segunda-feira, 4 de junho de 2018

505 - MUSICALIDADES * por Maria Luísa Baião ...

Flávio Belisário assegurou uma vitória assinalável na Batalha de Dara (530) diante dos persas, e segurou ainda o Imperador Justiniano no poder, aquando da Revolta de Nika (532).

Amigo nada chegado ousou pôr em questão alguma prosa minha, mormente a concernente à música, à qual muitas vezes me refiro como imbuída de cores inverosímeis e odores indescritíveis. Suponho não ser para ele nada natural ver a música descrita através de figuras que nada têm de musicais. Atão direi que nunca me falaram com menos razão.

Felicidade a minha, que já tenho uns aninhos de vida e, ao contrário do meu inusitado amigo, vejo, para além dos sons, imagens que só mesmo a música me traz. Talvez o meu marido possa não gostar, mas como esquecer Peny Lane, dos Beatles, quando ainda moça desvairava pelo Dimas, cujo pai tinha uma loja de gravatas ali à João de Deus ? Como irei alguma vez esquecer sonhos, a carinha laroca do Dimas, ou o álacre viveiro de gravatas no expositor logo à entrada ? Não sabe o meu marido que a teimosia no exagero e extravagância que coloco nas gravatas que lhe ofereço, têm muito que ver e quanto, com as gratas recordações do Dimas, que persegui sem qualquer resultado e hoje o digo sem a menor pena ou arrependimento.

Peny Lane, é gira, tem violas e violões, contrabaixos e bemóis, acústicos e percussões, certo, e tem um coração alvoroçado cada vez que é tocada, passados tantos anos de pensada. E dizem-me que música é música e somente música?

Je t’aime mais non plus, que já nem me lembra quem cantava, recorda-me o cheiro adocicado de rosas-malva, a imagem de um enforcado e o Tó Rosado pedindo-me namoro enquanto denteava uma maçã verde. Adoro ainda hoje o odor e a cor salmão das rosas-malva mas nem sei por que carga d’água não sou capaz de tragar uma maçã. Esqueci a francesa, não esqueci o Tó Rosado, que só não fiz feliz por me ter pretendido no injusto momento em que alguém entendeu não ter a vida música. Desculpa-me Tó, mas como decerto hoje saberás, há momentos para tudo.

Pintem-me da cor que quiserem. Adoro os Procul Harum, em especial Hotel Califórnia, um álbum com perto de cinquenta anos. Não conhecem ? Claro que não conhecem, mas eu conto-vos. É um álbum de uma voluptuosidade afrodisíaca, dos tempos em que me fiz mulher, dos dias de festas em casa da amiga Irene, dos tempos em que conheci aquele que hoje é meu marido. Mais ? Ainda precisam mais provas de que o que a música menos tem é música ? Tem cores, odores, sonhos, devaneios e tantos anseios quantos os anos que já conto, e nem vos digo, quantas notas são precisas p’ra que uma pessoa se sinta perdida. 

Lembrem-me os Rolling Stones e têm aqui uma libertária pronta a pegar em armas, atirem-me com os Pink Floyd e reparem na minha transformação quase imediata em contestatária anti-sistema. E falam-me em sons, em música, coisas que não tenho como redutoras e me abrem o espírito para acções e recordações sem fim. Água Brava, fixem este nome, este perfume, esta colónia, after-shave. Nem vos conto nem vos digo, quanta música encerra uma só nuvem vaporizada de Água Brava, pediria apenas que hoje, mulher madura, adulta, responsável e figurinha pública, me tirassem desse filme.

Há quem coleccione álbuns, cassetes, discos e cd’s. Eu colecciono perfumes. Cada um, sem que ninguém saiba, traz agregado a si um álbum de recordações, de imagens, cheiros, devaneios e sonhos lindos de encantar. E não se paga mais por isso. Haverá quem coleccione postais ilustrados, selos, vinhos, calendários. Eu colecciono perfumes, bocados de vidas e amores, religiosamente, num grande armário. E qual lâmpada de Aladino, um frasco lembra-me um apeadeiro de comboios em Vila Franca, outro, o primeiro quarto alugado que ocupei no Rêgo, uma colónia espanhola que se está a acabar, um dia de Primavera, eu de peúgas brancas, botas de camurça, e alguém que me pediu em casamento. Num spray já ferrugento, o odor a bebé do meu filho, roupas de maternidade.

Música? Música é o que você está a dar-me Perdigão com essa treta da música ser simplesmente música. Engana-se, é muito mais, só lamento que o não sinta.

E Beethwoven ? Como e porque pensa você que ele escreveu tantas maravilhas musicais depois de completamente surdo ? Eu digo-lhe, ou estava apaixonado ou amava a vida. E a que pensa o meu amigo que deve Stradivarius a sua mestria ? O seu delírio ? À música ? Está enganado mais uma vez amigo Perdigão, ele nada percebia de música, mas na busca da mulher ideal acabou produzindo mais de vinte virtuosos violinos por cada ano da sua vida sem que nunca tivesse encontrado o amor dos seus sonhos.

Belizário, diz a lenda, deve o seu infortúnio às imagens que viu enquanto se deliciava ouvindo o canto da Lira. Depois de uma vida de vitórias é afastado da corte de Roma em 562, cai em desgraça e acaba na miséria. Nada que não tivesse sabido de antemão. Belizário acreditava que nada teria mudado o seu destino, nem uma linha traçada na palma da mão com o fio do seu punhal.

E Einstein Perdigão?  A que pensa que se deve a sua genialidade ? O seu êxito extraordinário ? Sabe que ele não foi músico ? eu sei que ele não somente via como ouvia a música do Universo, a harmónica harmonia do Universo.

Entendidos quanto à música amigo ? Ouça-a menos e pense-se mais, não se arrependerá.

Flávio Belisário entra triunfante em Roma  no âmbito da Guerra Gótica

* Publicado por Maria Luísa Baião cerca de  21‎ de ‎Setembro‎ de ‎2005 in Diário do Sul