quinta-feira, 25 de setembro de 2014

203 - TAMPAS, TAMPINHAS, TAMPÕES E REFLEXÕES...


Repentinamente esbocei um esgar, não porque tivesse sentido sabor acre ou adocicado, ou até azedo, ou picante, nada disso, somente lembrara o que agora me distraía o pensamento e me servira noutras ocasiões para coçar o cerume dos ouvidos, daí o reflexo de nojo, ainda que as minhas orelhas sejam regularmente lavadas, ou o cerume seja meu, o que contudo não obsta a que continue sendo cerume, então ta explicado o assunto, este disparo reflexivo e repentino do nojo, interrogo-me, isto é, deduzo agora sentado à mesa deste café, olhando a chuva caindo violentamente na rua enquanto debico a bica e roo uma tampa que levo aos ouvidos maquinalmente, cuspindo da ponta da língua a impressão duma bola de cerume.

Desta vez entretive-me a mordiscá-la enquanto pensava, todavia os pensamentos de hoje nada têm que ver com os de há trinta quarenta anos em que, atrapalhado com a resposta, D. Sancho II, por cognome o, bolas que me não lembro e inda há pouco tinha isso debaixo da língua, D. Afonso I o Conquistador ou Fundador, D. Sancho I o Povoador, D. Afonso II o Gordo, e bolas bolas que só o D. Sancho II me falta !

Já é azar, ou, como quando 3x9, 3x9, ora deixa lá ver, 9x3, 9x2 dezoito, e roía a tampa enquanto a cabeça me fumegava a todo o vapor até que 9x3 vinte e sete, só o D. Sancho II é que nada e, sem que me apercebesse, roía-a e roía ainda mais como se a resposta surgisse se arrancada à dentada, ou mais tarde tentando compor de cabeça o símbolo químico do azoto e o seu lugar na Tabela Periódica enquanto lembrava como eram lindas as tranças da Lúcia, ou o sorriso rasgado na boca grande da Matilde que me envolvia em celestial doçura sempre que a mim apontava para logo eu disparar matutando no plano inclinado, no fulcro e no eixo, numa alavanca e no mundo mudado, ou na circunferência e no pi se pi igual a 3,14 mais precisamente 3,14159265359 que nestas coisas da matemática só nos fica bem ser exactos, porque pi que é uma constante e jamais uma variável ou borras a escrita toda Alberto, afiançava-me um senhor Amado soltando a fisionomia simpática que trazia sempre afivelada, dando-me uma palmada nas costas afim de incutir confiança pois decerto vira como eu reiteradamente roía e roía aquela tampa, se é que não a metia no ouvido, coçando a lembrança que me não ocorria e tanto parecia sumir-se quão mais tentava lembra-la até que finalmente o “Capelo” !

E pronto estava o D. Sancho composto.

E atrás dessa história do rei beato, pio, piedoso, que em criança já o era e tinha usado um manto, pois era marreco, não querendo o pai que as pessoas descobrissem, por isso lhe pôs um capelo (manto) nas costas longe de adivinhar que por tal viria a receber o cognome de "O Capelo", e dado que nesses tempos não havia aquela coisa do "todos diferentes todos iguais" e a consideração pelos deficientes era nenhuma, o inepto e inábil marreco acabou deposto pelo Papa Inocêncio IV em 1245, passados muitos poucos anos e sob a acusação de «rex innutilis», o que diz muito sobre o personagem que eu agora, resolvido que estava o problema, tentava esquecer mirando aproximando-se a Prof. Escária Santos, a científica, palitando os dentes com uma tampinha encarnadinha, alvitro estar a vê- la no que me parece um túnel em que instalado estaria o laboratório de Stª. Clara, numa aula em que o magnetismo para cá e para lá, e a tampa era esfregada nos cabelos ou nas novéis roupas em nylon e, por via disso, pegando-lhe eu, a medo, e tocando com ela os membros da rã morta na mesa em mármore, as pernas se lhe distendiam num disparo como se o batráquio fosse soltar-se mas o que se soltava por vezes era uma pequena faísca da tampa para a rã, ou para um quadradinho de papel que cortávamos com a minúcia de um ginecologista e que, através da magia do magnetismo fazíamos dançar provando a ligação causa efeito no fenómeno da indução pelo que convinha tratar das unhas não fosse eventualmente alguma madame lamentar -se …

E aqui uma pausa de honra ao Dr. Abel Ribeiro, outro cruzado da causa efeito o qual, atravessando a sala para a frente e para trás limpando as unhas cuidadas com a ponta de uma tampa surripiada a qualquer de nós doutrinava:
+ com + é mais, 
– com – dá mais,
+ com – dá menos,
 - com + dá menos,
sinais iguais dá mais,
sinais diferentes dá menos

e eu erguendo em difícil equilíbrio vertical na ponta dos dedos a esferográfica e a respectiva tampa incapaz de catequizar o aborrecimento, alheio aos mistérios da sinalética e passando horas absorto, tentando adivinhar para que lado a ciência desequilibraria a caneta atento à mão do mestre, e à sua necessidade de desobliterar as unhas gamando as tampas à mão de semear, pelo que entalei nela uma folha do caderno, dobrada, fazendo com um impulso de mão voar o conjunto como resultado da mesmíssima dedução que levara os irmãos Wright a desvendar os mistérios do inimaginável quando ainda nem esferográficas nem tampas se imaginavam, e tão absorto eu ficara que nem dei pela Gertrudes Neto, pequenina e jeitosinha, berrando-me quase aos ouvidos:

- Alberto deixe isso e vá já ao quadro resolver aquele conjunto de fracções !

Ou equações, foi há muito, nem lembro, só me restou levantar-me, apanhar do chão num voo rasante a esferográfica e a respectiva tampa, deixei as asas para o Orville pois com a Gertrudes Neto não se brincava, não desde que conhecera o Roque, mais desejosa do toque de saída que de nos aturar por menos irrequieto que qualquer de nós fosse e, roendo as unhas muitos mas não eu que me ficava pelas tampas das canetas, as mesmas que me levavam da sala em voos inolvidáveis que teriam feito inveja ao mano Wilbur quando subiu aos céu enquanto eu, calmamente, ia tirando o cerume dos ouvidos…

Vous me comprenez, monsieur ? Et vous comprenez, madame?

E por falar nos manos Orville e Wilbur Wright, excelsos mecânicos de bicicletas, rememorei agora quando, com uma tampa arrombava os cadeados das ditas à hora das aulas a que faltava para ir passear nelas, mania que me ficou e levou a que, anos mais tarde, pelo mesmo método arrombasse o fecho da Casal de duas do Torrinhas Lopes, sim esse que morava na Qt. do Sacramento à “ladeira da boa morte”, cousa possível e provavelmente não alheia à sua prematura perda de vida (ou perca, como diria a minha amiga Guida), para num empurrão a colocar a trabalhar e nela me passear (nela na Casal de duas e não na Guida) até à hora do toque de saída ou a gasolina desse sinal de reserva.

Coitado do Lopes já se foi, já há muito que não está entre nós, foi um ar que lhe deu, inda o lembro metendo a tampa da esferográfica nos buracos dos incisivos, que tinha cariados e nem o deixavam assobiar por o ar se lhe escapar literalmente por entre os dentes como a água se nos escapa entre os dedos.

Até que um dia, maravilha das maravilhas, me começaram a chegar tampas atrás de tampas, cada uma com um escritinho, uma mensagem, e do outro lado um náufrago, a Bárbara afogando-se e gritando por mim, uma tampa um grito lancinante, eu desesperado, diria aflito, temendo ser arrastado por ela aos abismos, às negras profundezas dos abismos em que as primas eram vezeiras e useiras em afundar e resgatar-me, e a Bárbara aflita, e cada tampa um SOS, eu temendo aventurar-me naquelas águas revoltas até soçobrar um dia,

um dia inesquecível, o dia em que para segurar o sutiã nos socorremos de uma tampa atravessada na fivelinha como uma tranca, e desde esse dia me ficou um complexo de inabilidade com os sutiãs, desde que partíramos aquele no ímpeto do resgate que nenhum outro cedeu aos meus dedos nem aos meus desejos, e daí esta aversão a fivelinhas e colchetes, este trauma que volta não volta me leva a roer a mordiscar perdido de nervos desde as tampas das canetas e esferográficas ás cabeças dos lápis,

interrogo-me por que carga de água não têm os sutiãs fechos de imanes, fáceis, descomplexados, passe a segunda intenção, facilmente ajustáveis, adaptáveis, e isto deduzo agora sentado à mesa deste café, olhando a chuva caindo violentamente na rua enquanto debico a bica roendo a tampa de uma caneta, que levo aos ouvidos maquinalmente despoletando de forma inata o tal reflexo instintivo de nojo, cuspindo da ponta da língua uma imaginada bola de cerume, e, quem diria, bola que me levou a pensar que, quando rapaz, arrancando os macacos do nariz os rebolava entre os dedos até moldá-los numa esfera bem redondinha e, servindo-me do dedo médio como mola, chutava essa bolinha disparando-a pressionada contra o polegar, para cima de algo ou de alguém, rindo sátiro e mordendo raivosamente uma tampa, bendizendo a hora em que o plástico foi inventado…


P.S. –Após a conclusão do texto fui informado haver já sutiãs com fechos e ajustes de feltro, o que agradeci solenemente, ainda que não me adiante muito, cavado fundo que está o meu trauma e eu, cinquentenário, embora tenha agora o vagar e a paciência que dantes não tinha, deva ser franco e aceite faltar-me oportunidade e vontade para me debruçar criticamente sobre tão prestimoso melhoramento ou invenção. 
... 



 


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

202 - DAR A VIDA ... SE A NÃO PERDEREM ... by Maria Luísa Baião *


Se há exemplo de gente altruísta, abnegada, sempre disponível e pronta a ajudar o próximo, esse exemplo assenta de forma incontestada e singular nos Bombeiros, quaisquer Bombeiros. Desinteressados, parece não almejarem mais que a satisfação do dever cumprido e o reconhecimento social que todas sem excepção lhes devemos.

Há muitos muitos anos que, por força da minha actividade profissional lido com eles. Lidar é como quem diz, trabalho com eles e com eles privo, de tal modo que não deve haver no nosso concelho e nos concelhos limítrofes, bombeiro que não conheça e a quem não reconheça as qualidades que apontei. Somos quase uma família, tal a empatia que entre nós se gerou com o passar dos tempos e a miríade de situações criticas que partilhámos e haveremos de partilhar por certo no futuro.

Sei que em todos eles tenho um amigo, como eles sabem que podem contar comigo, pelo que muitas vezes funcionamos já sem necessidade de grandes explicações, cada um de nós cumpre o seu papel, não automaticamente mas profissionalmente, eficientemente, o doente está primeiro e os procedimentos assentam necessariamente nessa contingência.

É para eles que vai hoje o meu pensamento, tão só porque sempre dispostos a arriscar e dar tudo por qualquer de nós por nós disponibilizam, como Cristo, a dádiva maior, a vida... Se a não perderem.

Um desses homens bons nos deixou há dias, eborense, durante muitos anos radicado na vizinha freguesia de Azaruja, onde foi condutor da ambulância da Junta de Freguesia. Era para mim um homem bom, um soldado da paz, um Bombeiro. Nunca estando em paz com o mundo, mantinha-se contudo sempre pronto para acudir a qualquer mortal, espécie com a qual mantinha aliás uma relação ambígua de amor e recusa, que todavia jamais impediu o seu esforçado empenho e dedicação.

Falo-vos de Jerónimo Amaral, grande, barbudo, irónico e insolente, alma maior que o corpo, uma filosofia existencialista que foi limando ao longo da vida, vida que a todo o momento lhe apontava arestas, arestas que a sua dialéctica sui generis lá ia resolvendo, e cujo discernimento de forma muito própria se espelhava no seu espírito. Olhos vivos, o rosto sempre esboçando um sorriso afável, modos cativantes, e sempre armado duma vivacidade de criança ingénua que nos desarmava.

Nunca soube e jamais saberei porque me adorava, amor que sempre lhe retribui sem regatear e que se manteve mesmo depois de ter abandonado as funções de “bombeiro” e rumado a Évora, onde na rua de Burgos tinha há pouco inaugurado uma Galeria de arte e artesanato, sim, porque o Jerónimo era artista, da vida e da escultura em ferro, a partir do qual nos transmitia uma visão do mundo que tive ocasião, tempos atrás, de gabar nestas páginas.

É que uma vez Bombeiro sempre Bombeiro, por isso o Jerónimo nunca perdeu o seu carisma, nem a disponibilidade e simpatia desinteressadas que continuou a cultivar, por isso a sua morte tanto me magoou e pela primeira vez em muitos anos estou deveras zangada com ele, zangada e mui magoada.

Compreendi agora e só agora, nestes momentos de dolorosa reflexão, porque me tratava o Jerónimo por “Vizinha”, não por Luísa, não por Terapeuta, ou Terapeuta Luísa como habitualmente todos me tratam, ainda que não tenha vivido sequer perto de mim.

Eram a nossa maneira de ser e de pensar que estavam próximas e foi essa proximidade agora desvendada que me tocou o coração e que faz com que não possa perdoar-lhe o que nem sequer compreendo, a sua morte.

Tu que eras tão forte deixaste o mundo vencer-te ? Deixaste de lutar, perdida a esperança ? ou foi opção premeditada e modo de resolver um velho contencioso com este mundo que nem sempre podemos levar a sério ? Respeito a escolha, mas não posso passar sem criticar a solução.

Não havia outros caminhos ? Tu que tantos rumos apontaste e trilhaste, tu que tão bem sabias que o caminho se faz caminhando.

Que dor, que raiva que sinto, que pena.

Chorar-te-ei sempre.  


* By Maria Luísa Baião, sobre o suicídio de Jerónimo Amaral. Texto publicado no jornal Diário do Sul em 25-5-2001, coluna KOTA DE MULHER.