quinta-feira, 13 de agosto de 2015

266 - O QUE DISSE MOLERO *.................................

              

             
Todo o mistério se resumia a um pequeno raminho de hortelã encontrado sobre o banco traseiro da W Kombi dos biscates. A história tem destas peculiaridades, tão aparentemente insignificantes quanto inofensivas ou desinteressantes, contudo todavia mas porém, são elas muitas vezes a ponta do fio que se enrola ou desenrola como um novelo por toda a meada.

À excepção de um insuspeito, ou suspeito raminho de hortelã entalado entre as costas e o banco corrido da W Kombi e que Molero não sabia justificar, nada mais havia a acrescentar, assim terminava o relatório.

Tinha sido arquivado claro, determinara-se após cuidada averiguação, conforme consta nos autos, que o arguido não passava de um pobre diabo, um gato-pingado, eu seria mais preciso e afirmaria tratar-se dum fura-vidas. Concluíra-se dessas mesmas averiguações ser pacífico que o arguido comummente vociferara contra o Estado, todavia menorizaram-se essas ilicitudes criminais em virtude (eu teria antes apelado à falta dela), da ausência de amor-próprio e patriotismo, já que contudo o sujeito em questão nos autos de averiguação;

Um; não possuía cadastro, cousa decididamente abonatória em seu favor e muito valorizada na sociedade corporativa em construção

Dois; vociferava por hábito e permanentemente contra tudo e contra todos, pior que aquilo só mascando tacaco

Três; sobrevivia de pequenos trabalhos ou ganchos, vulgo biscates, que a vizinhança com condescendência lhe atribuía, sendo que o café onde a atitude anómala se verificara e assinalado na denúncia era a única morada que se lhe conhecia, de resto incerta, constituindo aquele lugar poiso certo conhecido, tendo alguns dos indivíduos que lhe entregaram trabalhos a realizar confirmado terem pago os mesmos com notas de vinte escudos, não ficando todavia determinado se novas se usadas dado ter passado já algum tempo sobre o assalto ao Banco de Portugal e também sobre o dito e referido pagamento ao sujeito nomeado Molero, cuidando-se ser essa a razão pela qual pagaria diariamente as bicas com um nota de vinte escudos, inusual, concedemos, contudo em flagrante contraste com as afirmações constantes nas denúncias anónimas e que relacionam o individuo em questão com os acontecimentos ocorridos na agência do B.P. na Figueira da Foz em 17 - 5- 67.

Quatro; na completíssima inspecção e analise à citada camioneta dos biscates, veiculo registado na DGV sob o nº de matricula CE-56-02, de marca Volkswagen, modelo Type II flatbed, nada foi encontrado que permita intuir ou estabelecer qualquer ligação com base em prova legal, e juridicamente aceite , ou quaisquer outras razões que permitam ligar os factos ocorridos e que culminaram na sua apreensão,  como tal foi o dito e citado veiculo devolvido ao seu legal e comprovado proprietário, já que em momento algum era passível estabelecer-se uma relação de causa efeito entre o dito cujo raminho de hortelã e a discrepância de factos verificada. O veiculo estivera parado ou saíra no dia do assalto á dependência do banco de Portugal na Figueira da Foz ?

Esse era o busílis da questão, e os inspectores detestavam ser comidos por parvos, que é como quem diz, que lhes comessem as papas na cabeça. O citado Molero puxando de notas de vinte escudos todos os dias quando até ali mendigava a bica dia sim dia não e protelava o pagamento da mesma para depois do almoço ou logo ao jantar ? Ali havia gato. Que o deixassem ir mas mantivessem sorrateiramente aquele fura-vidas debaixo de olho, tanto mais que o facto de ele ter deixado de apresentar as vintenas para pagar as bicas desde que os interrogatórios destinados aos autos de averiguações tinham tido início, era a prova provada de que ele era culpado.

O inspector Bonifácio, inspector de terceira classe há quinze e chefe de brigada perfazendo vinte e dois anos no activo franziu o senho e ordenou:

- Dêem-lhe tempo, tempo e espaço, mas não lhe tirem os olhos de cima, esse bardamerda anda a gozar connosco e eu gozar só na cama e com mulheres mais novas que ele, a esperteza desse merdas vai ser a morte dele, pela boca morre o peixe. Há-de falar, ou eu não me chame Bonifácio.

Todavia, contudo, fiquem porém registadas as afirmações do que disse o arguido Molero quando mui exactamente afirmou não ter sido usado o referido veiculo na última semana, o que é contraditado pela prova nº 1, o tal raminho de hortelã, fresco, viçoso, isto é colhido há menos de um dia, que foi por nós encontrado (e citado atrás nos autos) entre as costas e os bancos corridos da viatura, o que contraria as alegações do suspeito, inda que não passe de uma prova circunstancial e como tal passível de ser rebatida por qualquer advogado de meia tigela ou até mesmo ignorada por qualquer douto e excelentíssimo juiz em quaisquer tribunais, portanto esta inspecção limitou-se a registar a prova, a qual no futuro poderá ou não vir a tornar-se importante e necessariamente utilizada, o que será consensual, quer como acusação quer como prova.

Nada mais havendo por agora, sublinho por agora, a acrescentar, aos dezassete de Junho do ano da graça de mil novecentos e sessenta e sete, pelas 22:30h é encerrada esta averiguação e inspecção e delas passados estes autos que vão superiormente assinados por mim, chefe de brigada da PIDE e inspector de terceira classe.

A marosca montada em segredo e em redor de Molero nem demorou duas semanas que não surtisse efeito. Um sujeito engomadinho, moreno, porte atlético, cabelo curto à escovinha, à rufia, e cujos modos diga-se de passagem contradiziam o fato e gravata esmerados, apareceu um dia no café, segredou qualquer coisa ao ouvido do Molero e este, sem largar um pio, passou-lhe as chaves da Kombi para as mãos. Evidentemente o nosso engravatadinho engomadinho não mais deixou de ser seguido.

Vimo-lo entrar e abalar aos solavancos de embraiagem debaixo do telheiro de onde o Molero afirmara a carripana nunca sair, parou demasiado tempo na bomba de gasolina e no café anexo à mesma, pelo que mal partiu um de nós foi averiguar enquanto os outros se lhe mantinham no encalço sem o perder de vista.

Metera dez litros de gasolina, (refira-se que de acordo com os catálogos do modelo Volkswagen, Type II flatbed teriam ficado com autonomia pra muito mais de cem quilómetros mesmo em circulação urbana) e fizera um telefonema (um nosso homem ficou encarregado de posterior visita aos CTT afim de averiguar o nº marcado e o destinatário, bem como a localização deste último), e tomara uma bica, totalizando a despesa vinte e dois escudos e cinquenta centavos, importância que quitara com uma nota de quinhentos escudos, pois o balconista lembra-se bem da dificuldade para lhe arranjar troco, UMA NOTA DE QUINHENTOS ESCUDOS ????????? Mas esta investigação só lida com notas demasiado grandes e demasiado novas para as despesas que pagam ?

O Asdrúbal ligou para a central, para o inspector de terceira classe e seu chefe de brigada a dar conta dessa estranha e peculiar ocorrência tendo ouvido de resposta:

- Eu sabia ! Eu tinha razão ! Não os percam de vista a esses dois ! Ali há gato ! Eu não me chame Bonifácio caralho !

O quê ? Que diz você Asdrúbal ? Repita lá isso homem !

- É como lhe disse senhor inspector, achei estranho apenas, o nosso homem levar colocado sobre a orelha direita, quero dizer entalado na aba da orelha um raminho de hortelã, ao principio ainda julguei que fosse manjerico embora não seja o tempo deles mas… A gente habitua-se a ver de tudo não é senhor inspector ? Depois quando me aproximei dele p’ra ver se bispava o nº que discara (ele tapou-se com as costas) cheirou-me a hortelã, olhei bem e lá estava um raminho fresquinho todo catita por cima da orelha do bicho, quero dizer do dito cujo sujeito engomadinho.

- Siga-o sem que ele dê por si Asdrúbal !

Chefe, eu fiquei a pé no café para lhe telefonar, quem o seguiu foi o agente novo, o Camilo, aquele agente novo do norte, acho que de Mortágua, ele e o Resende a dirigir as operações.

- Ah ! O Resende está com ele ? Está bem, temi que a sua juventude e inexperiência pudessem trair todo o trabalho que temos tido. Ok, vou já mandar alguém buscá-lo aí, onde é que você disse que estava ? Café Frango Assado  ? Samouco ? Ok vai já alguém, espere e tome qualquer coisa, hoje pago eu.

O engomadinho foi seguido, parou à saída de Alcochete pra deixar entrar uma engomadeira com barraca montada no mercado do Montijo, dirigiu-se à reserva natural do estuário do Tejo, como quem se mete a caminho de Samora Correia tendo a meio caminho metido pelo silvedo, o que fizeram exactamente às 18:37h, e onde permaneceram exactamente até às 19:42h.

O regresso executaram-no pelo inverso da ida. O nosso carro marcava exactamente 87 quilómetros percorridos, ida e volta, passando agora à enumeração de vários factores a assinalar neste relatório e de supino interesse para a investigação em curso.

Um; Ao observarmos a carrinha depois de novamente arrumada no telhal jazia sobre o tablier um viçoso e aromático raminho de hortelã.

Dois; Foram encontrados debaixo do banco traseiro vários lenços de papel e bocados de papel higiénico, recente e com resquícios de sémen, bem como um preservativo usado (bem cheio) de marca Durex, tamanho grande (juntámos a carteirinha prateada do dito às provas), e alguns outros marca Control,  já ressequidos indubitavelmente de encontros anteriores, provas que recolhemos num saco higienizado e foram entregues nos serviços de laboratório desta polícia, com o nº do processo apenso para posterior analise averiguação e identificação.

Três; A dita senhora, que mantém banca de engomadeira no Mercado do Montijo é a D. Clarinda Veiga Pires, Terá à volta de 45 a 50 anos, e vive maritalmente há mais de vinte com o senhor Herminio Palma Inácio, aproximadamente da mesma idade e com talho na rua de Cima, no Cacém.

Quatro; Conforme instruções recebidas nenhum dos intervenientes neste relatório foi detido ou travado nas suas actividades diárias.

Cinco; Toda a equipa está ciente que, quando da sua detenção para interrogatório deve ser evitado todo e qualquer contacto entre eles e enclausurados em celas separadas. Para além dos já nomeados foram detidos igualmente; Emídio Guerreiro, Camilo Mortágua, José Augusto Seabra, António Barracosa e Luís Benvindo, todos suspeitos de ligação e pertença à LUAR, Liga de Unidade e Acção Revolucionária.

Passaram-se alguns dias, triangulações, observações, após os quais as detenções permitiram em pouquissímo tempo esclarecer os factos, recuperar as quase trinta mil mocas e deter todos os intervenientes a fim de serem alvo de acusação, posterior julgamento e prisão.

 Esta brigada orgulha-se do seu laborioso sucesso em prol da Nação, eu, pessoalmente, dirigi todas as diligências que culminaram em mais um espectacular sucesso da PIDE. “ Tudo pela Nação, nada contra a Nação” !

Chiado, 16 de Agosto de 1967
Bonifácio António Maria Cardoso
Inspector, Chefe de Brigada

* todos os factos e nomes são veridicos e podem ser confirmados, existem actas, relatórios, processos, e, sendo mais cómodo o Google, introduza os factos, ou os nomes e dentro do contexto, confirme-os. Obrigado.