quarta-feira, 18 de maio de 2011

49 - PAU DE CANELA ... (3ª de 3 crónicas) .................




Lembram-se da crónica anterior; “Não é o que Pensam”, em que vos falava dos meus amigos e em que propositadamente deixei para depois a Filipa e o Afonso ?

Pois chegou a altura de vos falar deles, um bom par de jarras !

Em primeiro lugar explicar-vos que muito aprendi com o Afonso, mais velho que eu meia dúzia de anos, o que quando jovens era uma diferença abissal, em idade e em sabedoria ! (conhecemo-nos desde que nos encontrámos, gaiatos, roubando pistolas do Zorro das montras dos feirantes durante o S. João ! )

O Afonso foi um dos primeiros ganzas existentes nesta cidade, (quando ainda nem na droga se falava já ele andava sempre “apanhado”), e um dos primeiros que, nas então recém inauguradas Piscinas Municipais de Évora, ousava ou aventurava-se a mergulhar da prancha olímpica dos dez metros para o poço respectivo, com a arte, harmonia, beleza, e sedução tão próprias aos mergulhadores das falésias de Acapulco !

Filipa era médica fazendo o internato no, nessa época denominado Hospital da Misericórdia e a ela “roubado” pelo estado no pós 25 de Abril, hoje Hospital Distrital, mais concretamente Hospital do Espírito Santo.

Filipa foi seduzida em primeiro lugar pelo porte altivo do Afonso, pelo garbo com que mergulhava, e, dizem as más-línguas que, numa fase posterior, pelo modo como lhe chupava os dedinhos dos pés e o resto.

A verdade é que se enlearam e não havia dia em que não fossem vistos tomando a bica juntos, ou se embrulhassem, por vezes em plena piscina, onde não havia quem não reparasse tal o escarcéu que faziam, mas, continuemos, bica que o Afonso já então remexia com um pau de canela, dizia ele que para disfarçar o hálito de odores do tabaco e da erva.

Tal foi o tempo que a brincadeira de se enrolarem durou que ainda hoje basta ao Afonso o cheiro da canela para ficar com pica, tal o poder da sugestão numa mente tão desbragada e voraz quanto a dele.

A verdade é que miradas duas tatuagens, uma de um golfinho no braço direito e outra de pétalas de rosa na omoplata esquerda, e remirados os dentes da Filipa pelo Afonso, tal qual se faz ás mulas, aos camelos e se fazia aos escravos, ele aceitou um compromisso entre ambos desde que excluída ficasse a fidelidade, coisa que afirmava ser incapaz de respeitar mas que eu curiosamente suspeito, e todos os seus amigos seriam capazes de apostar forte, ele não ter até hoje, e já lá vão perto ou mais de 30 anos, não ter dizia eu, quebrado !

Mas não pensem que tudo foram sempre rosas.

Em primeiro lugar, sendo ganza tão jovem, Afonso não parava em emprego nenhum até que por influência de um padrinho (isto dos padrinhos não é só de agora), lá conseguiu uma vaga de gato-pingado primeiro e de maqueiro depois, no citado hospital.

Durante uns tempos conseguiu de modo mirabolante evitar a Filipa, médica lá mesmo recordam ?

È que o Afonso intitulava-se engenheiro de recursos hídricos ou coisa do género, com os anos perdi muitos pormenores, ou confundo-os, compreenderão e desculpar-me-ão certamente.

Finalmente uma noite a coisa deu-se, a Filipa estava de banco, requisita um homem que levasse um doente ao Raio X e aparece-lhe o Afonso, de bata azul, barba por fazer, beata atrás da orelha, e tão surpreendido quanto ela embora já esperasse que um dia a coisa desse barraca !

A Filipa corou e ferveu de tal modo que o olho estrábico ficou emparceirado com o outro pela primeira vez na vida, mas não se desfez, deu-lhe uma ordem seca e autoritária e pediu-lhe que não voltasse enquanto o doente não viesse com a chapa na mão.

Consta que no dia seguinte em casa dele ou dela teve lugar uma enorme discussão que durou pouco e redundou em amor pelas cadeiras, mesas, balcões de cozinha, carpetes, sofás, e este apontamento, ainda recordo como se fosse hoje, o facto do Florival se me ter queixado ter ido lá a casa reparar um candelabro que nem sabe como teria sido literalmente arrancado do tecto, mais tendo parecido, palavras dele, alguém no mesmo se ter pendurado propositadamente !

Certo certo é que deixaram de ser vistos juntos, os colegas da Filipa jamais lhe perdoariam a opção por um maqueiro, não me atrevo sequer a aludir ao que ela eventualmente tenha pensado, o Afonso desapareceu do hospital e da cidade pois durante bastante tempo não lhe pusemos a vista em cima, e foi, foram visto juntos pela primeira vez após o “embate”, num ginecologista, que lhes disse tratar-se sim de um alarme falso, e não só a Filipa não estar grávida, como nunca o estaria, pois tudo indicava que, infelizmente, jamais algum dia o ficaria.

Sei que por esses anos da década de oitenta, quando as taxas de juros atingiram valores astronómicos, só batidos pela inflação e pela desvalorização do escudo, tornando inevitável a entrada à bruta do FMI no país e a saída de divisas para o estrangeiro, o Afonso ganhava a vida levando grandes quantias, em notas, de Portugal para Espanha, iludindo a alfandega, dinheiro que depositava numa conta que abria em nome do mandante em Badajoz, serviço pelo qual cobrava uma comissão e “gancho” que igualmente o influente padrinho lhe tinha arranjado, ao qual dava cobertura e afiançava.

Correu tudo muito bem durante algum tempo até que lhe coube a responsabilidade de uma maquia maior que ele não resistiu a depositar em nome próprio, tão certinho como eu estar vivo e ele saber que do lado de cá o queixoso simplesmente não se podia queixar, tendo sido por esses tempos que cagou finalmente no padrinho, que todavia quando o Afonso completou a sua formatura universitária lhe perdoou tudo mais uma vez, e tratou de mover influências tais que o Afonso, que sempre tivera sido um óptimo maqueiro, se viu repentinamente guindado à Administração de uma Empresa Pública como por obra e graça do espírito santo.

Anos mais tarde o seu terno e incomparável padrinho, já velhote e que por isso ou por mor de uma amante 30 anos mais nova, morreria de maneira fulgurante e de um modo tão pouco ortodoxo que obrigou a que tivessem que lhe partir o membro para que não descansasse no alaúde de bandeira levantada !

 Não sei se o Afonso comprou o diploma que hoje ostenta ricamente emoldurado na parede do escritório.

Sei sim que durante cinco ou seis anos frequentou uma universidade dessas privadas cujo aparecimento era recente e onde se deslocava todos ou quase todos os dias em carrão próprio, aguentando todas as despesas e, viemos a saber depois, em cumprimento de promessa feita à Filipa, que já não teria motivos para se envergonhar dele.

Correram-lhes as coisas tão bem que a Filipa é Directora Clínica na sua especialidade, o Afonso é gestor de uma grande mas grande Empresa Pública, ambos usam fato e gravata das nove ás cinco, e, talvez por isso, é vê-los emporcalhados e fazendo chavascal quando saímos daqui nos nossos célebres passeios de moto, aparando-lhes a baba e o ranho, limpando-lhes o vomitado, e até o cu já uma vez calhou, e por mais que uma vez um dos nossos penduras encartados teve que trazer a mota e eles virem de táxi tão bêbedos estavam, pelo que só posso garantir serem amigos do peito e insuperáveis, desejar-lhes felicidades, e a vós garantir-vos não haver médica mais atenciosa, nem gestor de maior sucesso e tão bem engravatado, e pago, pelo que se vos cruzardes com eles na rua não hesiteis num caloroso cumprimento, são cidadãos de primeira apanha, apenas ela detesta mergulhadores e ele o cheiro a erva que por vezes paira no ar, coisas de somenos se em conta tivermos o facto de santos naquele grupo só eu, mas já sabem, de mim não falo, não vale a pena e já me vão conhecendo de ginjeira.


Afinal convenhamos que somos todos gente normal não ?