segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

315 - RÁDIO, OS DIAS DA RÁDIO .............................


         Não sem alguma razão a minha amiga Floripes deu-me hoje um sermão. Não foi o sermão da montanha não, foi antes um responso perante a minha cruel insensibilidade, e o pior de tudo foi ter vindo acompanhado de uma piada maliciosa, susceptível de ferir terceiros e contra a qual me insurgi de imediato, infelizmente com pior resultado que o pretendido e de que logo me arrependi pois ela atirou-me:

- Pois pois, mas se fosse para comprares o livro do Banana no Quiosque Primavera até te babarias como um cão, nem que tivesses que esperar seis meses em pé numa fila…

um mordaz desabafo dito por ela numa injusta e soez alusão ao facto de eu pagar a simpatia da Micas com mais simpatia ainda, e para além disso por lhe comprar no quiosque, para a minha netinha, os volumes do “Diário de Um Banana”, que já vão na 10ª ou 15ª série… quiosque ao lado do qual ela passava sempre ao largo ou se obrigava a mudar de passeio...

Uma piadola descabelada daquelas não me atinge só a mim, mas também a Micas do Quiosque Primavera, a alegria da avenida, uma simpatiquíssima matrona cuja graça há-de superar sempre a da Floripes, demasiado séria para o meu gosto e que passa a vida colocando na rádio discos como Um Amor Impossível, O Meu Amor é Um Sonho, Um Dia Quero Ser Tua, e outros do mesmo jaez, para depois me vir perguntar se ouvi o programa dela naquela manhã, ao que eu invariavelmente faço orelhas moucas, ou ouvidos de mercador e respondo ter perdido a manhã na bicha das finanças para pagar o imposto de selo do carro ou o IMI.

Esclareça-se que a Floripes é radialista, tem um programa musical matinal, e aposto que adoraria que eu lhe ligasse um dia para o programa pedindo-lhe um disquinho, do género Acordar Ao Teu Lado É o Meu Sonho… claro que não o farei, sou homem de princípios, fiel a mim mesmo e à companheira que escolhi e não vai ser uma Floripes qualquer a dar-me a volta por muito que ela gostasse de o fazer.

Há uns três quinze dias a Floripes pedira-me que escrevesse algo sobre a rádio cujo dia mundial se comemoraria a 13 de Fevereiro, mas eu, que tudo que a Floripes diga arquivo na pasta “Aguas de Bacalhau”, esquecera-me completamente. Vem daí o seu recente azedume e ressentimento para comigo, porém não o fiz propositadamente, esqueci-me mesmo, e vou tentar emendar a mão dando-lhe esse prazer ainda que fora do prazo, até por eu mesmo ter algumas ligações fortes à rádio, coisa de que nem só a infeliz Marie Curie (1) se pode gabar, ou antes lamentar, o que terá sido o caso…

São mui antigas as minhas ligações à rádio, lembro-me da minha avó Bernarda (2) ter o que na época se chamava “Galena” (3), com a qual me seduzia e entretinha girando um botão, enquanto me pedia que colasse a ela o ouvido, isto é, que ficasse atento.

- Escuta esta, Sidney, deve ser a Rádio Antípodas, falam muito mas passam pouca música.

e eu ia “vendo” o mundo rodar à medida que ela girava o botão, como quem rodopia nas mãos um globo terrestre, pelo que cedo me familiarizei com os tangos argentinos e os pasodobles espanhóis, as rumbas cubanas e o samba brasileiro, e, numa noite estrelada, milagre dos milagres, deitados os dois numa esteira estendida no quintal olhando as estrelas, repentinamente ela:

- Olha ali Bertito ! Ali vai ele ! Vês aquele pontinho brilhante entre aquelas estrelas e voando de este para oeste ? 

entre nós um rádio numa cadência matemática, bip bip bip (4) anunciando novos mundos ao mundo e calando em Nova Iorque os Blues, o Jazz e o Charleston, que nessa noite a avó Bernarda não conseguia sintonizar ou ouvir de modo nenhum. Minha avó Bernarda era telegrafista mas amava a rádio, coisa que por magia dispensava os fios, chegava mais longe, mais depressa e até os americanos do Check Point Charlie (9) a usaram para namoriscar e seduzir, aliciando através dela os comunas do outro lado da cortina de ferro a que viessem viver para o paraíso. Hoje, ultrapassada que está a guerra fria, sabemos que o paraíso, ou o inferno, moram de ambos os lados e vivem em conúbio.

Depois destas experiências, que jamais esquecerei, a minha ligação à rádio estreitou-se ainda mais quando o meu mano comprou e levou lá para casa um pequeno transístor, daqueles com que os japoneses inundaram o planeta e que todo o dia cantarolava não havendo pilhas que chegassem, sobretudo depois dele, mano, me ter ensinado a captar a “Radio Caroline” (4), uma emissora de radio europeia que iniciou as transmissões em 28 de Março de 1964, a partir de um barco ancorado em águas internacionais ao largo da costa de Felixstowe, Suffolk, Inglaterra, e que sem licença durante a maior parte da sua existência, foi etiquetado como emissora pirata. Contudo transmitia músicas proibidas, actuais, actualíssimas, e de top. Fez história essa rádio porque sobre ela a Grã Bretanha não conseguia actuar por falta de jurisdição. Foi a partir da Rádio Caroline que conheci os Beatles (10) antes de todos e antes de eu mesmo saber quão famosos eles seriam, tal como foi a partir dessa rádio que me apaixonei pela música e intérprete Sandie Shaw, cuja canção me ficou no goto, “Puppet On A String, traduzido em Portugal como O Amor é Como Um Carrocel” (5), intérprete que partilhava uma peculiar característica, cantava descalça e tinha uns pés lindos, vi-os eu na televisão, e quem sabe se talvez daí a minha perdição por pezinhos, (6) a psicologia dá voltas inimagináveis e Freud já baqueou há bué da time…

Eu era demasiado novo para me aperceber da força da rádio e de como e a quem ela, rádio, atirava para o estrelato, a minha sensibilidade para tal começou ao ouvir falar da Guerra Dos Mundos (7) e de Orson Welles, ou de como nalguns países tiveram oportunidade de se tornarem fulcrais e terem até feito parte da resistência aos nazis durante a II Grande Guerra. O fenómeno Tv sim, acompanhei-o e apercebi-me claramente de que os Beatles (10), por muito bons que fossem, e eram, jamais teriam alcançado o sucesso que conseguiram sem os prodígios que a Tv permite e da sua divulgação a nível mundial, outros deverão os seus sucessos à rádio, mas como disse eu era novo demais e foi coisa que me escapou, peço-vos perdão.

Embora com falhas a minha ligação à rádio recrudescia, a partir de certa data passei a ser vizinho de uma, salvo erro a “Meridional”, onde ainda participei com uns programas de história a convite do amigo Liberato, rádio que nem sei para que meridiano emigrou. Todavia passei também a falar com outros amigos que tinha e tenho na rádio, ainda não fazia rádio, mas falava com eles, que faziam, até que o Espírito Santo me convidou e o Barrigoto me cedeu um espaço no programa dele, na “Rádio Jovem” e onde eu durante dois ou três anos todas as segundas feiras reproduzia oralmente uma crónica que pela minha mão saíra nesse mesmo dia num jornal da urbe. Mas confesso-vos, não gostava de me ouvir apesar da Floripes e tantas outras, começando pela Luisinha, ficarem presas pelo beicinho mal eu começava a falar. Tenho uma pronúncia acentuada e ainda por cima alentejana, e detesto ouvir-me a mim mesmo. Custa-me acreditar como há quem me ache graça ou tenha gosto em ouvir-me. 

Isto já depois do 25A de 74, porque antes disso a minha ligação à rádio se reforçaria às escondidas do poder, que desafiávamos em fins de 73 ouvindo a voz do poeta oriunda de Argel, pela “Rádio Voz da Liberdade” e encafuados num automóvel velho abandonado no Largo dos Penedos ao lado do portão da Carpintaria Braguês. Eu, o meu saudoso amigo Rosa, infelizmente já não entre nós, eu, ele, dois ou três outros compinchas e a Pimpinela Escarlate, que nunca cheguei a perceber se era ou não namorada dele e que eu assim baptizara por ela usar uma capa que a fazia parecer um espadachim. Namorada ou não marmelada haveria, pois sempre que nós entrávamos no bólide havia nítidos resquícios de cheiros pairando no ar, o mais forte deles nem era de ganzas, ao que se somariam os nítidos vestígios de roupas em desalinho e que eles tentavam atrapalhadamente disfarçar. Com o 25 de Abril a Pimpinela desapareceu, desapareceu o bólide do chaço velho onde nos acoitávamos, e desapareceu o poeta que contudo voltámos a ouvir já transformado em burguês e gozando os favores do poder, que eu saiba, esse poeta além de ter passado a viver a nossas expensas, nada mais vi fazer na vida que se aproveitasse, deixou até cair o nosso mundo no mesmo ou num pior buraco do que aquele que, quando de Argel nos ladrava, nos exortava a que não caíssemos. Um cão esse poeta, um cão como nós (8) que fomos na conversa dele…

Tal como o poeta, que nos abandonou, o paizinho a partir de certa altura também nos deixou à nossa sorte, quer dizer à sorte da rádio, e não mais nos levou ao coreto do jardim ouvir a banda da GNR aos Domingos, passámos a ouvir na rádio a Valsa do Danúbio Azul e outros concertos directamente, como se estivéssemos nos camarotes da ópera de Viena. Nem sei porque não gosta a Floripes de música sinfónica…