois de diagnósticos, prognósticos e teóricos andam as páginas de jornais cheias. E como nada se perde, tudo se transforma ou se cria, a mulher, no plural, tem que ter verve, energia, para alterar um conceito que fará da noite dia e não se quer mais um pregão mas sim uma tomada de consciência, aquiescência, militância.

Desenvolvimento a preceito era por certo aquilo que mais queríamos todas, não esta feira de vaidades em que há muito se mantém a escassez de actividades no concelho, no distrito, até mesmo no país. Queríamos era ver isto crescer, a andar para a frente a valer e de modo que alimentasse fogos de continuidade, focos de actividade, ou como agora se diz em economês, que quebrasse a passividade, gerasse sinergias e empatias, milagre que permitisse alavancar o arranque do investimento feito mas serenando em águas de bacalhau, que lograsse optimizar a captação de novas unidades industriais ou empresariais, que nos catapultasse para um ranking capaz de nos resgatar à vergonha dos rácios que apresentamos...

Claro que essa mulher de peso deve conhecer a trabalheira que tem às costas, farta deve ela estar de fazer orelhas moucas aos velhos do Restelo, que também os temos como temos infelizmente e às dúzias, gente contaminada com o pior dos tipos que as muitas variedades de cegueira apresentam, que é aquela muito típica dos que não querem ver nem à força.

Incómodos, é o que essa mulher anda a trazer-nos a todas, incómodos que, queira Deus consigam fazer despertar do sono dos justos tantas e tantas instituições que proliferam na nossa terra e parecem acordar de um ano inteirinho dormindo, simplesmente para elaborar o Plano de Actividades e o Orçamento do ano seguinte.

Conseguirá ela ? Deus a ouça.

By Maria Luísa Baião,‎ escrito ‎quinta-feira, ‎4‎ de ‎Dezembro‎ de ‎2003 pelas ‏‎19:56 horas e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes. Homenagem a Anabela Palma coordenadora do Núcleo do Alentejo da Associação das Mulheres Empresárias. 

574 - A VIDA É UM PALCO... ‎By Maria Luísa Baião*


Passadas foram as férias, é com gosto que regresso a velhas amigas e amigos, até porque algumas me fizeram já sentir estar a faltar às minhas obrigações.

Entre eles um que conheço há muito e por quem tenho grande apreço, a quem os deuses por razões que ninguém sabe deram o castigo de Tântalo, vê a vida escapar-se-lhe entre grades que o não cercam, mas que vorazes lhe tolhem os passos do desejo, do sonho, da liberdade que a alma em chama clama, surda, muda e moribunda, cega ao passar das horas, dos dias, da vida.

Outro, que conheço menos bem e nem me lembra desde quando nem porquê, não mais felizardo que o primeiro, padece do tormento de Sísifo, tendo penado toda uma vida, carregando pesado fardo, numa gruta em que passou a vida desfiando uma roca a que os fios do destino nunca permitiram compor mais obra que a um artesão, ainda que suas mãos sejam capazes de milagres sem os quais a técnica que tantas vezes nos deslumbra, pararia.

Boas almas a quem a vida enganou sempre, engana ainda e enganará mais, mesmo que o não creiam, enredados em coisas tais como um dedal de linhas amarelas ou num engenho capaz de tornear as peças mais singelas.

Não sou diferente, quem me dera, também eu carrego a minha cruz. Quantas crónicas não compus eu já, que por pudor não coloquei nesta janela semanal, tão só para que não me julguem mal.

Tântalo reparou na máscara que levava nesse dia, é verdade, não era realmente eu mas era eu só, a quem os deuses forçam a tantos papéis desempenhar, que me vejo grega para os desembrulhar. Sou mulher, sou filha, esposa, mãe, terapeuta, voluntária, autarca, cronista e... É tão vasta a lista... Que de assistente social a psicóloga, não há maleita que me não bata à porta.

Não são máscaras que empunho no meu dia-a-dia, são diferentes papéis a que o teatro da vida me obriga, e vos garanto que entre o riso e o pranto, busco metodicamente que a comédia, o drama e o trágico que em mim vivem, não vos arrastem no momento ou no lamento que calada sofro.

A vida é um palco, procuro dar o meu melhor mas por vezes me interrogo, se vale a pena, se consigo, mas nunca se me esforço. Sempre dei o melhor de mim, será que serei mais feliz assim ? Serei mais feliz no fim ?

A Personalidade é tão de cada um de nós como uma impressão digital, é fruto de contactos e experiências pessoais, é feita também de desilusões e ais, de frustrações, traumatismos e algumas doses de contentamento por vezes tão banais que, melhor seria dar outro rumo à vida, sair do palco, de cena, buscar noutras paragens suspiros e futuros que aqui de reais têm somente difusos estigmas virtuais.

Nem só os amanhãs que cantam se ouvirão jamais, a dignidade, a solidariedade, a igualdade, a competência, o mérito, o esforço, a recompensa, onde param, quem os viu passar ? Onde ? Quando ? Não foi para ver assim este país e dez milhões de almas que chorei de alegria em 74.

Que pensaram nesse dia Tântalo e Sísifo ? Que pensam hoje, agora ? Valeu a pena ? Por que não se encerraram as portas do Teatro ? Por que se arrasta a peça ? Por que há cada vez mais quem peça ? Quem nesta peça corre tão depressa que ultrapassa os demais sem que repare no seu atraso ? Quem cava as distâncias ?

As páginas da nossa vida teimam não correr, passar. Não no palco mas nos bastidores, melífluos seres nos cortam cerce legitimas ambições, quantas vezes manobrando com arte o silêncio, vendendo cara a esperança...

Cada vez mais a natureza humana me decepciona. Como marionetes nas mãos de redutores maniqueístas nos sentimos, alvo de crueldades, intolerâncias, complexos, provincianismos, à mercê dos quais nos sentimos pequeninos, sentimos não ser nada, não valer nada.

Valerá a pena a vida assim? Acho que não, vão por mim...


‎* By Maria Luísa Baião,‎ escrito Segunda-feira, ‎2‎ de ‎Setembro‎ de ‎2002 pelas ‏‎19:46 horas e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.