Ligou-me ontem á tarde a minha amiga
Maria.
Sim a Maria, mas não uma Maria
qualquer, a Maria Castilho, uma Maria que nunca foi com as outras, uma senhora,
um potentado de energia, competência e sabedoria.
A minha amiga Maria era workaholic,
poderia ter-se reformado há uma boa dúzia de anos mas não o fez, a fábrica
química que erguera desde a 1ª pedra, ali para o Seixal, era a sua verdadeira paixão
e, marcou o ponto até há cerca de um mês ou quase, para ser mais exacto até ao
dia em que em casa deu uma queda, grave, e da qual nunca recuperou
satisfatoriamente.
Desde que há cerca de três anos ou
quatro levara a vacina que a sua sólida saúde se deteriorara a olhos vistos, o
traumatismo da queda não veio ajudar, antes pelo contrário, tudo se complicou,
todos os tratamentos apresentavam contrariedades, dificultando toda e qualquer
recuperação. Nem os melhores médicos nem os melhores hospitais conseguiram
acertar-lhe um relógio que há cerca de oitenta anos trabalhava certeiramente.
Muito culta e instruída, tanto quanto
viajada, desde a morte de um filho, e posteriormente do marido, há uns anos
largos, que se dedicara ao trabalho como forma de sublimação emocional, aspecto
em que contudo nunca deu mostras de instabilidade ou fraqueza. Que fique claro,
não era emocionalmente instável nem bipolar. Era um baluarte de bom senso e
racionalidade.
Falávamos muito, nunca julguei até que
me tivesse em tão boa conta, julgo agora acertadamente ter sido para ela um bom
amigo e confidente, muito conversámos, sobre tudo, acerca de tudo, da política
à metafisica, era uma conversadora encantadora e identificávamo-nos numa enorme
ou em grande percentagem das opiniões a que chegávamos. Tiremos a carga sexual
à coisa e bem podia falar-se dum caso de sapiosexualidade bilateral.
Ligou-me ontem à tarde, para se despedir de
mim, naturalmente dá-se conta do mau período que atravessa, do provável fim ou
rumo que as coisas tomarão e, mulher prevenida, sempre o foi, quererá ir-se com
os assuntos para ela mais relevantes arrumados, daí que com enternecedor
carinho me tenha surpreendido, e sensibilizado com o seu cuidado, com a sua doce
e armabilíssima despedida.
Fiquei sem palavras, eu, que sou um
homem talhado para as coisas mais difíceis da vida escondi de mim mesmo uma
lágrima que a custo sustive, eu que sou avesso a despedidas e que há bem pouco
sofri uma da qual ainda me não recompus, gaguejei, balbuciei algo a propósito
de fé e esperança sem tão pouco acreditar no que dizia, há tempestades que só o
tempo sossega e não qualquer bonança.
Como calcularão estou desolado,
desolado e desfeito, há coisas, realidades, factos, que nos caem em cima de
rompante e é o que sabemos ….. Ou, como diria José Verismar*, há choques para os quais nunca estaremos preparados….
O CHOQUE *
A realidade
É um trem desgovernado
Em sentido contrário
Aos nossos sonhos.
O sonhador
É o caminhante desatento
Que será, sempre, colhido
Pela realidade.
O choque
Quase sempre
Mata o sonhador
Os sonhos
Sempre …
by José Verismar
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