segunda-feira, 16 de setembro de 2013

162 - PETITS VOLEURS ........................


A carrinha celular parou frente ao café, um garboso e desempoeirado jovem saltou para o chão, endireitou-se, deu um toque na melena e avançou resoluto direito a mim

Paragem para a bica, pensei, afinal aqui costumam parar os paramédicos do VMER,  os polícias de giro, o guarda-nocturno

Só então o reconheci, tinha sido meu aluno nos idos da mudança de século, e dos bons. Sorri, ele retribuiu-me o sorriso, avançou a manápula, aquilo não era uma mão era mesmo uma manápula, e atirou:

- Era mesmo de si que andava à procura prof, já fizera por aqui caminho duas ou três vezes nessa esperança mas não tinha calhado, e como ando sempre à pressa

E para o que calhou retorqui-lhe eu entre espantado por vê-lo enfiado naquela farda, e surpreendido por ser procurado tão cedo e naquele local por um guarda prisional

- O prof lembra-se de um aluno chamado Noronha ?

Embatuquei, mas prontamente lhe redargui

- Filho, (sem do nome dele me lembrar) eu tive milhares de alunos filho, (e o filho dito mui enternecidamente afim de esconder a minha atrapalhação)

- Pois disseram-me que ele tinha sido aluno seu há uns bons anos, quando o prof ia à cadeia dar aulas

- Ah ! Bati com a mão na testa e recordei o Noronha, de apelido Bicho, ou alcunha, e isto há uns bons vinte anos atrás, ou bem mais

- Pois é prof, deve ser esse, porque eu só o conheço pelo nome que me indicaram, precisamente este,  Noronha

Visitou a cadeia velha no passado fim de semana para saber de si, não fui eu quem o atendeu, foi o sargento Peres, foi ele quem me incumbiu de o procurar pois na segunda feira entre os comentários do futebol, do fim de semana e de mulheres, veio à baila esse Noronha, e como eu disse saber onde o prof batia, fui nomeado para lhe fazer chegar às mãos esta pequena saqueta, foi-nos entregue por esse tal Noronha, ou Bicho, com o pedido expresso de lhe ser dito que lhe ligasse quando melhor lhe aprouvesse

E o meu grau de surpresa aumentou, e para onde devo ligar-lhe Damião ? (é que entretanto me acudira à memória o nome desse desempoeirado rapagão)

- Para aí mesmo prof, na saqueta está um cartão SIM de telemóvel pré pago e o prof deve ligar para aí, foi o recado que me encomendaram, fica dado, estou apertado de tempo pois já devia estar a carregar um preso para levar ao tribunal, fique bem, gostei de o ver, esse tal Noronha parece que lamentou não o ter visto

Aceitei a saqueta, um pequeno envelopezito com o logótipo laranja da operadora, achei tudo aquilo mais estranho que misterioso e guardei no bolso o citado

Recordei o Bicho, ou Noronha, não muito pequeno, espadaúdo, adorava andar em mangas de camisa, brancas, colarinho aberto, mesmo no inverno, mostrando os bíceps bem modelados

Ele e mais trinta e poucos cumpriam penas por pequenos delitos, na generalidade furtos, e todos eles, quase sem excepção, reincidentes

Não lidava com gente branda, diria até serem mais brutos que inteligentes, eu cumpria um período de voluntariado em substituição do padre Geraldes, (que por sua vez tinha sido meu prof) recentemente aposentado, tratava-se de um curso de formação de adultos pois a maior parte deles tinham somente a antiga quarta classe, ou nem isso

Era gente bruta a quem a sociedade nunca daria a mais pequena oportunidade, já nesses tempos se vivia uma crise com contornos idênticos à de hoje, não se ganhava para comer, e era-me difícil entender que a criminalidade e a violência se mantivessem controladas dentro de valores aceitáveis, como diziam as estatísticas oficiais

Verdade que também sou laxista nos limites desses valores, mas há por aí desde conservadores e revolucionários muitíssimo mais exigentes ou intolerantes que eu

O sentimento que me ficou após as primeiras horas com este heterogéneo grupelho foi a de que eu estaria ali para os distrair, e pareciam apostados em fazer-me crer que mais não conseguiria que isso

Também sou macaco, e, mal me apercebi, delineei estratégia e táctica apropriadas

- Pois é meus amigos, pelo que me apercebo vocês não estão aqui por roubarem, estão aqui por serem parvos, talvez parvos seja um eufemismo e deva dizer mesmo é brutos

Atirei a bocarra e calei-me, calaram-se quase de imediato, não esperavam o ataque nem esperariam tanta franqueza

Por breves segundos entreolharam-se, temi que um mais afoito recuperasse da surpresa e reagisse, e se reagisse mal poderia arrastar todos os outros e eu, no mínimo ser sovado, até que o alarido soasse aos guardas e estes acorressem em meu socorro, não antes de decorridos dez a quinze minutos, tempo mais que suficiente para eu levar uma surra memorável, e nem seria o primeiro caso ali 

Mas não, aquietaram-se bufando nas carteiras. A minha estratégia e risco tinham resultado. Com cautela avancei

Fiz-lhes sentir quanta a necessidade de formação e cultura, e, até para roubar, naqueles dias, (e nos dias de hoje ainda mais), ladrão ignorante jamais se safaria e arriscaria estar constantemente a bater com os costados onde estavam os deles. Não era futuro

Prestaram atenção, nesse dia e nos seguintes, nuns mais que noutros, mas prestaram

Falei-lhes da necessidade de saber ler, e ver, olhar, observar, na necessidade e vantagem de domínio do conhecimento, exemplifiquei, naquele dia com a electrónica, metade deles estavam ali por furto a residências ou viaturas e apanhados pelo troar dos alarmes, nem um alarme souberam desarmar

Ou seja, estavam ali por ignorância pura. Há que aprender, saber, falar bem, dominar o vocabulário, a técnica, adquirir formação, ler livros, ler Sherlock Holmes, Agatha Christie, Arsène Lupin,  Hayao Miyazaki, Maurice Leblanc, Alexandre Marius Jacob, Proudhon,  mas também sobre Marx, Engels, John Locke, David Hume, Tocqueville, Adam Smith, David Ricardo, Milton Friedman, Hayek, liberalismo, libertarismo, anarcocapitalismo mercados, concorrência, Estado, propriedade... Tudo coisas que lhes expliquei

Contei-lhes do bando de Ronald Biggs, da sua vida e aventurosa aventura, contei-lhes da preparação e do assalto ao comboio correio em Londres, corria 1963, levei-lhes, e passámos na sala de aula uma cassete com o filme dessa façanha, ensinei-lhes métodos de pesquisa e aprendizagem, métodos de observação, e desde aquele Outubro em que temi pela minha segurança até que em Julho nos despedimos, criámos amizade e laços de cumplicidade

 A alguns deles encontro por vezes, por aqui, pela cidade, a outros já nem recordo e nunca mais vi, o Noronha Bicho jamais me acudira ao espírito, até hoje ...


Nota : continuará num próximo texto, intitulado " VOLEURS  DE COL BLANC "