quinta-feira, 25 de maio de 2017

433 - NO BRAGANÇA OU NO PINTASILGO ............


Não o via havia cinquenta e cinco anos ou talvez mais um ou dois, ou menos dois ou três, mas não há duvida, tem o mesmo cabelo e os mesmos olhos de menino alegre que lhe recordava, aliás das poucas coisas que nele recordava. Isso e os bibes impecáveis, que também já não lembro se brancos, se azuis aos quadradinhos miudinhos, ou verdes, também os havia verdes.

O outro tinha um bibe desses, o Kito, verde aos quadradinhos, e ainda lembro a avó Inácia Ferradora, irada, a única vez que a vi zangada comigo:

- Tu fazes-me o favor de tratar o teu primo por menino ?

E eu moita-carrasco, era Kito para aqui Kito para ali, éramos da mesma idade, ou quase, seis ou sete anos, ou oito, a esta distância eu sei lá precisar. O menino Kito era o netinho preferido dela, filho da minha tia Lenita e do tio João, João Sebastião, doutor de línguas, outra estirpe, acho ter sido a partir daí que nunca mais gostei desse meu primo, hoje ter-lhe-ia chamado ódio de classe, mas não, nem ódio nem classe, não gostava dele mas nunca lhe tive ódio, nem ele classe, acho que tanto privilégio o estragou, deve ter sido isso que fez dele um parvalhão, eu por cá continuei na minha luta de classe, uma idiotice este século em que classe e classicismo ninguém tem, conhece ou cultiva.


Não o Júlio, não isto é, também era menino, o menino Julinho, mas não era parvo, brincávamos como iguais, conheci o pai, médico, bom tipo, embora não me lembre da mãe, decerto uma senhora de predicados, foi ela quem me sentou à mesa uma vez e me serviu arroz branco com manteiga, nunca tinha visto tal coisa, nunca comera nada daquilo, Monsaraz e Portugal por volta de 1960 eram o cu do mundo, e mesmo eu que depois ia lá passar as férias grandes ido de S. Miguel de Machede não seria o espingardeiro que sou hoje.

Da varanda da casa do Julinho viam-se, por cima das muralhas, os campos em volta, hoje ver-se-á um mar salpicado de ilhotas, um mar novo, ilhas novas, quando naquele tempo tudo em Monsaraz era velho, de novo somente duas ou três ruas esventradas por onde andavam passando os canos que levariam água a duas ou três bicas, uma nas traseiras da igreja matriz, ao lado da cocheira da Ruça, a burra do meu pai, a minha burra, a nossa burra, outra a meio da rua ida da casa da Inquisição em direcção à entrada da vila, a rua da taberna do Bragança, havia uma outra taberna na rua principal da qual não lembro o nome, Pintasilgo, seria a do Pintasilgo, talvez, fui lá tanta vez e não me lembro, passaram cinquenta anos, é muito tempo.


Ou num ou noutro, ou no Bragança ou no Pintasilgo, mais neste que naquele, gostava de ir á noite ver televisão, a avó Inácia deixava-me ir se durante a manhã lhe tivesse enchido as tarefas e os cântaros de água, que ia buscar à bica atrás da igreja, do outro lado da vila portanto, com duas latas daquelas que vinham dos USA para a Misericórdia, como dádiva, e cheias de queijo flamengo para os pobrezinhos, os pobrezinhos não são uma modernice d’agora. Aqueles tipos dos States foram sempre uma cambada de fascistas prontos a convencerem-nos da sua bondade, mas a verdade é que até as luzidias latas eram aproveitadas, levavam dois furinhos e uma asinha em arame, havendo dias em que faria dez viagens com cinco litros em cada lata, era trabalho infantil que a avó coordenava como ninguém, ela que criou treze filhos, mais filhas que filhos. Não deixava de ser exploração infantil avó/neto, classe a classe dentro da mesma classe, hoje seria inadmissível tal abuso, ainda chamar menino ao Kito vá que não vá mas burro de carga ?

Mas este que reencontrei cinquenta e cinco anos depois e cuja mãe não lembro mas ainda ouço foi quem o baptizou:

- Menino Julinho almoço !

E nós dois entretidos na brinca para logo puxado por ele subirmos rindo-nos a escadaria do quintal até á varanda e à cozinha, os olhos galgando as muralhas e estendendo-se até à raia de Espanha, o vau da Guadiana, tendo sido esses mesmos olhos inocentes que reencontrei agora, os mesmos cabelos finos a quem o pai de vez em quando desfazia a compostura, mão na cabeça abanando-a, sacudindo-a e:

Menino Julinho menino Julinho …

seguindo caminho com a mesma alheada firmeza com que se aproximara de nós, vida de homem, vida de gente grande, não, ali nunca houve coacção que me forçasse a qualquer submissão ao menino com quem repartia brincadeiras e me olhava com os mesmos olhos que hoje lhe vejo na foto que o trouxe até mim, meio século depois.


E enquanto eu rejubilava por ter reencontrado este querido e velho amigo de quem direi que o simples facto de existir me contenta e deixa feliz, soube que aqui ao lado Vinícius Júnior, jogador contratado pelo Real Madrid ao Flamengo, de apenas 16 anos e que terá custado cerca de 45 milhões de euros, poderá valer 200 milhões. A uns endeusam, a outros expulsam, outros há sem eira nem beira, enquanto uns riem outros choram, e outros caem em Manchester…  Ontem ali, a norte de Londres, confiando em amigos e jogando com a existência, outro ser, outra vida, sem preocupações quanto ao facto de os amigos existirem ou não, desiste de existir, desiste de si, arrastando consigo o caos e deixando em agonia a utopia que nos alimenta as ilusões e o viver, acreditando que, numa nuvem talvez maior, mas como a que fora vista na Cova de Iria o esperariam setenta e duas virgens antes de acabar o dia…