segunda-feira, 21 de julho de 2014

198 - ALEX, PARA OS AMIGOS…….................….....

  

À data eu vivia perto, e durante alguns anos acompanhei-lhe o luto, mas quando começou a usar em permanência o véu preto sobre o rosto, que escondia debaixo de um elegante chapéu redondo de abas largas enquanto subia a altura das saias convenci-me que se lhe finara o desgosto. Alex, Alexandra, ou Alexandrina, voltara ao nosso convivio. 

Não era crível o que todos jurariam em surdina, que D. Natália tudo fizera desde o início para boicotar as relações com a nora e respectiva família desde a morte, dois meses após o casamento, do seu querido menino.

Prova disso era o facto de Alexandra, Alex para os amigos, ter permanecido em sua casa até hoje, tantos anos depois daquele triste dia em que Julinho, agarrado desde que em jovem se formara com louvor e distinção, fora encontrado, a metros de sua mãe e da jovem esposa, fulminado por uma overdose. Alex entrara quase de imediato em depressão, e D. Natália acudiu-lhe durante anos e anos apesar da nora nem um neto ter tido tempo de lhe dar.

Não era linda nem elegante, seria muito mais que isso, e se durante meia dúzia de anos escorraçara todos os pretendentes à partilha das suas mágoas, depois passou a provocar, consciente e deliberadamente, todos aqueles em quem se dignava pousar a vista ou conceder atenção.

Do quintal, regando o jardim, ou da janela de sacada onde queimava os paivantes eu observava o rol de mártires que em permanência arrastava atrás de si e, que ao longo de meses palmilhando a rua ou nela fazendo sentinela, adquiriam a convicção de que a inutilidade do gesto aconselhava o afastamento, para logo serem substituídos por um qualquer outro incauto apaixonado.

Acho que depois dos primeiros meses ou anos de baixa psiquiátrica, ou psicológica, Alex se habituou àquele modo de vida. Não receberia muito, mas a cama e mesa garantidas por D. Natália certamente terá aproveitado.

Enquanto contribuintes eu e os vizinhos aguentámos e comentámos aquilo, talvez porque a crise forçasse esse tipo de conversa, talvez por também rendidos à sua beleza e encanto, até o Dr. Paulo, nosso parceiro da sueca e médico dela sofrera o seu Gólgota a que somente a inclemência do inverno afastara das sentinelas que prolongava até tarde nas noites.

Por essa época eu não sonhava ainda com o sindicalismo, nem com o estudo dos iluministas nem do filósofos medievais ou da sabedoria escolástica, o que só aconteceria numa fase muito posterior, mas os abusos aos direitos por parte dessa nossa vizinha incomodavam-nos. Para ela não havia deveres, aliás nunca houve, já os direitos pareciam ser nado e exclusivo direito seu. Esse dilema, que eu nunca superei, estivera aliás na razão pela qual a sua pulcritude e vida inconstante cativaram a minha atenção, era um admirador confesso da sua beleza afrodisíaca e lubricíssima presença, o que calava em mim os protestos ante a sua conduta desregrada e que em nada a abonava.

Haviam passado muito mais de vinte anos sem a ver, o que não obstou que a tivesse reconhecido à primeira, mesmo se apenas a silhueta, o porte e andar garbosos me tivessem sido por breve momento uma saudosa aparição.

- Deve ser ela ! É ela ! Tem de ser ela !

E era. Era ela, agora certamente nos quarenta, fruindo de uma sensualidade, maturidade e segurança insofismáveis a que ainda menos gente ficaria indiferente. E nem tivera tempo de pestanejar ou levantar os olhos de tão fantástica visão quando a consciência, mais que a memória, atrever-me-ia a dizer o subconsciente, trouxe à tona e rebobinou como se arrancadas de areias movediças lembranças, recordações, tais quais colótipos da Picasa, perdoem-me a comparação.

Era ela e nada nela mudara, o mesmo gosto pelos saltos altos, altíssimos, e que lhe firmava o porte projectando-lhe o peito para a frente, o mesmo andar em frente olhando e varrendo tudo num ângulo de 180º à esquerda e à direita, as costas como quem engolira a espada Durendal, sim, a de Rolando, a tal que pertencera a Heitor de Tróia, as nádegas opulentas movendo-se alternadamente com o andar numa bem ensaiada provocação, o pescoço firme e direito fazendo-o parecer mais comprido, ou alto.

Há mulheres que não querem ser vistas, ou que não desejam dar nas vistas, mas também há as que sim, que o querem e desejam, há até as que procuram das nas vistas, e as que sem que o saibam o conseguem, as que por mais que o tentem ou porfiem não matam caça… Alex inscrevia-se num dos grupos assinalados, dispenso-me de especificar qual.

Mas não há dúvida, era ela, é ela, porque terá voltado a pisar a rua ? Ter-se-á quebrado e enguiço ? Sacudido a maldição que sobre si mesma lançara ?

Aquela aparição majestosa não foi inocente, adivinhei nela a vaidade que a vestia, o antigo cuidado no corte, o fru fru das sedas que me fez lembrar as rendas sublimes e transparentes numa malha aberta, fina, delicada, e que mais pareciam filigrana, coisa em que era viciada e, porque uma lembrança nunca vem só, os lençóis de seda, eu numa atrapalhação vergonhosa e delirante escorregando sem conseguir onde firmar-me e ela, de gatas, miando, olhando-me e gozando-me provocadoramente …

Jamais esquecerei, jamais lhe perdoarei.