domingo, 14 de junho de 2020

ARRASTAR MULTIDÕES, OU ARRASTAR OS PÉS * inédito, por Maria Luísa Baião



Desde que em 73 ou 74, ano em que obteve algum sucesso com o aluguer de um monte a um grupo de escravos da colónia que a vida lhe sorria. De tal modo que, sem dar nas vistas e mantendo embora a mesma casinha simplória que alugara quando aqui assentara arraiais, mandou erguer no meio da serra um monte nada modesto que hoje não venderia a ninguém por menos de cinquenta ou setenta mil.

Foi o primeiro agente imobiliário que a terra conheceu, alugar o monte abrira-lhe horizontes conhecimentos e contactos que nunca pensara vir a abarcar, tanto que se dá mal com o protocolo e nunca se sentiu à vontade entre gente normal. Os recalcados complexos de inferioridade com que aqui chegou depressa lhe passaram, só não reparou que o rodeavam tolos que o incensaram mas que agora lhe não são capazes de acudir.

A favela estava carente, fez umas gracinhas e brilhou, tendo caído no goto de quem nunca soube o que querer e ainda não sabe, embora tenha passado tanto tempo que já lhe chamam avô. Foi apostando sempre no imobiliário, sempre devagar, que os excessos de oferta nunca foram bons para o negócio e é sabido que a procura é mais mansa se não tiver muito por onde se afirmar. A par dos negócios que ia controlando com mão de ferro fazia umas obrinhas de melhoramentos na favela, o que fez com que, para onde quer que fosse, arrastasse invariavelmente atrás de si uma multidão agradecida, ainda que cada vez mais empobrecida.

Depois descobriu acidentalmente que essas multidões estavam ávidas, há muito ávidas de consideração, coisa banal barata mesmo, que começou por distribuir parcimoniosamente, ainda que a baixo preço e hoje dissipa por altos valores. Negócio é negócio mas as coisas não vão bem. A turba é ingrata e a horda não lhe sai já nada barata. Uns exigem cada vez mais obras, a consideração passou de moda e atingiu uma cotação que anda pelas ruas da amargura, outros já não vão lá por menos e só lhe gritam;

- Fiquemos !

Ou uns ou outros diremos, não vai já decerto contentar ambiciosos há trinta anos desejosos e muito menos os gananciosos que lhe apertam o cerco, lhe tolhem o passo, roubam o espaço e dele tentam fazer um palhaço. Não deixa nem se queixa, vai andando, mirrando, a consciência não lhe pesa, a coerência ! Ah! A coerência ! Essa sim que coincidência ! Que ambivalência ! É um homem de sucesso a quem o processo avilta, mas em qualquer entrevista, se pelo progresso lhe perguntam, não hesita;

- Ah ! O progresso ! Não seria má ideia não !

E por aí se fica.

Amealhou um capital nada desprezível durante todos estes anos, pena que o ande a desbaratar em atitudes senis que já não convencem ninguém. Morrerá pobre se por este caminho teimar, pobre e sem glória, já que vassalos, gonçalos e outros que tais, mais dados aos vis metais, dele fizeram o bezerro de oiro que uns tolos adoram e outros ignoram. Como deus não terá grande sucesso neste mundo de mitos, como fetiche acredito mesmo que venha a ser empalhado ou melhor, embalsamado, se no entretanto não ficar emparedado.

É este profano que querem consagrar quem fica mais pequeno a cada dia que passa, em simultâneo passam-se os dias, acumulam-se os dias em que nada se passa, há-de até chegar o dia em que nesta cidade virtuosa, nem uma passa, o que não deve demorar muito até que aconteça, visto que todos se afadigam para que nada se faça, mas tudo pareça. Dos tempos de rapaz ficou-lhe o hábito de andarilho ou não tivesse ele corrido meio mundo para aqui chegar, por isso está velho dizem uns, que não dizem outros, está apenas gasto por baixo de tanto andarilhar, e a gente sem saber no que acreditar.

No entanto quando passa deixa já no ar um excessivo cheiro a naftalina, enquanto as criancinhas, somente as criancinhas ou outros inocentes, divisam já em seu redor seráficos querubins, anunciando o abandono da alma, gulosa de ascender à eternidade e posar desnuda nos frescos da abobada que o espera, que a todos espera.

Já não arrasta multidões, um fenómeno sociológico que a economia o desenvolvimento e o progresso futuros hão-de explicar para o ano faz com que já não arraste multidões. Vagarosa e penosamente arrasta os pés por estas calçadas que esventrou e só as crianças lembrarão um dia aquele andarilho que por aqui passou.


* NOTA: Vasculhando uma pouco usada gaveta dei com um nítido primeiro rascunho deste inédito de Maria Luísa Baião, impresso numa folha A4 já amarelecida pelo tempo, não datado e entalado entre dois livros que em tempos idos agitaram a urbe, ambos do mesmo autor ainda que separados cronologicamente por dúzia e meia de anos, ESTA CIDADE E EU do ano 2000 um deles, e UM PROJECTO PARA O FUTURO o outro, de 2016. Atendendo ao lugar em que o rascunho se encontrava diria que o mesmo reportará alegadamente ao autor das obras mencionadas. Tive o cuidado de nada alterar, cuidei somente da pontuação e de um ou outro pormenor de somenos importância. Eu próprio que com ela privei ignoro o sentido de alguns parágrafos, talvez o leitor faça deles uma leitura mais completa que a minha, por esse motivo impunha-se que o texto fosse minimamente remexido por mim, facto que respeitei em memória e respeito pela sua autora.A seu tempo darei a minha opinião sobre este pequeno livro que somente agora comecei a ler.