terça-feira, 1 de março de 2022

759 - MINHA CASA, ESTA MULHER ... * (1942)

                                            Chagal - "Aniversário"


MINHA CASA, ESTA MULHER

POEMA DE SANTIAGO KOVADLOFF  *

  

"Minha casa é esta mulher que agora dorme ao meu lado. Como ela, com ela, tudo ao meu redor descansa.

 

Quando ela acordar, as coisas também. As portas se abrirão novamente, a água voltará a correr, passos animarão a velha escada, a luz voltará a cair sobre as plantas.

  

Voltarei à minha mesa, às palavras, e a sua voz, como uma auréola, rodeará meu dia.

  

Quando ela for trabalhar, levantarei os olhos da página, e uma tapeçaria, um cravo, um amuleto inesperado na cozinha da casa repetirá o nome desta mulher que povoou tudo com sua presença e o sucesso de suas mãos.

  

Ela é a minha casa, a porta principal de acesso ao significado desses cómodos. Se o egoísmo ou a indiferença interrompem nosso encontro, a casa escurece.

 

Como uma dura denúncia de uma solidão irremediável, as paredes estarão carregadas de presságios, a cor de cada coisa retrocederá, a casa esvaziar-se-á, e morar nela será expor-me aos elementos.

  

Minha casa é esta mulher que agora dorme ao meu lado. Quando ela está longe, tudo está longe na casa; sem ela as coisas em meu redor andam aos montes, e estar aqui torna-se uma tortura; assedia todos os lugares, cada passo dói, cantos e objectos tornam-se inúteis.

 

E a casa lembra, num sussurro triste, que um dia soubemos ser melhores. Se a alegria renasce, a casa renasce.

 

Quando a lucidez ou o desejo nos une novamente, a casa se ilumina novamente: meus papéis fazem sentido, cada cómodo é a evidência de um projecto. A casa toda é uma festa e o sopro suave e denso da vida desce novamente a velha escada".

  

* Santiago Kovadloff (Buenos Aires, 14 de diciembre de 1942)



                                         Pintura de RAMON CASAS