terça-feira, 10 de maio de 2016

345 - O PRÉMIO VALMOR ERA EU *…........………



A cena não é fácil pra mim, não que a tenha esquecido, ninguém esquece uma rejeição, ainda por cima coisa única na vida, ainda por cima numa idade tão tenra, ainda hoje não sei como não fiquei traumatizado, revoltado ou mesmo gago. Nem sei que não viu em mim a Quinita Santos para me ter recusado, tal como não sei porque depois disso não dei em incendiário ou bombista ou coisa do género, teria justificação acho eu e Freud decerto explicaria.

A coisa conta-se em poucas penadas, não que me agrade, como disse faço por nem lembrar essa rejeição, por isso nem sei precisar se ela ia no banco detrás ou se entrou na carreira em Montemor, a verdade é que só depois a vi e, não me interessando já nada, nem para nada, esqueci a razão que aduziu para a viagem a Lisboa, a mim, contei-lhe com alguma presunção, tratava-se do abandono desta cidadezinha de província, numa tentativa de encontrar a sorte na capital onde já tinha à minha espera um contrato. Esclareço que com a presunção e vaidade de quem tinha catorze ou quinze anos, no máximo dezasseis.

Arranjara emprego no escritório do Hotel Lys, mais tarde Lis, em plena Avenida da Liberdade, junto aos Restauradores, hotel cujo edifício tinha sido alvo da atribuição do Prémio Valmor, mas mesmo depois de alguns meses de vivência em Lisboa eu não estava elucidado sobre o que era esse prémio, só muito posteriormente vim a saber estar o prémio ligado à arquitectura e não, por exemplo, ao culturismo, que por essa época assolapava a capital e por arrastamento, a mim. Isto devido ao facto das senhoras do chá me chamarem inicialmente por “o nosso alentejano”, ou “o nosso eborense”, e mais tarde cada uma ter tido ensejo de me reclamar como o “seu prémio Valmor”. Toda a minha confusão vinha daí, e demorou tanto tempo a desvanecer-se quanto tinha demorado a instalar-se. A fachada do hotel era linda de estilo, era bonita, porém os funcionários não tinham ordem de entrar ou sair pela porta principal, ordens do senhor Garcia, o gerente velho e rezingão, para nós estava reservada uma entrada de serviço, gente menor, e é possível descortinar nas fotos bem visível à direita do edifício um portãozinho para o pessoal, dando acesso a uma escada exterior afundando até três ou quatro pisos abaixo do nível da rua e onde se situavam os armazéns, a copa, os serviços, as caldeiras, a dispensa dos víveres, que se fosse visitada pela ASAE teria originado um terramoto, e ainda os quartos dos funcionários. O meu quarto situava-se ao lado das caldeiras, quentinho no inverno mas o inferno no verão, até ao dia em que o Éden ou o Tivoli passou uma fita de guerra em que as caldeiras de um navio explodiam sob o impacto de um torpedo aliado e aquela maltinha ficou toda cozidinha. Nunca mais ali dormi.  

Esse insuportável quartito moldou muito do meu estilo de vida em Lisboa, já que tudo fazia para não voltar a ele antes das duas ou três da manhã, altura em que se tornava suportável e a partir da qual conseguia dormir alguma coisa. Depressa magiquei um estratagema, sendo eu quem no escritório controlava a ocupação dos quartos, depois de arranjar nos serviços de limpeza uma chave mestra de que fiz cópia, passei a dormir todas as noites num qualquer quarto vago à minha escolha e que abandonava antes das nove, altura a quem entrava ao serviço e tinha que estar já lavado e comido, a mesma altura em que as funcionárias iniciavam o seu deambular pelo hotel tratando dos quartos que iam vagando. Como eu fui amado, como me amaram lá, como me amavam ! Apesar de grande idiota fui e tenho sido um homem feliz.

Acho que nem chegou a um ano a minha experiência no Hotel Lys, contudo ele e Lisboa viriam a influenciar inclusive alguns dos meus relacionamentos futuros, quer tivesse tido eu neles um papel activo quer esse papel tenha sido meramente passivo, no final o que conta é o saldo, foram relacionamentos que partilhei e vivi, talvez desafiadores, talvez estranhos, de qualquer modo e felizmente sem resultados desastrosos a assinalar (links no final do texto). 

         É que, para me socorrerem ou apoiarem na integração na capital muito se esforçaram as senhoras habitués no salão de chá do Lys, senhoras nessa altura, hoje não lhes chamaria jovens mas senhoras ainda não seriam, era gente à volta dos quarenta, quanto muito cinquenta e com uma pedalada que, não fora a minha frescura e teria custado a acompanhá-las. Uma delas, de entre todas a mais beata e a mais devota tomou-me sob a sua protecção iniciando-me nas noites do “bas fond” alfacinha, onde era rainha e dominadora, a quem acabei por escolher os cabedais, os chicotes, as algemas e outros adereços MILF** enquanto ela me oferecia blusões de cabedal, capacetes com viseira de astronauta, uma novidade na época, coisas que íamos comprar à Butimoto Corba, uma loja para motards ali aos Anjos, na intersecção da rua do Condeça & Ferreira, dealer da Kawasaki, e do Stand Vidal, que vendia motas usadas e novas multimarcas. Eu tinha uma Solex com a qual corria Lisboa em peso e, desde que só mostrasse o blusão, o capacete e as botas à maneira, as miúdas eram um maná. Adoravam o meu look, o cheiro a óleo e a gasolina.

Vem a arenga de hoje responder à Sandra, olhem só do que ela me foi lembrar, Sandra que, já nem sei a que propósito me atirou com um Lys, a que somei uma bocarra provocatória da Zéza, apelidando-me de pinga-amor, a mim, um homem dedicado, com um casamento exemplar e feliz que já leva muito mais de trinta anos. Quem vê caras não vê corações, o mundo é como um carrocel numa feira *** e não pára, nunca pára, umas vezes saltei-lhe para cima outras levei dele encontrões. Não se experimenta incólume um carrocel em andamento, não se mete lá o pé, ou se lhe salta para cima ou se fica vendo-o girar ca de longe. A vida pode ser um chupa-chupa de algodão doce, mas é preciso que nos lambuzemos dela. O poeta disse-o “ Confesso que Vivi”.****

Cabendo-me a mim no escritório os débitos dos clientes, bafejava com ousada condescendência e perdão as contas das amigas do chá das cinco, coisa que elas me retribuíam com mimos e atenções. A desabrida Solex em que corria Lisboa fora oferta de uma delas, e anos mais tarde ter-me dedicado a restaurar uma BSA 250 Gold Star teve muito que ver com o sonho vivido nessa altura, ser boletineiro da Marconi cavalgando essas motas impressionantes distribuindo telegramas por toda a capital, como quem na Feira Popular desafiava a gravidade no poço da morte, calçando umas fenomenais botas de cabedal pelos joelhos…

Essa mota, depois de restaurada e melhor que em nova foi por sua vez posta à venda por mim no Stand Vidal passados alguns anos, a merda das motas inglesas nunca deixaram de babar óleo pela junta da cabeça lixando-me imensos pares de calças caríssimos o que me irritou bastante pois não dispunha de caneleiras até aos joelhos como a malta da Marconi ou a minha amiga D. Senhora Hermínia nas suas sessões de sado masoquismo e MILF das noites quentes e loucas de Lisboa.*****

Verdade que nessa época da minha vida vivi muito, vivi muito e vivi depressa, contudo tive oportunidade de me redimir de todos os excessos e pecados nos anos em que leccionei no Oratório de S. José, Salesianos, gramei dezenas ou centenas de missas diárias logo às primeiras horas de cada manhã, se para outra coisa não serviram ao menos limparam-me a alma.

Desde então não me tenho mantido casto, mas quase.

Capice ?





  
*** https://youtu.be/VEoCAUZSfwA   - Winner of Eurosong in Vienna 1967. Sandie Shaw - Puppet on a String -  em português, " O Amor É Como Um Carrocel "