domingo, 19 de junho de 2011

58 - QUERIA OFERECER-TE UM RAMO DE CAMÉLIAS...




Eu queria oferecer-te uma flor amor, uma flor que cantasse um anseio, um receio, uma flor que encerrasse intimidades, lembranças, que te levasse puras e quentes, palavras ardentes.

Eu queria viver sempre em melodia, eu queria que não tivesse fim o dia, eu queria estar contigo agora, sempre, queria ser teu confidente, contar-te que sou alegria, gente.

Não esquecerei os teus olhos, o teu sorriso, se sinceros.

Eu queria oferecer-te um ramo de camélias, e corri doido, por floristas, campos e revistas, sem que em parte alguma o alcançasse, por isso pensei, que pétalas pudessem florir dos meus braços e cobrir-te, que o seu aroma preenchesse espaços, te fizesse rir, sorrisses…

Imagino o teu cabelo em desalinho, a tentação de o querer domar, só porque não quero que esconda um rosto lindo, cujo sorriso me fará sentir bem-vindo, e querer ao pé de ti ficar.

Sou aquele que mente, pensas tu, mas sou já crescido, gente, em que vive um coração que sente, alma temente, sonho persistente, atrevido e consciente, que o tempo ensinou a ser sincero.

Voo por cima dos meus pensamentos, sonho acordado, monto o cavalinho, parto à desfilada, delirante, e só a tua lembrança me acalma o caminho errante, me faz tornar à terra de mansinho.

Queria imaginar-te a meu lado prazenteira, e esse momento fosse de festa, bebedeira, ter-te comigo p’ra me consolar, para conspirar, guiar na cegueira, sossegar em mim esta canseira.

Canseira de incertezas e temores, de não poder sonhar-te eternamente, receios e pesadelos de perder-te, medo de procurar-te em vão e não te achar, olhar, não te ver e te chorar.

Vivo inquieto, imagino-te, e tudo me parece um sonho lindo, céus multicores, cheirinhos a mil flores, e irrequieto temo o sonhar findo.

Febril, em alvoroço, me ergo do sono, desvairado, procuro-te a meu lado, sento-me à beira da cama, angustiado, a noite profanada novamente me enleando no seu seio, deixando uma lágrima, um esteio, um esboço.

Um esboço que sonhei e se sumiu, que horrorizado vejo fugir do meu alcance, que temi perder, ficar distante, e foi essa saudade que uma lágrima traiu.


Não te escondas, não me abandones, não quero ficar sozinho neste mundo, serás tanto para mim, meu doce amor, não deixes que estoire no meu peito um grito agudo, porque para mim tu serás vida, tu serás tudo !



O TIRO DE MISERICÓRDIA QUE NÃO FOI DADO


O problema era mesmo o cheiro a sangue, se nada pior acontecesse a diversa bicharada deambulando faminta cinco milhas em redor dele se encarregaria de lhe dar fim, não de o estraçalhar pois estraçalhado já ele estava.

É daquelas coisas da vida que pensamos nunca virem a acontecer-nos, um tipo esquiva-se a morteiradas, bazucadas, paludismo e o que mais calhar, incluindo rajadas atiradas em jeito de despachar fogo e a que nos safamos como quem ginga com a sorte e, dias depois, arma ao ombro e julgando longínquo o perigo, avançando descontraidamente por uma picada, pisa-se uma mina, clic e pum !

Afinal não acontece somente aos outros, que merda de sorte, estou fodido, e agora ?

Se não fossem os bichos a dar com ele e a dar conta dele seriam os sul-africanos, por duas vezes já tínhamo-nos conseguido esquivar aos hélis, uma das vezes quase nos enterrámos na areia para não sermos vistos, sabíamos que não iriam desistir de nos procurar, tínhamo-los deixado suficientemente enraivecidos para que não pusessem de lado o prazer duma vingança a quente, o Mhuanha teria que desenvencilhar-se sozinho, que optar, que escolher, desde sempre o sabíamos, a guerra é feita de escolhas, qualquer guerra, nada de debates, de burocracias, nem opções inadiáveis, é antes feita de opções imponderáveis, imediatas, como no velho oeste, quem não sacasse primeiro morreria às mãos do inimigo.

Sabia-o qualquer de nós e sabia-o o Mhuanha, a vida decide-se ao minuto, um tiro certeiro do guerreiro e é a glória, um passo mal dado e é a morte do artista. Desfeito já ele estava, encostado a um penedo baixo, segurando com as mãos as tripas, ora apertando o garrote ora relaxando-o, enxotando moscas e mosquitos, leões, chitas, guepardos* hienas e mabecos seriam mais difíceis de enxotar, e se aparecessem os sul-africanos haviam de gostar de ouvi-lo falar, obrigá-lo-iam a falar, portanto o melhor seria guardar para si mesmo a última bala, se para a usar lhe dessem tempo e oportunidade…

Isso, tempo, o tempo seria doravante o seu pior inimigo, a terra, já de si avermelhada, escurecia e criava crostas empapada de sangue, a mesma terra que, como uma compressa lhe secava as entranhas expostas e lhe escondia a gravidade da situação em que se encontrava, tornando-a mais aceitável aos seus próprios olhos. Mhuanha sabia tão bem quanto nós não haver maneira de o levar dali até à base, muito menos chegar lá vivo caso teimássemos ou conseguíssemos carregá-lo, esperavam-nos pela frente três a quatro dias de marcha, a pé, isto se o despiste dos sul-africanos não nos obrigasse a rodeios que acrescentassem a esses mais dois ou três, em qualquer dos casos ele não resistiria, e sabia-o, não que alguém abordasse a questão, nem era necessário, ele sabia, já sabia, sempre soubera e sempre ignorara essa certeza, há coisas que nem ao diabo confessamos, esta era uma delas, chegara a hora, ele simplesmente se limitava a aceitar o destino o fim e a morte, nunca sentira medo na vida, só agora, via-o nos seus olhos mudos, na sua boca calada, nos dentes cerrados, no olhar resignado.

 Bande preparou-lhe o cantil, encheu-o de água, municiou-lhe a arma, ajeitou-lhe as costas contra o penedo e entregou-lhe mais três cunhetes de munições, todo o grupo se mantinha em silêncio, cada um olhando para dentro de si mesmo, Mhuanha olhando pra mim, implorando, a sua boca não se abria mas os olhos imploravam, percebi-o e fiz-me desentendido, ele sabe que sou cristão, católico, que a minha doutrina não mo permite ainda que eu seja um ateu herege. Socolo fez-me sinal com a cabeça, percebi pelo seu olhar que não se importaria de ficar, eram amigos desde crianças aqueles dois.

         Sem estrilho e em silêncio fomos partindo em dupla fila indiana, cabisbaixos, pesarosos, todos confiando que Socolo cuidaria dele até ao fim e todos ficámos atentos ao menor ruido, mas não houve ruido, não houve tiro, nem houve qualquer surpresa.

Vinte minutos depois Socolo juntava-se-nos. Ninguém disse nada, ninguém perguntou nada, alguém, não sei quem, nem perguntei, sussurrou entre dentes;

- Misericórdia

Eu ter-me-ia benzido, se tivesse fé.


                   * https://blog.rhinoafrica.com/pt/2018/01/30/guepardo-e-leopardo/