terça-feira, 24 de março de 2015

230 - MULHERES INCONTORNÁVEIS .....................


           Era impossível não dar por elas dado o entusiasmo reinante e o clamor que levantavam, quer eu quer elas frequentamos a pastelaria “Boa Vida” há anos, confesso todavia somente agora ter reparado nisso. Não que eu seja curioso, ou cuscas como agora se diz, não, não sou, são elas que tornam impossível que não se dê pelo seu grupinho, pela sua alegria, pela sua vivência, empenho, entrega e incontida felicidade.

Na minha mesa chamamos-lhe o grupo da galhofa, se bem que a designação não faça jus ao espirito solidário daquelas senhoras. Estava capaz de jurar nunca as ter visto antes, mas na mesa muitos garantem que as testemunham completamente mudadas. Parece que anteriormente de tão caladas ninguém daria por elas se bem que fossem habitués na pastelaria.

Agora eram comemorações e festejos semana sim, semana não, e raro o dia em que na sua mesa não houvesse algo ou alguma coisa para celebrar. Num dia era a constituição de um comité, no outro o objecto de determinada comissão, numa semana o estabelecimento de quaisquer protocolos, na seguinte a promulgação de uma qualquer medida ou legislação. Nada parecia ficar esquecido, nada parecia ficar por brindar. Hoje mesmo a conversa girava à volta de pontes, desemprego, duas almas penadas, solidariedade desinteressada, reportagens.

Ontem foi-me impossível não as ouvir gizando um grupo de socorro local vocacionado para os desfavorecidos da “Boa Vida”, decidiram-no de valência abrangente e integradora, de acção articulada com a comunidade e potenciadora de efeitos e expectativas que causas de tal dimensão sempre geram. No meio do banzé geral muitos beijinhos e abracinhos, muito chá de limão ou lúcia-lima, muitos jesuítas, muitas risadas e uma indisfarçável felicidade que toda aquela risota expunha a ouvidos e olhares.

A morena dos caracóis que dissertava sobre a angariação de roupas, calçado e brinquedos usados e respectivos canais de redistribuição não me era estranha. Costumava vê-la sozinha numa mesa da padaria tomando o pequeno-almoço, cara carrancuda, modos introvertidos, demorei a reconhecê-la, quase nem a reconhecia, tal a pacífica e feliz expressão agora reflectida no seu olhar. Toda ela estava mudada, eu apostaria até que melhor cuidada, verniz fúxia, baton a condizer, e ao dar conhecimento ao Reinaldo destes meus pensamentos largou uma gargalhada e, fixando-me nos olhos só acrescentou:

- E agora usa Wonderbra aposto !

Pela minha cara o Antunes adivinhou que ficara a patinar com a resposta do Reinaldo, aplicou-me uma disfarçada cotovelada e sussurrou:

- Largou a Triumph pá, agora tá noutro campeonato…

Confesso que se já estava confundido pior fiquei, para mim o campeonato eram a Suzuki, a Yamaha, a Honda, onde tardava mas só agora as marcas italianas começavam a impor-se e onde a Triumph jamais conseguira uma vitória, nem sequer me constava que tivesse estado inscrita. Embatuquei mas quedei-me por ali, não estava a alcançar a relação nem isso me afligia, e o Peres, olhando a minha desistência, esboçou um gesto despercebido aos demais para que eu entendesse a subtileza das coisas e quando colocou as mãos em concha junto ao peito imitando sopesá-lo, fez-se repentinamente luz no meu espírito e afivelei um rasgado sorriso. Sim, também seria verdade, pensei.

Até a ex. do Patrício parecia outra, era quanto a mim uma das mais activas do grupinho, faço notar aqui que era uma mulher bem-parecida gostando de se impor. Depois do divórcio passara certamente mal durante uns tempos, notava-se-lhe na cara e no descuido a que se entregara, contudo nunca desistira das suas ideias, e se por um lado lhe custaram o divórcio, não era menos verdade que levara a sua avante e dobrara o Patrício a quem, ao fim de muitos anos, obrigara a mijar sentado.

Não é segredo, toda a gente notava que o porcalhão salpicava os sapatos, e os ladrilhos da casa de banho acrescentaria a Lélia, coisa de somenos mas que lhe infernizava os dias e complicava com os nervos. Ela dobrou-o, todavia já foi tarde, a animosidade acumulada foi tanta que nem o facto de ter ganho a demanda evitou um divórcio litigioso.

Posteriormente tudo se passou muito depressa e nem conheço bem os pormenores, sei que o Patrício, despeitado, voltou a casar-se em três tempos com uma ruiva mamalhuda filha de um coronel que vivia ao fundo da mesma rua e que nunca fizera nada na vida (refiro-me à filha, embora dele pudesse dizer o mesmo) dizem as más-línguas que ela ter menos vinte e muitos anos que ele, facto que não ponderou, poderá ter contribuído para que tivesse baqueado que nem um patinho, porém toda a gente na avenida sabe que se tratou de um enfarte fulminante. Acontece aos melhores…

Acredito ter sido após este episódio que a Lélia voltou a dar acordo de si e a cuidar-se novamente. É provável que tudo tenha perdoado ao Patrício, ou então, como se compreenderia que encabeçasse a comissão instaladora dos “Patrocínios Patrício, Almas do Céu”, destinada a dar assistência aos desvalidos e deserdados da sorte no âmbito da paróquia ?

O meu bairro está a mudar, ele são intenções veladas de transformar o velho armazém numa capela, ele é a tecedura de acordos e acções de voluntariado com a Misericórdia e a Cáritas, ele são as filas da “Sopas & Paz”, isto tá de tal modo que um bairro tristonho amorfo e aparentemente deserto em que até os cafés fecham às 19:00h se está tornando hiperactivo como nunca se vira, em especial de há meia dúzia de anos para cá…

Um bairro onde as mulheres atiraram às urtigas o crochet e os homens as olham espantados, onde elas se dedicam entusiástica e efusivamente à acção cívica e abraçam o social com a mesma devoção que a Isabel Jonet entrega a alma aos pobrezinhos. A propósito, um cartaz à entrada da pastelaria anuncia-a como oradora convidada numa palestra promovida pelo grupinho “Escravas De Madre Teresa” calculo eu que de Calcutá pois o coronel, velho combatente da India portuguesa abraçou a causa sem sequer se interrogar e participará igualmente na tal palestra, intitulada “Será A Pobreza Trilho De Redenção” ?

Toda esta gente amorfa ganhou súbita e milagrosamente vida, gente sem objectivos tem agora uma causa, a crise criou a oportunidade e toda a vizinhança, tudo quanto era dona de casa desesperada ou frustrada é agora um soldado mobilizado na nobre tarefa da caridade e do voluntariado, as cabeleireiras da urbanização voltaram a abrir aos sábados de tarde, acredito que uma graça divina caia actualmente sobre os pobres na minha paróquia, a reciclagem de roupas, calçado, brinquedos e livros atingiu proporções inusitadas de que as pagelas que estas santas senhoras distribuem nos dão conta com um fervor desmesurado.

Por favor não estranhem a minha ausência, vou desaparecer por uns tempos, alguém disse a estas alminhas caridosa que em tempos dei aulas no oratório salesiano e chegou-me aos ouvidos estarem contando comigo, como contribuinte da sustentabilidade do grupinho e sobretudo para debater com a Jonet a vida e a obra de S. João Bosco … 



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