domingo, 23 de dezembro de 2018

560 - EU CUIDADOR ME CONFESSO.......................


… Outros sinais me davam conta do apelo do Universo a que ela cada vez mais correspondia, é certo que vos conto tudo isto em meia dúzia de linhas mas foram semanas, meses, anos. A duração desse apelo universal durou meses, a corte sideral lançada na sua conquista foi arteira, tudo se desenrolando tão lentamente que o olho mais apurado não notaria, não daria conta do gigantesco afastamento de planetas, estrelas e galáxias devido à constante expansão desse Universo. Como dar então conta de tão subtis manifestações nela ?

Outro sinal foi-me dado pelo jornal, aos sábados eu levava para casa o Expresso, do qual éramos leitores desde a primeira hora, desde o primeiro número. De uma vista cuidada por todos os cadernos ela passou a abandonar primeiro o primeiro caderno, desculpai-me a redundância, depois o caderno de economia, e por fim até a revista e as suas tão caras “amigas e amigos” Ana Cristina Leonardo e Clara Ferreira Alves, o padre Tolentino, o Eng.º Jorge Calado e o imaculado Pedro Mexia, palavras dela.

Há muito descurara a música, afastara-se das redes sociais onde só de vez em quando ia para deixar uma poesia, um qualquer sinal de que neste canto da galáxia ainda havia vida, na galáxia e naquela casa onde a vida ainda palpitava. Há mais de quarenta anos que as horas das refeições eram acertadas pelos horários dos principais telejornais. A televisão da cozinha, a última a ser abandonada, deixou simplesmente de ser ligada numa fase adiantada da doença, nem a da salinha, onde por vezes inda ia, estirando-se no sofá, alheia a tudo menos à gatinha que nos últimos dias, digo dois a três meses nunca a abandonou tendo eu agora a certeza que lhe previu o fim muito antes de qualquer de nós, médico incluído, nos termos apercebido da gravidade e da velocidade vertiginosa que a queda no buraco negro do espaço sideral tomava.

Deambulo pela casa, pareço um sonâmbulo, até que me estiro, como a Luisinha gostava de se esteirar ao fim do dia, no sofá, entre as minhas pernas e com a cabeça no meu colo, eu falando-lhe, ela descansando e ouvindo, por vezes lia para ela, fecho o livro, não quero acordá-la, a Luisinha não se tinha deitado, tinha ficado a ver TV e depois de acabar o programa que estava vendo começara a ficar rabugenta. Mais tarde continuei a leitura da poesia de Amália Bautista;

                  NO FIM

No fim são muito poucas as palavras
que nos doem a sério e muito poucas
as que nos conseguem alegrar a alma.

São também muito poucas as pessoas
que tocam o nosso coração e menos
ainda as que o tocam muito tempo.

E no fim são pouquíssimas as coisas
que em nossas vidas a sério nos importam:

poder amar alguém, sermos amados
e não morrer depois dos nossos filhos.

   Poema de Amália Bautista, 1999 in "Cuentamelo Otra Vez"

adormecia, ia metê-la na cama, por vezes vestida, tadinha mimei-a muito, devia tê-la mimado ainda mais. Amávamo-nos a valer, fizemos muito um pelo outro, e ela agora uma estrela no firmamento, tadinha, hoje desatei a chorar frente a uma lojista, não me contive, ainda não estou bom, tinha ido devolver os medicamentos dela para que a farmácia Paços (com ç) os encaminhasse para o lixo próprio, farmácia onde éramos bem conhecidos e bons clientes, e repentinamente toda aquela gente a dar-me os pêsames, foi triste, lá consegui fugir, para ir a uma óptica ali ao lado onde tenho um amigo apertar uns óculos Ray Ban que eram da Luisinha e a Leonor achava giros, apertar as hastes e arranjar-lhe uma caixinha bonita. Mas após alguns minutos de bla bla bla, com a funcionária desatei-me, agradeci e abalei a esconder a cara não fui capaz de evitar o pranto. Já vinha "embalado" da farmácia...

Somos humanos, é normal, penso que sim, ficaram giros os óculos, limparam-nos, pareciam novos, caixa nova, a Leonor vai rejubilar. Outros maiores ficaram para a Catea, novíssimos, a Luisinha tinha-os comprado para esconder a cara e os olhos... É a vida dizem. Verdade, e como se não bastasse eu andar mole uma antiga vizinha nossa no café veio dar-me os sentimentos e agarrou-se a mim a chorar... Ia-me rebentando o choro também, fugi dali, digo abalei, desopilei, desandei, depois esbarrei com outra…

sábado, 22 de dezembro de 2018

559 - TIRO O CHAPÉU AO SAÚL by Luísa Baião *

Podia ser o carpinteiro Saúl...
Podia ser o carpinteiro Saúl...
                                                                                                                        Podia ser o carpinteiro Saúl...     



                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

        Usa uma boina coçada um novo amigo que fiz. Encostado a uma bancada o encontrei numa festa onde, feliz saltitava, de uns p‘ra outros até que, num golpe de sinestésia (vai buscar o dicionário amigo Saúl), ultrapassou o rogado e me dirigiu palavra.

        Cavalgando um alazão um tudo-nada etilizado, nem perdeu por isso o condão de, em modos de João-ninguém, solícito se apresentar, numa postura em que, implícito, eu deduzia, um carácter em que luzia, trémula, uma alma íntegra, talvez até à medula.

       Exteriorizando alegria, não estudada mas sincera, qualquer uma enxergaria que, apesar das negras nuvens que lhe toldavam o andar, ser vera essa alegria espraiada no seu olhar.

        Percebi ter mãos de mago e obra feita na terra, não ser o drago que o pintam nem fazer guerra aos que o tentam, pois apesar de fruir uma vida mal-amada, este homem é um portento. Mal-amada vos disse eu, talvez errada no lance por obra de outro plebeu que mo confessou de relance. Uma impressão me pareceu naquele lídimo dono de um nariz de judeu, um arrimo de profeta, que mau grado a bruma dos dias o é de coisa nenhuma mas que da vida é um esteta.

        E quando com minudência lhe divisei bem o rosto, de aparência sempre calma, reparei em cicatriz que, não se ostentando por gosto, me levou a perguntar-me quantas mais não guardará na matriz da sua alma. Como pode não ser bom, não ser bondoso e vaidoso quem de coração aberto nos apresenta, baboso, desperto da névoa etílica, um filho de feição idílica, moço bonito, espadaúdo, e como o avô, espigado, que por certo de donzelas se verá sempre cercado.

          Dizendo-se velho o Saúl, mais não faz que se enrolar nas voltas que a vida dá, a sua história é a estória duma vida a que não terá querido dar qualquer vitória, por mais que ela seja fútil. Por mais que o negue, o Saúl, nem é velho nem inútil, e não me sai da cabeça que só é tão áspero consigo por pensar que perdendo-se sacudirá de cima o destino.

          Maldiz o mundo porque o sente, não o ama porque o não pensa. Será que ele desconhece que em tudo pomos um tino ? Não que não o aparente, parece ser um ser feliz a quem o passado persegue e eu espero, sinceramente que um dia em algum pagode, olhando dentro de si, exulte como quem descobre a ponta dum qualquer novelo, ser a vida um atropelo a que nos cabe pôr cobro, descobrindo se o malogro é sonho ou pesadelo.

         Não foi um velho que eu vi, foi um ser inteligente que teima, não sei porquê mirar-se em espelho passado, quando o que deve fazer é, à força de um carretel, subtrair-se a essa toleima que afunda tanto indigente. Não há nenhuma entre nós que não seja em algum momento, escrava das circunstâncias, viver tem altos e baixos, é carrossel de alternâncias, como uma noz num tormento, o fiel numa balança, o sorriso num pensamento.

         E é na perseverança, não no gesto simples e fácil de elevar uma garrafa que acharemos a adiafa que por direito nos pertence, ela é uma ténue esperança, qual porta só acessível a quem em vida se esforça, que quer, que luta e que vence.

         Hoje afoga-se n’outras águas, mas tempos houve, decerto, em que depois de afundado nos olhos de uma mulher, se viu perdido no deserto.

        Com um velado respeito p’la progenitora, presente, por quem levou a mão ao peito, o Saúl é muito afável, simpático, nunca ausente, cultivando um velho saber, mais próprio de um povo asiático. Bom fadista e dançarino, evocou-me três mulheres; uma muito mal casada, uma simplesmente casada e outra que não chegou a casar.

         Aqui vos deixo uma pista do que é um estere, um decastere ou decistere de um nada vulgar destino.

   Podia ser o carpinteiro Saúl de S. Miguel de Machede...
                                 
* Escrito em  25 Agosto de 2003 por Maria Luísa Baião‎ e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER

Podia ser o carpinteiro Saúl de S. Miguel de Machede...
                                   


sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

558 - ENTRAI PASTORES ENTRAI by Luísa Baião *


          Se há alguém que conheço muitissímo bem é o meu marido. E ao contrário do que é normal, chegar a casa sem grande alarido, tornou uma destas sextas-feiras excitadíssimo, mostrando um espanto pouco habitual.

Logo ali quis saber o motivo de tanta euforia, tirar-me de cuidados, para isso me bastara o dia, por certo para tal alguma razão forte haveria;

- Não acreditas ! Me disse;
- Acabei de ver num militar a rebeldia !

E lá me contou, como foi capaz, ofegante que estava, estupefacto;

- Assisti agora mesmo a uma linda batalha pela paz !

O que vira ele então, que o deixara em tamanha excitação? O testemunho de um guerreiro, de uma vida dedicada a tácticas e estratégias militares, de um duro, que trilhara outro carreiro. Nada mais nada menos que a história de uma vida coroada de estrelas mas trilhada a pulso, a que o destino, talvez por capricho ou impulso, “tocara” como em suave milagre.

Essa vida, essa carreira militar, tornara-se repentinamente álacre, a julgar pelo facto, constatado, e pelo adiante visado comprovado, de que não há regra sem excepção. “Dar de Si antes de pensar em Si“, palavra de ordem ou divisa do julgado, foi um lema pelo próprio completamente adulterado, alterado, foi norma por ele magistralmente subvertida.

Acredito que, quando em algum momento da sua vida aquela maravilhosa colecção foi concebida, o terá sido pensando em si mesmo, de forma egoísta e atrevida, mas nem por isso menos querida, como tantas de nós, que nuns ou noutros aspectos não somos menos egotistas e circunspectas. Pois o bom homem terá por certo descoberto que não valeria a pena amealhar o que não pudesse partilhar. Vai daí, e sem qualquer pudor, “tocado” que foi talvez pelo Divino, abriu-nos os braços deixando escoar por eles essa torrente de amor que lhe tolhera o caminho.

Não é caso único, conta a história que, já em remotos tempos, Constantino,** homem certamente menos pudico, reunira todos num abraço, tão temerário que o tornou Magno, também conhecido por Valério, e cujo gesto, não imaginário, traçou de novo nos mapas um antigo império.


“Entrai Pastores Entrai”, é uma excelsa colecção de presépios a decorrer nas igrejas de S. Vicente e do Convento da Graça, sobre o que é considerado o símbolo apaziguador do Natal e mostra-nos presépios artesanais de todo o mundo. Expressão da “alma dada às pequenas coisas... Que podem ter a dimensão de uma noz ou de uma estrela, e que nós simples mortais... ”Partilhamos com enlevo”.

Desde presépios em madeira de choupo ou salgueiro, de tal modo rendilhados que mais parecem filigrana, a outros construídos dentro de lâmpadas ou frasquinhos não maiores que o meu polegar e que por certo exigiram paciência de marinheiro, de tudo há nesta exposição, que mais parece viveiro de um milhar de fulgores p’ra nos encantar.

Um catálogo de excepcional qualidade, que só peca por não ter mil páginas, tantas quantos me pareceram os presépios, ilustra a capa com uma representação orbitando em torno do amor dos pais pelo Menino que veneramos, concepção de artistas eborenses realizada na “Oficina da Terra”, a mesma terra de onde provém o barro de que é feita a obra.

Parabéns a todos os intervenientes no evento. Para o senhor Major General F. Canha da Silva, um beijinho solidário pelo carinho mercenário com que conquistou para a nossa terra o seu mundial mostruário.


* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em 06-01-2003 no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER


** Constantino I, Constantino Magno, César Flávio Valério Constantino Augusto. Deu liberdade aos Cristãos, o nome a Constantinopla e reunificou o Império Romano cerca de 300 d.C.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

557 - O MEDONHO CAPITÃO AHAB by Luísa Baião


É provável que todas (os) conheçam a história do famoso capitão Ahab, figura terrível, empedernida, que aos poucos foi ficando sem amigos, tendo o seu fim sido ditado pelo isolamento a que se votou, a que o votaram. Julgando-se senhor da razão, melhor, da vida e da morte, logrou arrastar consigo muitos que só por temor o seguiam já, quais marionetas despidas de sentido e de vontade, e muito menos da integridade que lhes devia aconselhar antes mortos que domados.
  
É dos livros, quem não leu nem imagina ter perdido a história do vilão vencido que unicamente para o seu sonho vivia, sonho de tal modo nele empedernido que não distinguia noite e dia, a verdade da fantasia. Gritando ordens do convés, fazendo-se senhor da verdade absoluta e exigindo para ontem o que ordenava hoje, achincalhando quem de entre os marinheiros ousasse estar entre os primeiros, fez da vida uma afronta aos outros, uma tormenta tal, que só de forma casual os elementos alguma vez chegaram a conseguir igual.

 Errou julgando-se imortal, e tanto errou que hoje só a morte lhe evitou a banal sorte de qualquer de nós. O irascível o perpetuou, a imoralidade o transformou em história, a falta de escrúpulos o sequestrou ao esquecimento, exemplo do que não devemos ser, do que não devemos fazer, daquilo em que não podemos crer.
  
Levou a vida perseguindo quem ousara opor-se-lhe à arbitrária vontade, tombou caindo nas profundezas dos desígnios que desafiara. Esqueceu quão grande é o mundo e o destino, esquecera o que aprendera em pequenino. Moby Dick a baleia branca o consumiu em vida, se lhe tornou túmulo de algo que era maior que ele, a arrogância desmedida, a indiferença desprendida, a malvadez feita vida.
  
Sabido que é que só os verdadeiros amigos nos chamam a atenção quando temos a cara suja, nunca houve ninguém que tivesse dito a Ahab quanto a sua precisava ser lavada. Ahab nunca teve ninguém com quem partilhar tristezas sonhos e desejos, muito mais que imoral, Ahab era amoral. Ahab vive entre nós, pela mão de Herman Melville, como Dantas vive sob a pena de Almada Negreiros;“ Morra o Dantas, morra ! Pim ! O Dantas é o escárnio da consciência ! O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa ! O Dantas é a meta da decadência mental ! E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas ! E ainda há quem lhe estenda a mão ! E quem tenha dó do Dantas ! Morra o Dantas ! Morra! Pim !

  Melville legou-nos a saga de Ahab e da baleia branca para que possamos tomar consciência de quanto a alma pode ser negra, Almada deu-nos o Dantas para que possamos conhecer até onde pode ir a falta de pudor, o manobrismo, a ambiguidade, a manipulação. Quer com um quer com outro é difícil distinguir o absoluto do definitivo, o consciente do inconsciente, o bem e o mal, o primitivismo e a selvajaria. São combates simbólicos entre homens e monstros numa interpenetração entre os seres que lhes deram vida e o tempo em que a viveram.
  
Os tempos são hoje outros, hoje a vida compõe-se de soluços, fungadelas e sorrisos, com predominância de fungadelas, nenhuma de nós é tão esperta como todas nós juntas, Melville sabia-o, Almada sabia-o, mas há ainda muito quem o não saiba. Melville, viveu entre 1819 e 1891. A sua obra vende-se hoje aos milhões, mas morreu pobre e obscuro, incompreendido pelos seus pares. Foi tripulante desde muito novo em navios veleiros, cedo se tornou imediato e depois capitão de um baleeiro. As agruras da vida e do destino levaram a que tivesse perdido o estatuto de capitão num tempo em que a sociedade se hierarquizava de uma forma muito rígida atirando-o para o fim da escala social.
  
Diz a lenda que antes de morrer terá perguntado a quem lhe roubou a inocência “se o queriam como amigo ou inimigo?”, consta que ainda hoje a sua alma vagueia atormentando os descendentes de todos quantos estiveram do lado do capitão Ahab.  

NOTA: * By Maria Luísa Baião,‎ publicado em 29-09-2002 no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, como sátira a uma primitiva senhora que há muitos anos pontifica na política eborense. (o adjectivo primitiva é de responsabilidade minha). 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

556 - A IMPORTÂNCIA DO EQUADOR NO AMOR


 Texto em construção ...........  Entretanto terminado .........

 Texto em construção dissera eu, e bem, porque as cadelas apressadas parem os cães cegos, sempre ouvi dizer, mas dissera-o também por gostar de ver a bota bater com a perdigota. Que quero eu dizer afinal com toda esta conversa da treta, todo este intróito com que já vos brindei ?

Sim brindei, porque o texto fala de brindes e de Natal, portanto vamos a isto que se faz tarde e nem o pai morre nem a gente almoça, o texto era para sair precisamente hoje e não ontem nem amanhã, porque foi precisamente hoje dia 7, fez anos hoje ou celebrou-se outra vez uma efeméride de 74 em que na ponte do NRP Pereira da Silva e olhando a Este e Oeste dessa linha que o nosso imaginário teceu, eu queria ver o equador estendendo-se p’lo horizonte como quem olha o colorido do arco-íris sonhando achar os potes d’oiro nos seus princípio e fim.

Estava um gelo danado, a coisa deu-se pelas seis horas da matina desse sábado, precisamente quando chegou até mim o estridente som da sirene do navio assinalando o ritual de travessia do equador, estando o mar balançando dolentemente àquelas horas dessa fresca manhã de Dezembro por nos termos afastado duma tempestade que barafustava a Este. Inda que não tivéssemos avançado trezentas e setenta léguas para Oeste eu, aproveitando a solenidade do momento decidira-me pelo sim amor, pedir-te-ia em casamento mal pusésse pé em terra e te abraçasse.

Havia que aproveitar os astros conjugando-se, criando a oportunidade e o momento. Negar a tempestade aconselhara desviar o rumo do navio e, sulcando o Atlântico mais a Oeste que o habitual, originou, casual casualidade, uma excêntrica, dupla e momentânea solenidade logo por mim aproveitada para deitar as sortes, tentar a sina. Por um milagre do acaso o navio cruzou o equador no preciso local em que este e a linha divisória do Tratado de Tordesilhas proposto inicialmente pelo Papa Alexandre VI a D. João II de Portugal no séc. XV, tinham marcado esse sítio no grande mar oceano com uma cruz imaginária, profética e pronunciadora de augúrios futuros e felizes que haviam de fazer e fizeram a grandeza de Portugal, acreditando eu piamente que fariam também a grandeza deste nosso amor. Foi por pouco que não tocámos a ponta nordeste do Brasil.

Simpático o imediato “tapou-me e deixou-me” telefonar para tua casa nesse dia:

- Luisinha !! Estarei aí este Natal amor !! Levo uma grande surpresa querida !!! Uma surpresa gigante meu amorzinho !!!!

Ao descer para a messe/refeitório/bar comemorei a decisão oferecendo uma garrafa de whisky a cada elemento da minha companhia e a quem estivesse presente. Sosseguem, a maior parte da companhia preferira passar a licença em Luanda e não perder tantos dias no mar, dela estavam comigo no máximo meia dúzia e outra dúzia e meia de malta da guarnição do “NRP Pereira da Silva”, além disso a bordo uma garrafa de whisky custaria o mesmo que te custa hoje uma Sagres média em qualquer esplanada.


Eu queria amar-te sem medo Luisinha, amar-te com alarido e bem-querer, com grinaldas e fanfarra, queria amar-te de modo que o nosso amor fosse livre e festejado. Aprendera a amar em África, nas matas de Xangongo, a sul de Angola e a norte do Cunene, aprendera a amar com as doces mulheres negras nas pausas das suas missões na guerra nacional e patriótica que travavam a meu lado, aprendera a amar para sossegar o medo, aprendera a amar para me acalmar, aprendera a amar em silêncio, sempre de atalaia quanto ao ruído, amávamo-nos temendo ser ouvidos, por isso, quando muito tolerávamos o suave rumorejar das águas do Cunene mas de ouvido sempre atento, não fosse algum raminho estalar e sobressaltar-nos porque então e num repente, a mão abandonava prestes a cintura, a anca, o seio, o abraço, para lesta segurar tensa a arma sempre ao lado porque a mim o medo me levava a amar como quem procura a placenta, o ventre materno, e elas o pai ou a mãe que não tinham, buscando em mim a paternidade, a segurança, a ternura e o amor de que ambos éramos carentes e nos absolvia das imperfeições do mundo, todo ele prenhe de preconceitos e juízos de valor, por isso nos calávamos, por isso nos amávamos no segredo das nossas consciências, no segredo dos nossos corações.


Mas contigo eu queria amar sem medo Luisinha, contigo eu queria poder alardear este amor puro que me animava e te dedicava e ainda dedico, queria vivê-lo solto e em paz para que toda a gente soubesse e o festejasse como nós minha querida.

Esse Natal de 74 seria inesquecível, lembro os meus pais e eu próprio subindo a tua casa, pedindo a tua mão. A boda havia de ser marcada para a minha próxima licença, Agosto de 75, casaríamos a 9 desse mês e a 5 do mês de Julho do ano seguinte nasceria o menino, o nosso menino. É verdade minhas cuscas, somente dez meses depois do casório nasceu o petiz, portanto ela não ia grávida, não que não soubéssemos como se faziam os meninos, sabíamos e bem, mas porque quisemos manter os votos e a nossa pureza até ao casamento.

Com esta dos votos e da pureza é que vos fodi, como deverão então interpretar o parágrafo anterior ? Eu digo-vos, como quiserem, mas adianto-vos a título de curiosidade que tínhamos tido um acidente de mota na véspera do casamento, a Luisinha partira a bacia, estava engessada, sim a minha Luisinha custava a aguentar-se em pé, mas por nada quis desmarcar ou adiar a boda, havia muitos compromissos já tomados e todos os convidados de fora tinham já chegado. Eu só tinha arranhões nos pés, braços, joelhos, ancas e ombros. Portanto somente um mês depois o casamento foi consumado, somente depois do gesso tirado. Sim criaturas, os cintos de castidade não eram todos em ferro ou fechados a cadeado.

Depois ensinaste-me a amar sem medo, a amar-te descontraído e talvez por isso tenha sido ou julgo ter sido todos estes anos um bom marido.

Leio e releio o milhar de aerogramas que te escrevi, um por dia ou quase, mesmo sabendo seguirem só de quinze em quinze dias ou de mês a mês e guardados presos com um elasquinho na caixa das missangas, por motivos óbvios não pude guardar as tuas respostas meu amor, mas não espelhavam amor menos sentido que o meu minha querida.

Casámo-nos, não nos prendemos nem nos perdemos amor, libertámo-nos minha querida.

Da mata de Xangongo, Ombadja, Cunene, para meus pais, mana, irmãos, namorada e restante família. Fala-vos o segundo tenente miliciano Humberto Ventura Palma Baião para vos desejar um Natal próspero e um Ano Novo cheio de propriedades, beijinhos, adeus e até ao meu regresso.

A gravação ficara feita, não tivemos sequer tempo de a ouvir, mas confessa lá Luisinha, não esperavas, e nesse Natal tiveste duas das maiores surpresas da tua vida, foi ou não foi minha fofinha ?

Amo-te meu amor, amo-te e amar-te-ei sempre minha querida linda.



publicado integralmente pela primeira vez no Facebook em 7 de Dezembro de 2018 pelas 08:12h

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

555 - NÃO, NÃO FAZIA IDEIA, COMO SABER …


Gente bem-intencionada dissera-me tanta coisa, dera-me tantos conselhos que acabei ouvindo somente o zunzum de todos eles, coragem, força, a vida continua, a vida não pára, e as atitudes de conforto e reconfortantes eram tantas que fugi, fugi daqui, fugi deles e delas, de tanta boa intenção e tanta ajuda desinteressada que começava a sufocar-me. Meti-me no inter-cidades e caminhei meio dia até parar e ficar três ou quatro dias, para me meter de novo no dito mas em sentido contrário e só voltar a parar novamente em Lisboa. Ver família, ver amigos de longe, matar saudades para saudades esquecer e esquecer quanto me lembras, esquecer o roçar carinhoso da tua face na minha, o teu pé sempre sobre o meu, a tua perna insinuando-se entre as minhas, o teu abraço aconchegador e quente.

Por que me mentiram todos, mentiram, porque esta saudade não passa, sem ti tudo mudou de lugar e de aparência, a casa mudou, é outra, é maior, é outra a luz que se coa pelas janelas, é outra a luz que emana destes candeeiros. Mudo a altura aos estores, baixo-os, levanto-os, mas as sombras continuam mais sombrias e mais tristes, mudei as lâmpadas de todos os candeeiros mas teimam numa luminosidade que muda as penumbras, dantes acolhedoras, diferentes, e agora frias.

Até a gatinha mudou, não me acorda já matemática e diáriamente às sete horas, simplesmente não me acorda, a mim que nem durmo, anda por aqui de rabo encolhido e olhos esbugalhados até parar olhando-me, como se eu tivesse a culpa, ou a resposta, ou fosse a resposta, não Mimi já não há dona querida, a dona não volta amor, também eu me sinto confuso querida, mas dizem que é a vida, a vida não, a morte, não o compreendes nem aceitas, nem eu, o dono vai dar-te uma postinha de pescada e espero que fiques distraída porque eu não consigo.

Já me embarrilei de bacalhau assado e não consigo, e com cherne grelhado, nem com robalos consegui, nem recorrendo ao branco do melhor por melhor que seja e bem fresquinho esteja, hei-de experimentar a pescada querida, juro-te que irei guardar para mim umas postas de pescada para fritar, tanto que eu e tu gostávamos, acompanhada com arroz de tomate e branco fresco de Redondo, azeitonas e um niquinho de pão alentejano, juro que irei experimentar a pescada querida, e talvez acerte na altura dos estores, na luz dos candeeiros, talvez consiga acertar as sombras desta casa que agora me parece embruxada, enfeitiçada, talvez depois os fantasmas me deixem em paz e então ganhe a certeza de que o fantasma desta casa não sou eu mesmo nem és tu minha Luisinha querida, meu amor mais lindo



quarta-feira, 28 de novembro de 2018

554 - UMA LÁGRIMA NOS OLHOS, by Luísa Baião‎



Tenho por hábito guardar recortes de jornais. Umas vezes para ler mais tarde, outras porque constituem um arquivo para consulta, e, ou análise posterior. Arrumando um destes dias gavetas, dei com um desses recortes, a que já faltava a data, e que tinha, então, tido vontade de comentar aqui convosco, o que só não fiz porque tal recorte acabou perdido na miríade de apontamentos que sobre tudo vou guardando.

Tinha sido “arrancado” do Diário do Sul, publicado na primeira página, com foto em destaque, e com grande desenvolvimento nas páginas centrais. Noticia e fotos que por certo encheram de orgulho qualquer de nós, eborenses, e alentejanas.

Uma fábrica de Évora, A. J. Lobo, especialista na produção de painéis solares fotovoltaicos, fechou, nessa nem por isso remota semana, um contrato de investimento com a SHELL, para ampliação da capacidade produtiva, inovação de métodos e tecnologias, em que, segundo o dito diário, é única no país e na Europa.

Senti-me orgulhosa, investimento superior a dez milhões de euros, tecnologias de ponta, lembro-me de ao ler a peça quase me ter sentido lá no meio das cerimónias, vertendo uma lágrima de comoção.

A cerimónia, onde não estive, não me fez chorar, o que me comoveu foi ao ver no jornal as fotos do ministro da economia, do presidente da Shell Portugal, do vice-presidente da ShellI Internacional e claro o ilustre eborense, Senhor LOBO, (com letra grande). Membro de família conhecida no burgo e sobre quem se comentam percursos de trabalho e sucesso, com mais de trinta anos.

Família oriunda da Somefe, então uma escola de trabalho, família a quem o tempo, a força e capacidade premiaram com mérito. Já há pouca gente assim que, ao invés de estratagemas e ganhos fáceis e rápidos, trilhe caminhos tão difíceis de escalar, que só não assustam a quem o trabalho não tema nem envergonhe.

Mas como ia dizendo, o que me comoveu não me fez chorar. O que me dá pena é que, hoje mesmo, quarta-feira, 28 de Janeiro, pessoa insuspeita, Presidente da Agência Portuguesa de Investimento, ex-ministro e economista de gabarito, me tenha forçado a procurar outros recortes, que não achei e nem admira, pois o que eu precisava era tempo para os classificar e ordenar.

Procurava notícias recentes sobre uma figura marcante da economia portuguesa, José Manuel de Melo, a quem no passado fim-de-semana, de 24/25, os meios de comunicação dedicaram imenso espaço, e tempo. Tudo porque quer um quer outro, finalmente se não contiveram e afirmaram também eles ter visto o óbvio. Que o rei vai nu, já toda a gente sabe, deixemos passar mais algumas semanas e a dúzia e meia de compatriotas que ainda não deram por isso acabarão igualmente dando-se por achados.

Primeiro veio um gritar, preto no branco, que deveríamos vender isto aos espanhóis, não fosse dar-se o caso deles nem precisarem nem quererem isto para nada, clamando alto e bom som, já não acreditar em ninguém nem isto ter futuro. Depois veio o outro, que se escalfa para conseguir uns investimentozitos exteriores, questionar opções, como o mirífico Euro 2004, contrapondo que se deveriam ter utilizado essas arroubas de dinheiro para criar infra-estruturas viárias e outras, que se deveria ter apostado na saúde, na ciência, na educação, no emprego, na segurança social... Como se nós não soubéssemos que o fado é que induca, e o futebol é que instrói. Deviam ter bramado há mais tempo, agora assustam-me, tão só porque de tão insuspeitos como são, se assim falam é porque a coisa está mesmo preeeta...

Quando optámos pelos futebóis em vez de um futuro, toda a gente atirou bonés ao ar, agora, bem, agora é aguentar, porque isto ainda nem começou, e vai ser duro.


  
NOTA: * By Maria Luísa Baião‎ escrito quarta-feira, ‎12‎ de ‎maio‎ de ‎2004, ‏‎18:30h e publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, em homenagem à eborense Família Lobo. Esta crónica foi posteriormente alvo de um gentilíssimo agradecimento por parte da dita família, agradecimento que muito honrou e comoveu a minha saudosa Luisinha e deverá encontrar-se arquivado no portfólio do Diário do Sul.

sábado, 24 de novembro de 2018

553 - LIDES‎ ... by Maria Luísa Baião * ...................


Olhou-me demorada e ternamente. Eu retribui o carinho passando-lhe a mão pela cabeça, de arrepio, coisa que sei não gostar. Uma provocação portanto. Retraiu-se um pouco, fugiu ao meu gesto e ajeitou-se melhor no sofá onde desde o almoço se estendera ao comprido. Tem uma propensão nata para a mandriice, então aos fins-de-semana, dias em que estamos todos em casa, até para comer tem preguiça e vai fazê-lo já quase a dormir.

Perdoo-lhe a preguiça nesses dias. É que não gosto, quando arregaço as mangas e me atiro a algumas das actividades que cabem às “domésticas” e com as quais embirro solenemente, que se atravessem à minha frente e me quebrem o ritmo. Contudo acho que se não for eu a diligenciá-las ninguém as fará melhor. Sempre detestei essas actividades, tenho mais e melhor com que me entreter, ocupar o tempo, com muito mais proveito para mim e para os outros. Mas tem que ser.

O barulho do aspirador é incómodo, dá uma volta no sofá, esconde a cabeça e as orelhas buscando ignorar-me e ao frenesim que arrasto, cujo tumulto sabe ser somente uma questão de minutos. Por outras palavras, torce-me o nariz. Essa coisa dos olhares ternos vai bem desde que não incomodemos. A ternura, como vêem também tem limites e condições. Não me chateies que eu faço o mesmo e ainda te pago com algumas meiguices. E eu julgando essa ternura ilimitada e incondicional.

Estamos sempre aprendendo. Modelamo-nos é o que é, adaptamo-nos às situações como os náufragos se adaptam às bóias e coletes salva-vidas.

O aspirador lá se vai esforçando, como um asmático. Espreito à janela, na paragem do autocarro uma velha fala sozinha. Eu pensando sozinha. Crianças pobres brincam umas com as outras, como eu quando pequena. Saltam à corda, brigam-se, apaziguam-se. Bate-me o coração por vê-las, sinto-me cansada, deve ser deste tempo, carregado de humidade. Aproximo-me da janela, os vidros embaciados, desenho um círculo com a mão e espreito. Oiço o aspirador há que tempos sorvendo desacompanhado, distraído, distraída eu, oiço o relógio da sala, olho as horas, recomeço a azáfama. Dizem que os chineses vêem as horas nos olhos dos gatos.

Contemplo o meu reflexo na janela, o círculo como um espelho, pareço uma mulher resignada, não o sou, somente detesto estas lides perfidamente repetitivas. E a preguiça estirada no sofá, como uma ofensa, um ultraje a mim mesma dirigido e eu, parva, voltei a passar-lhe a mão pela cabeça e de novo presenteada com igual indiferença.

É dia ainda, trovoadas e sombras da noite espiam-me por essa janela. A chuva, p’la intimidade dos vidros mostra-me os brilhos da rua inundada de água. O meu olhar torna-se silêncio, relembro promessas neste tempo lento de horizontes parcos e toma-me uma saudade imensa das palavras, de sons, de vozes quebrando o quebranto e tomando-me de assalto os sentidos.

O tempo e os sentidos, os mesmos que nos escondem na alma paixões de ontem, de hoje e de agora. O corpo, esse, confessamo-lo quando a hora chega. Querendo, o desejo faz das palavras silêncio e limite do que permanece, como as águas límpidas do mar oceano. Os gestos como reflexo dos sentidos e em cada pensamento o amor que nem o corpo nem a alma querem esquecer.

Penso nalgumas árvores que o Outono pinta de vermelho quente e recomeço as lides pondo fim ao vogar do espírito. No ardor de terminar lavo-me de fantasias, meditação e imaginação, medos, fobias e taras.

Afago-lhe de novo a cabeça, arqueia o dorso, eriça o pelo, salta para o chão, roça-me as pernas e solta um miar curto e baixo. Já sei o que quer. Esta minha gata é um espectáculo, só lhe falta falar !


* Maria Luísa Baião‎ escrito segunda-feira, ‎19‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006, ‏‎12:22h, publicado em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.


552 - INVEJINHA, INVEJINHA... by Luísa Baião ‎* ...

Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora. 

Hoje senta-se à minha mesa no café, até podia dar-se o caso de ser meu pai, tem idade para tal, mas é simplesmente um amigo, e que bom amigo ele é.

Talvez por isso é fatal que, ao fim de semana, nos procuremos para esse ritual, de onde um cheiro emana e, o sabor nos chama como apelo que, repetido ao longo do dia, já sem o mito a que o primeiro dá corpo, acalma todavia a alma e lhe dá conforto.

È um atlas este homem singular, enciclopédia vasta de uma vida escondendo estórias que a sua memória arrasta. Nada nele há de que se deva envergonhar, tanto que gravatas são coisa que nem usa, até porque a longa vida vivida não é comédia, nem recusa contá-la se a conversa a jeito segue. O primeiro que se negue.

Não passava eu ainda de um sonho, uma vontade, e já este meu amigo se esforçava, naquela outra metade do mundo que o nosso império então pintava a cor-de-rosa e que mudou de supetão, porque em alguma parte da terra uma mariposa bateu asas, segundo os astro - físicos, ou porque um povo indígena se lembrou em algum momento de dizer basta, mais não.

Qual ave de arribação de novo volveu à sua origem, não sem que essa forçosa migração o tivesse levado a rumar primeiro a sul, onde a vertigem das horas e da moda o não prendeu, antes o atirou para o que agora chamo o seu convívio, mas que ele todas as auroras apoda de seu desígnio.

Conheceu povos usos e costumes e em cada um dos novos fusos e latitudes que pisou tanto aprendeu, que é hoje um homem sereno, que do pleno da vida alcançou o cume, vida que, embora madrasta por vezes, nunca permitiu a alguém ouvir-lhe um queixume ou notar-lhe sequer leve azedume.

Ganhou amor à terra em planaltos e savanas, imensidões por onde alargou olhar e espírito, apanhou sobressaltos e, talvez repastos de lembrar e chorar por mais, que o atiraram para o clube dos barriganas. Caçou provavelmente leões, hoje cria gado, revolve a terra que aprendeu a amar e entretém-se nas horas vagas caçando chavões em jornais.

Com nostalgia recorda a África, onde se fez homem e deles amigo. Dessa lonjura carregou sabedoria que, como castigo desabrido lançou nesta terra de que fez porto de abrigo. Mendigo é que não, a não ser da amizade, que cultiva com prazer e das quais por vezes tem vaidade.

Como não há-de correr-lhe a vida em beleza ?  Se o nosso homem é todo dado à natureza ! Bom garfo, melhor conversador, perto dele não há sururu, apenas o calor contagiante de conversas longas e serenas. Não parte um copo o Francisco mas no remanso esfuziante dessas horas perversas é um pândega, ninguém sossega.

Calhou-nos encontrá-lo de partida para férias, que após algumas lérias soubemos no mesmo destino. Foi um desatino. Não partilhámos a cama mas partilhámos a mesa, que do primeiro prato à sobremesa nos deu tempo para desatar a língua e, apesar do calor, nunca deixámos a conversa morrer à míngua ou criar bolor, por tão ricos os vinhos e petiscos e tão sem dor as farpas nos políticos.

Sempre foram umas férias diferentes, com um compatriota à porta com quem debater os assuntos imanentes à nossa condição. O meu marido adorou e, um dia houve, mesmo sem fatiota a rigor, que nos passeámos de jipão por toda aquela área lindíssima a que os nuestros hermanos chamam o Parque Natural de Doñana.

Não valem comparações, o que eles usam ao domingo usamos nós de semana. Nunca terão uma floresta como a nossa, quase virgem, selvagem, onde só bicho-do-mato entra. Na nossa só entra bicho e fagulha, na deles não se vê no chão nem dos muitos pinheiros uma agulha...

Como diria o Francisco, orgulhoso da sua barriguinha, invejinha, invejinha... 


* Maria Luísa Baião,‎ justissíma e merecida homenagem ao grande amigo Francisco Pândega, escrito quinta-feira, ‎7‎ de ‎agosto‎ de ‎2003, pelas ‏‎22:31h e publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.
Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora.


551 - TERRAS D’EL - REI, by Maria Luísa Baião ‎*…

Foto roubada na Net, Praça principal de Reguengos e igreja neo-gótica.

Vou contar-vos uma história, de um almoço que tomei na companhia de amigos de quem até já falei. Por causa das invejinhas e porque há almas penadinhas por degustar bom petisco, creio não cair no risco e arrisco sem remorso, por isso vos afianço que, em qualquer outro lugar ou em qualquer uma outra rua, se come tão bem na terra como eu comi na “taberna” dessa vila que é tão minha, quanto crê ser ela sua.

Embora o uso não lembre, são terras que eram D’El-Rei, que assim não ficaram sempre porque a lei dos liberais cuidou de lhes dar finais.

Eram terras “realengas”, p’ra outros terras “reguengas”, que de nobres ou de reis, davam ainda para os pobres verem dali alguns réis. Também o clero tinha parte que, com arte, como a nobreza ou a coroa, acudia à pobreza que, como agora, como sempre, esperava dos mais fortes, os restos d’alguma broa.

Nascidas da esperança aceite, de o cristianismo alargar, enquanto alguns nossos reis acossavam o belicismo para ao Algarve chegar, muitas, como esta terra hoje chamada D’El-Rei, a guerreiros os reis doavam, dando de alarve riquezas que o património gizava, que quer o tempo e a história não cuidaram de emendar.

Foram dadas a templários ou a quaisquer usurários, nem o poeta Papança teve algum dia o prazer, de, a rendeiros e seareiros, ver na cara alegria franca por ter visto repartida terra de tanta abastança, cujos limites não estão hoje longe dos que há séculos já tinha a nobre casa de Bragança.

Mas, voltando à minha história e ao almoço bem regado que nos ficou na memória. Foi na Casa do Benfica que o néctar ditou as leis que, e nisso faço questão, deixar aqui afirmado que em qualquer outro casão aos manjares apropriado o prazer seria o mesmo, pois o dito que aqui louvo, teria saído gostoso de uma mesma barrica, senão duma mesma pipa.

A verdade é que esse néctar, ali mesmo apadrinhado, trazia rótulo da terra, pois ainda antes de almoço já era certo e sabido cuidar de ter a tempo e horas tal remédio encomendado.

Da história antiga só resta a sagrada toponímia que mui bem calhou à pinga ali mesmo baptizada. Ou "D’El-Rei" ou "Monsaraz", coisa que muito me apraz e tive até o condão de, passado belo momento, ter que descascar o casaco, por efeito não de tormento, mas de ventos e grinaldas que a imaginação tece, em que apesar de exaurida, a sensibilidade sofrida nos mostra poentes belos, enquanto cada medida por dentro mais nos aquece. 

"Reguengos" ou "Monsaraz", vila ou aldeia tanto faz, são pérolas rústicas, mágicas, brancas, medievais e ambas belas. Gótica manuelina uma, menina preservada a última, plantada em jazida xistosa que por ser pedra tão branda a torna mais amorosa.

Postada em alto-relevo que meus sonhos pintam de imaginárias e bruxuleantes estampas a que o néctar dos Deuses mistura as cores na paleta, devo reconhecer que, a páginas tantas, as palavras falavam connosco e o ruído ensurdecedor do silêncio intuído burilava, alternando a visão do possível actual, ou do actual possível, nessa terra que parece não mudar.

Reguengos a da igreja neo-gótica que, diria imaginada se a não visse aos céus virada, de lindos vitrais pintada, testemunhando a fé, a crença do seu povinho atarefado, contrastando felizmente com a lembrança nebulosa do pelourinho ainda erguido no adro da praça grande da Monsaraz majestosa, sentinela vigilante.

Como um mar de água crescendo, enquanto íamos almoçando e a sala transformando numa festa a pedir sesta, a barragem ia tecendo os destinos dessa terra e, espero p’ra bem de todas não ver o tempo gizar terra que, à soleira do futuro fique sentada mirando o passar deste mundo que parece prometer tudo. Que ninguém em terras D’El-Rei se remeta ao silêncio mudo.

Se os sonhos que no ar pairam, teimarem em querer falar, teimarem acreditar que tudo lhes é possível, creio que ao povo desta terra até o inimaginável será um dia acessível, inda que demore mais algum tempo…
  

* Maria Luísa Baião‎ escrito Quarta-feira, ‎3‎ de ‎Dezembro‎ de ‎2003, ‏‎pelas 04:29h e publicado nos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.‎

Foto de Helena Margarida de Sousa - Évora