* A minha amiga Violante casou cedo e os anos nem passam por ela.
Ele fizera
todas as campanhas que lhe tinham calhado em sorte e não se podia queixar do
azar, não sofrera por aí além nem se considerava um deficiente embora não tivesse
recusado a pensão de invalidez nem renegasse as vantagens que a ADFA lhe
concedia. É certo que pagara cara aquela missão na Jamba, como alguns se
atrevem a dizer, inda que eu não concorde com isso pois ele entende até ter
ganho uns bons dinheirinhos, que muito jeito nos têm feito.
O saldo é tudo, e
atendendo à conta no banco a sua sorte, ou o seu azar, nunca poderão ser tidos
em questão sem uma criteriosa ponderação e coisa que somente eles, o casal,
poderá fazer.
A sua
companheira a Violante já se habituara, a principio custara-lhe um pouco mas o
amor todas as barreiras supera, ou não ? Afinal ninguém lhe tirara o seu homem,
o seu amor, talvez tivessem tirado um ou outro bocadinho mas fosse como fosse era dela,
portanto ficara a ganhar que isto nas guerras do amor e dos ciúmes também existe
um saldo e o dela era a crédito, positivo, apuradas as contas a vantagem ficara
do seu lado, ela saíra ganhando, o resto seriam conversas de treta não passariam de invejas.
Era o seu
homem de sempre, apagadas as luzes o toque dele era o mesmo toque de sempre e inconfundível
para ela, o mesmo jeito de lhe correr a mão pela espinha fazendo-a
arrepiar-se toda ao passar entre os olhinhos das costas, o mesmo gesto
prolongando a caricia por ali abaixo até entalar a mão nas suas coxas roliças,
o mesmo arfar.
Chegado aí a respiração dele, tensa e acelerada não mudara nada,
era a mesma, como o mesmo era o hábito de fazer da mão um cutelo, uma mão em
cunha capaz de me trinchar em duas, claro que não trinchava, nem aleijava, não
estavam no talho do senhor Felício.
Simplesmente enquanto isso ela estendia a
mão no escuro e agarrava-se com devoção ao terço pendurado na cabeceira da cama, como fazia há mais de trinta anos sem perder a fé, a mesma cama em que tinham
casado, ou por outra, a cama que tinham desde o casamento.
Em boa
verdade a mão não era a mesma, mas era a outra e também era dele. Violante antes preferia
sentir-lhe a pele nua e rude dos dedos que a pelica da luva, conhecia o seu
homem até no escuro, seria capaz de o reconhecer de olhos vendados até pelo
toque, ou pelo cheiro. Com o tempo haviam refeito a vida com o que sobrara e
com o que tinham.
Sem ovos é que não se podem fazer omeletes, mas desde que
haja ovos o resto pouca importância terá, afinal foram perto de quarenta anos
de felicidade, três filhas e quatro netos. Como diria o senhor presidente da
junta, é obra, uma obra que ambos erguemos a duas mãos apesar de tudo.
O estranho
ritual inícial aos poucos fora-se banalizando, com a duração e o passar de
certo prazo, o tempo esse grande escultor que tudo apaga e tudo aviva, o tempo
se encarregara de vulgarizar a rotina. Hoje Violante ri-se desses tempos.
Deitarmo-nos com a luz acesa era crime de lesa-majestade, se acendesse a luz do
quarto à noite era mais que certo o Edmundo atirar-se ao ar, afinava com isso e
duas ou três vezes depois de armado um escarcéu por esse motivo a lembrança
fixou-se e o hábito instalou-se em mim quase automáticamente.
Nunca mais aquela luz se viu acesa depois das
oito da noite, ou sete, ou seis sendo invernia e durante uns tempos nem
candeeiros de mesinha de cabeceira houve e, se voltou a havê-los tal se deveu a
dois incidentes ocorridos quase na mesma altura, o primeiro um bocado caricato
pois o Edmundo tacteando à noite e às escuras com o coto o naperon sobre a
mesinha, ao invés de o achar acabou por derribar o olho que procurava, tendo o mesmo caído no
chão com estrépito e rebolando ou desaparecendo para onde ninguém imaginaria
nem procuraria.
Rolando fora parar à casa de banho, onde nenhum de nós se
lembrara de o procurar e somente no dia seguinte seria encontrado, lascado, com
uma falha, inutilizado. Encomendar um da mesma cor dos olhos do meu
Edmundo, que são lindos, durou uma eternidade e custou os olhos da cara salvo
seja, o diabo seja cego surdo e mudo, lagarto, lagarto, lagarto, mas foi o
caso, talvez achem um pouco estranho mas foi o caso, porém ainda não suficiente para que os candeeiros voltassem às mesinhas de cabeceira mas que muita
influência teve ai isso teve.
Determinante
fora o segundo incidente já que naquela maré
de azar acabou por trazer de volta os candeeirinhos com os abat-jours translúcidos tão apreciados e roubados num hotel de Benidorm, lugar onde tinham passado a lua de mel.
Não sei o que buscaria o eu Edmundo mas sei que derrubou o copo d’água onde à noite punha a placa, uma placa esquelética, caríssima, que no escuro pisou. Ao levantar-se da cama em busca da perna pisara a placa que se lhe espetara no pé atravessando-o de lado a lado e impedindo-o durante dois meses de ir ao quartel. Uma coisa mais séria do que inicialmente julgáramos, felizmente a placa era boa e nada sofrera, ao menos valha-nos isso.
Nunca se soube por que não lhe adaptaram um siatema mais prático e que tinha já sido inventado, ainda que bem mais caro. Falo dum sistema de parafuso, fora isso é tudo normal naquela prótese, era o que se usava á época e o estado era pobre e poupava no que podia. Dali p'ra cima, do coto p'ra cima o Ednundo era todo normal, ou quase, tirando a mão, o maxilar, os dentes e o olho de vidro é um homem como outro qualquer,.
É pois, é o meu homem e amo-o, não dizem que o amor é cego, olhem, por falar nisso esqueci-me das lentes de contacto que nem sei onde as meti. De qualquer
modo as restrições quanto ao acender da luz no quarto mantiveram-se quási as
mesmas, o meu Edmundo é um homem de hábitos e a primeira coisa que faz ao
entrar no quarto é sentar-se na cama, sacudir os sapatos e desatarraxar a
perna. Desatarraxar é como quem diz, mas soltar todas aquelas correias demora o
seu tempo e impressionava-me ao principio, agora até gosto de lhe tirar a
comichão do coto e sempre que desatarraxa a perna lá estou eu.
* A minha amiga Violante casou cedo e os anos nem passam por ela.