terça-feira, 25 de abril de 2017

429 - ALCÁCER-QUIBIR, DISSE O ASTRÓLOGO

  
Observo neste domingo ensolarado pela montra de vidro, antigo, biselado, o movimento na rua e, destacando-se entre os intervalos do ferro forjado, na orla do quadrado que a montra qual moldura desenha na parede deste vetusto prédio, os traços argênteos duma loura parecendo carregar sobre os ombros pesada melancolia, delineando-lhe a irregularidade dos passos num rumo apontando à solidão e em cuja projecção se atravessa uma florida mimosa atapetando de amarelo o chão por ela pisado mas que não pisa, pois chuta p’ra diante as flores, p’ra diante e para longe ficando eu pensando no meu recanto se aquela mulher loura carregando tanta tristeza, retirada, recolhida em si mesma, supondo eu ao ver-lhe vagamente no dedo uma aliança, se o fará por entretanto ter criado aversão ao casamento, não tendo eu contudo a certeza de ser ela casada ou não e a ser, se terá falhado esse vínculo cuja existência uma visível mágoa parece denunciar.

Mágoa espelhada numa carinha de anjo de rara beleza, uma beleza rara, daquelas capazes de conduzir à loucura o mais listo, uma loucura translúcida, das que se podem carregar sem que os demais dela dêem conta, dela loucura, não dela beleza, porque a beleza essa é elegíaca, insensata e extravagante de manifesta duplicidade, tanto nos fazendo meter para dentro como sair de nós mesmos, cada um de nós a seu modo inda que raramente imbuídos ou impelidos por um raio de luz que, professara um astrólogo, desde Alcácer-Quibir seria por alguém cavalgado numa manhã fantasmagórica de nevoeiro.

Porém quem nos surgiu e surge não passa nunca de cornaca, bufarinheiro, ou marinheiro, como com o último anacoreta aconteceu, o mesmo que se apresentou totalmente tatuado, roda de marear nas costas da mão direita e, na esquerda, compasso traçando firme um azimute certamente arrancado duma bússola, essa palavra esdrúxula, rumo que sob a luz trémula da incerteza torna duvidoso o caminho apontado a uma miragem e, quando já perto da margem, da orla, dissipado o nevoeiro o comandante avistou terra, algumas aves raras e uma estranha e florida ilha, acorreram a vê-la, interessados, em júbilo e em horda incessante toda a marinhagem, toda a canalha arrebanhada para as artes da nau em véspera anterior à partida por tavernas, albergues e bordéis e, entre todos eles nem um probo, antes e na generalidade cobaias, heróis uns mártires os outros, todavia a todos o mar, os ciclones, tornados, furacões e o escorbuto dava conta, levando-os a lento agonizar e profunda depressão.

Fundearam num extenso vale entre montanhas albergando o planalto aí existente uma vasta planície por onde deitaram correndo na sua sede de terra, tremendo, de pernas bambas, dolentes, inseguros e induzidos ainda pela dança dos balanços no mar, tendo reparado então que de terra todos quantos para eles acorriam dando as boas vindas estavam loucos, esfarrapados e esfomeados. Foi só nessa ocasião que a tripulação, em delírio e dando conta da sua própria demência reparou em toda aquela faixa de terra estéril, num lindo e florido jardim à beira mar plantado pelos andrajosos indígenas, entretidos há quarenta e três anos lançando ao mar nas noites de lua cheia e do alto das falésias os mortos purulentos de olhos cavados e línguas inchadas, a fim de poderem ver o mar levá-los como foice prateada nas mãos de ceifeira desastrada.

Alguém trouxera do navio uma ampulheta e duas clepsidras, ajeitando-as equilibradas na praia, sobre o cadáver dum cachalote em decomposição ao qual já tinham comido uma barbatana, assim calcularam o tempo, a hora, o dia, e, com o luar no auge estimaram estar a viver esse prodigioso momento numa terça feira, p’las zero horas do dia 25 de Abril daquela terra onde a diferença entre natureza e sociedade não chegara ainda, nem chegaria nunca, mas quem o sabia ?

E, enquanto na abóboda celeste a lua caminhava lentamente, em terra os loucos e os dementes festejavam sem saber o quê, lançando uns os foguetes e correndo os outros a apanhar as canas, das quais uma loura ensimesmada e receosa se ia desviando desde que se conhecera a si mesma, temente dum medo que agora não lograva evitar, esquecida da medicação, esquecida das consultas, recordando somente que a primeira cana a assustara mais do que ferira já lá iam quarenta e três anos, quarenta e três anos em que fugia a uma festa que não compreendia mas que perniciosa insensatez ano a ano replicava automática e irreflectidamente reproduzindo-a sem refutação,  agora sem graça por não haver quem saiba biselar um vidro ou construir uma janela em ferro forjado a cuja montra possamos sentar-nos observando através dum vidro antigo, trabalhado, biselado, o movimento da rua num qualquer domingo ensolarado.