segunda-feira, 15 de agosto de 2011

81 - O JANTAR QUE NÃO O FOI................................




Poucos comensais se debruçavam ainda sobre o repasto àquela hora tardia. Questão pendente ali nos arrastara, mais que a gastronomia anunciada, e, para ser franco, mais os motivos do que a hora, me tiraram toda e qualquer vontade para o peixe que pedira. A coisa andava-me atravessada na garganta há uns dois meses, encravada sim, mas não era espinha que um qualquer bocado de pão mal mastigado levasse garganta abaixo. Já me irritava tanto quanto me tirava o sono. Se bem que sempre durma bem e de consciência tranquila, tal facto mais se devia ao hábito de não deixar arrastar problemas que ao de ignorá-los.

Bem tentaste sorrir, cativar-me, mas, decididamente eu não estava para aí virado, e compreendida a minha postura passaste ao mordomo o sorriso com que o levaste a ler-te todo o menu até te decidires pelo que sempre escolhes, as migas alentejanas que, desta vez te foram motivo e tempo ganho para pensares qual a estratégia a utilizar comigo. Até nisso fomos diferentes, um a procurar arrumar o assunto de vez, o outro protelando os problemas, na aparente ideia de que o tempo se encarregaria de os resolver.

Não resolvera, não iria resolver, não iria esbater sequer as diferenças de fundo surgidas, nenhum de nós se atrevendo a confessar como, nem quais, mas diferenças. E ali, e naquele momento, mais uma diferença quanto ao tempo e ao modo de as diferenças perceber ou explicar. Puxas-te, como sempre fazes quando me queres levar à certa, do teu sorriso número um. A boca, linda confesso, abre-se-te até ás orelhas, os dentes encandeiam de tão brancos, e os olhos tomam o mesmo brilho invulgar e a que eu nunca ficara alheio.

Nem fiquei e, como já esperavas, rendi-me e encostei à tua a minha testa. Cheiravas bem, como aliás sempre cheiraste e cheiras, um odor muito próprio, muito agradável, e no qual se dilui um perfume que tão bem conheço, há tanto tempo conheço, e adoro. Rendido esqueci até o prazenteiro cheiro do peixe grelhado ainda fumegando à minha frente, rendi-me mas não verguei. Bem me tentaste com piadas, nem o vinho que há mais de um ano adoptei e a Petra me recomendara, escapou ás tuas tentativas de colocares a minha mente tão longe dos meus propósitos quanto nós de Castelo Branco ou Portalegre. Passaste os cabelos pela minha mão num menear propositado da cabeça que te é muito próprio, mas desta vez não convenceste.

Sempre adorei em ti a firmeza de carácter e de propósitos, o livre arbítrio de que nunca abriste mão, a independência ferozmente defendida e a arrogante sinceridade de que sempre deras mostras. Não agora, não desta vez, não no momento em que não aceito as tuas razões nem as tuas desculpas, quanto mais esse modo arguto pressentido em ti, mais que evasivo, por vezes até uma defensiva deturpadora ou errada da habitual vivência entre nós. Concordo que por vezes me excedo em conselhos que nem pedes nem precisas, o carinho e o amor que te dedico tornou-me paternalista decerto, mas não vejo que mal possa daí vir ao mundo. Mas vem, não ao mundo mas a mim, o mal da tua ultimamente tornada habitual indisponibilidade. Bem sei não ser o homem mais lindo do mundo, nem provavelmente o furacão que desejarias na cama, sou lento, demorado, meigo, terno, talvez porque seja esse o meu modo de me dar-te, e nem sequer partilhe a ideia de que é a força e a violência impetuosa do querer que tornam melhores os momentos que queremos doces e longamente fruídos.

A tua expressão varia com a conversa, de sorridente a surpreendida, de meiga a carrancuda, a uma velocidade em que mais parece antecipares o meu discurso que seres surpreendida por ele. Não me admira, talvez tu te admires por estarem sendo abordados assuntos dos quais fugias como gato da água. Nisso sim eu acredito. Amar-te-ei sempre, sabe-lo bem, mau grado os momentos menos felizes da nossa vivência comum, não a trocaria por nada deste mundo, e se é a liberdade que procuras, ou a libertação, por que, como sempre fizeste, mão me confias os teus desejos ?

Sei quanto me falta para ser esperto, quantas vezes te repeti que se fosse esperto seria rico? Talvez riquíssimo? Conheço as minhas falhas e as minhas limitações, mas perdoa-me, convencido não sou, muito menos narcisista, sou Humberto não sou Narciso. Demos tempo ao tempo. Sei que de algum modo limito e condiciono ou condicionei a tua vida, mas que fazer quando os Deuses riem e dispõem delas a seu bel-prazer ? Culpado? Aceito, mas não era um culpado que eu procurava, mas sim uma solução, sim a compreensão do que entre nós corre menos bem, e te faz sentir presa, intimidada, limitada ou condicionada por esta relação.

Não, não vou agora brindar a nós nem ao nosso futuro, tanto mais que o peixe perdeu a graça, está mais frio que as tuas migas.

Aguardemos.

Voltaremos a este assunto.

Olha paga tu que não trouxe a carteira, o assunto deu-me cabo da cabeça.

Beijo.

        Imagem roubada à exposição de Sandra Bravo e José Fonseca no INATEL  - Évora