quinta-feira, 25 de abril de 2013

A MAIS VELHA ......................................


Vivo a correr, todas vós saberão porquê, vivo a prazo, segundo dizem com um machado pendente sobre mim, embora eu seja a primeira a não crer em tal.

Dei por mim, há algum tempo, atendendo com extrema solicitude a minha última doente externa, tão só porque apesar da sua avançada idade me confidenciava que nunca, nunca na vida estivera doente. Sabido é que em casos destes a doença se reveste de atenuantes ou agravantes que a psicologia saberá explicar muito bem, por experiência todas entenderão que para quem nunca padeceu do que quer que fosse, qualquer mazela assustará sobremaneira, especialmente se tidos em consideração os quase setenta anos e muita rijeza perante os quais me encontrava.

Entre mim e essa velhinha, após a solicitude exagerada com que a abordei depois dos primeiros tratamentos, criou-se uma intimidade inusual. Talvez por lhe ter dito que aquilo não era o fim do mundo, talvez pela sua imagem de velhinha, rija e sabida, sempre com a resposta na ponta da língua, talvez um pouco de tudo isso, a verdade é que nos aproximámos uma da outra. A páginas tantas, confessei-lhe que, mau grado a minha perspicácia em adivinhar a profissão da cada doente pelas sequelas e deformações profissionais a que uma longa vida de trabalho sempre conduz, com ela não o conseguira fazer, e que isso era importante e ajudaria na recuperação.

- Puta minha filha, fui puta.

E tão pronta me atirou a resposta que me deixou encavacada, sem fala, e momentaneamente incapaz de reagir.

– Então não se vê logo pelo que este corpinho passou ? Fui o céu para muitos minha querida, uma dor de cabeça para outros, mas jamais o inferno para quem quer que fosse.

E vendo-me incapaz de a abordar com o à vontade com que o vinha fazendo, falou sozinha, e quase acerto se afirmar que não o fez para mim, mas para muita gente que ao longo da sua vida a não quis escutar.

- Já passei por tudo, já me aconteceu de tudo, desde os tempos em que me obrigavam a ter casa aberta, até àqueles em que numa casa fechada tudo se fazia ás claras…

– Os homens minha filha, acredite-me, são do mais hipócrita e ingrato que aturei na vida.

– É casada minha querida ?

– Sim, respondi, e com um bom homem, vai para muitos anos, respondi.

– Não seja ingénua minha menina, não se importa que lhe chame menina pois não ?

– Claro que não, pois se tem idade para ser minha avó !

– Pois a menina não seja ingénua, não há homens bons, todos se julgam na razão, que sabem tudo, mandam em tudo, são todos iguais, e o seu, que Deus me perdoe, ou é artola ou também já as fez ! Ou está para fazer !

– Não creio, respondi, a senhora deve ter passado muito, e estar deveras magoada com o mundo, o meu marido não é do género.

– Magoada eu ? Não tenho razão de queixa, é certo que os mesmos homens que muito me deram muito me tiraram, os que me deixaram abrir portas foram os mesmos que as fecharam, é a roda da vida… Mas magoada não estou, nunca esperei nada de ninguém a não ser de mim, nunca contei com ninguém a não ser comigo.

 Verdade é que não tenho qualquer reforma, pudera, mas juntei algum pecúlio e não fora esta trabalheira em que estou metida já estaria no sul de França gozando os meus últimos dias. Gosto muito do sul de França, Nice, Marselha, conhece a menina o mercado das flores, Nice ? Que coisa mais linda !  O Mónaco ali tão perto ! O clima, que adoro, os cavalheiros tão correctos ! As madames lindíssimas ! Mas então, esta maleita e o apego ao rendimento mínimo que me deram têm-me pregado aqui...

– A senhora está a brincar comigo ! Com a sua idade e ainda alimenta sonhos desses, tão morosos de cumprir ?

– Nem morrerei sem os realizar minha filha ! Desde os meus vinte anos que passo férias com um cavalheiro francês, sempre o mesmo, tenho até lá uma casinha ! Morrer ? Quem quer pensar nisso ? Mostre-me a menina a sua mão, deixe-me ver as linhas do destino, nelas está tudo.

Fiquei então sabendo que vou viver muitos anos, que a vida me reserva surpresas bem agradáveis, que há um homem que gosta muito de mim e que tenho um coração muito grande onde há lugar de sobra para ele. Que mais poderia eu desejar ?


As nossas mãos e as nossas vidas são um mar de surpresas não acham ?  ...


In Diário do Sul, Kota De Mulher, – Évora,  por Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião, publicado em Novembro / Dezembro de 2005



141 - OKAY, TUDO BEM, NADA A DIZER... Okay Alright , the night will be aurea, nothing left to say ...


                    Varias vezes o pai ameaçara inscrevê-la na fábrica. Pediria ao sobrinho que desse um jeitinho afim da catraia entrar a trabukar caso continuasse sem rendimento em contraponto ao esforço da família para a manter a estudar.

Lola sempre fizera ouvidos de mercador e mantivera afastado o grilo falante. O part-time na associação académica dava-lhe para o tabaco e os cafés, permitia-lhe salvo-conduto a todas as festas da faculdade e, um emprego, a vida adulta, a maternidade tinham tempo de chegar. Que esperassem.

Desde que nos poucos fds em que ia a casa não chegasse a cheirar a tabaco e a bagaço tudo correria pelo melhor. Quanto à voz grossa já se havia habituado a dar a desculpa da mudança de idade. No entanto ela sabia que aquela dor na garganta cedo ou tarde exigiria um médico. Até lá, keep calm, putas e vinho tinto como diz a malta.

Do curso de artes que frequentava na vetusta universidade de Évora na carismática cidade museu, Lola teimava sobretudo na vida boémia que as biografias dos famosos em geral acusam.

O verão e as férias no Allgarve prolongavam-se na cidade quente até ao verão seguinte. As aulas não lhe davam cuidados de maior, desde que fosse arrastando o cu pelas cadeiras e aparecendo aos profs de quando em vez a coisa iria. Um piscar de olhos e uma palavrinha atirada mansamente a algum mais renitente mete-lo-ia no carreiro, e se alguma noite o encontrasse num dos muitos bares onde tinha raízes na cidade, aproveitaria para um shot e dois dedos de conversa de treta que o prantassem de joelhos ante a sua beleza nórdica e a sua nada módica irreverência.

Pielas e bagaços dissipados nas vielas do burgo em cantorias de irmandade, umas canções trauteadas nos palcos de um ou outro bar para compor a mesada foram o tirocínio que o processo de Bolonha não exige mas Lola assimilou no respaldo dos anos de faculdade, cuja exigência porém não teve artes para aguentar até ao fim. A vocação falava mais alto e desde criança as artes a desafiavam, as artes e o pai, que ainda menina a acompanhava à viola.

             Não que a faculdade se lhe impusesse, ou ao mundo, pela sapiência dos seus pares, o que maior peso lhe conferia nos concerto das faculdades do país seria a traça e antiguidade da arquitectónica dos seus seculares edifícios, numa cidade património mundial e reconhecidamente detentora de um espólio e tradição que só Coimbra superaria. 

        A desgraça toca contudo e por vezes até à porta da criatura mais afortunada, a Lola acontecera-lhe ter retirado a título de empréstimo mas sem licença um saxofone caríssimo que a faculdade nunca lhe cederia mas que ela sub-repticiamente surripiava amiúde e sempre que com os seus gandulos conseguia um contrato para cantar, e tocar, num qualquer dos muitos e manhosos bares nocturnos da cidade.

Évora terá, por alto e em época de aulas e graças esta população flutuante, essencialmente estudantes, um pouco mais que cinquenta mil habitantes. Porém, mau grado a frenética vida nocturna, que a eles é dedicada e por eles economicamente animada e suportada, é uma cidade apagada, cara, sem vida para além destes focos juvenis, uma cidade sem industrias que não pontuais, com um comércio debilitado, moribundo, e que sobrevive sobretudo dos serviços.

A faculdade é o sustentáculo maior de uma economia paralela, subterrânea ou informal bem estruturada medindo meças a qualquer outro sector ou mister na cidade. Quartos, quartinhos, corredores, vãos de escada, garagens e logradouros, tudo serve para alugar a estudantes, sem recibo claro, que o Gaspar é um sovina.

Arrendamentos clandestinos e uma rede de bares, casas de pasto, tascas e tasquinhas imbricadas, entretecidas nas vielas estreitas, medievas, e a sua exploração a qualquer preço são o único contributo visível da faculdade para o enriquecimento da urbe, tudo o mais não passará jamais de boas intenções e loas académicas.

Neste caldo de cultura onde a “carrinha do Gregório” (serviço eborense suportado pela CEE, a pedido recolhe os estudantes ébrios que leva ao hospital ou a casa evitando que conduzam alcoolizados) parece ser a única actividade que nunca tem mãos a medir, neste caldo de cultura dizia eu, se desenvolveu a arte de Lola. 

            Acossada pela necessidade de repor o saxofone extraviado, vendeu por tuta-e-meia uma cassete com gravação sua, bêbeda, num bar da cidade, e a um adepto e fã fervoroso, desconfia-se que tb apaixonado. Como que por artes mágicas a cassete percorreu caminho que nem garrafa bem rolhada largada em alto mar. Acabou numa editora, foi ouvida, mereceu prémios.

Hoje não é já a faculdade a suportar estruturalmente Lola, é esta que renome dá à primeira. Não tardará que académicos à míngua de motivos que lhes justifiquem a existência e os salários que lhes pagamos, e na falta de melhor, a apontem como exemplo vivo do que de excelente a universidade produz. Esta mania da excelência  e o nosso proverbial porreiro pá irão acabar connosco mais cedo que tarde…

Dentro de poucos dias sábios dedicar-lhe-ão uma cátedra na escola das artes, em seu nome proferirão works e workshops, palestras, congressos, laudas.


Ou não fosse Évora uma cidade de Portugal….


Sou teu fã loirinha !! Não pares !!! J
                
 
https://www.youtube.com/watch?v=vLo4tFiTHkk


CRÉDITO CÃO * por Maria Luísa Baião ......................

         

             Ele abraçou-a como se fosse a única mulher do mundo, como se toda a sua vida se condensasse naquele momento de luminosa virtude e inocência, como se o seu destino dependesse da solidez daquele abraço, abraço que arrastava um implícito devir a que a sua consciência se entregava.

Ela, como a todas nós já sucedeu, deixou-se levar embalada por momentos de ilusão pura que juramos ser verdadeiros, sentiu-se a eleita, a escolhida, única. Retribuiu o abraço, deixou que a cabeça pendesse para trás, ofereceu-lhe o pescoço, de alva brancura, os lábios vermelhos rogando ternura, caminho que ele percorreu, para terminaram num longo beijo, dos tais que enquanto duram, temos tempo para pensar tudo e algo mais.

Abraçados caminharam, pisando a relva e arrastando os livros, num transe mágico a que a realidade a qualquer momento poria fim. Passaram-me ao lado, não deram por mim, fiquei ali sentada, pensando quanto toda aquela mágica ilusão é sempre pouca, por muito que, loucas, acreditemos ser total.

Sem que o quisesse o pensamento foi-me derivando para a sequência desse amor olhado, na exacta proporção em que, fundidos em suave sonho se me esfumavam da visão. E imagino que um do outro tirarão as forças que precisam, para neste vale de lágrimas vogarem, imagino que cada um deles ao outro dará forças para que os destinos se cumpram, os sonhos se concretizem, os pais os abençoem, as vidas se fundam e se cumpram os desígnios que os Deuses, num momento de lucidez ou brincadeira, (nunca sabemos a disposição dos Deuses, é imprevisível) quiserem dar aos seus destinos.

E fico a pensar como lhes chegará hoje por milagre, amor e uma cabana e como amanhã irão sacrificar-se para que a cabana tenha dois quartos no mínimo, garagem se possível, um quintal para umas flores que morrerão à míngua de tempo, água e cuidados pois as suas atenções serão monopolizadas pelos vencimentos das prestações, as febres dos meninos e a incerteza dos empregos temporários.

É uma pena, um desperdício, que a juventude não seja eterna, que homens maduros deitem ao mar os sonhos tão docemente abraçados em momentos do mais puro ilusionismo. É uma pena que homens maduros ceifem cerce as aspirações dessas crianças, por vezes prematuramente mães, pais, só porque ninguém lhes ensinou o B á bá do sexo, essa coisa e tal que faz de nós seres bons, maravilhosos, de encantar. É triste ver como nos empenhamos a fundo em criar dificuldades ao que devia ser fácil, preconceitos, intolerâncias, inveja, ignorância, tudo vale, tudo serve para que obriguemos esses jovens a cair no mundo real que nós criámos, um mundo em que para sonhos e ilusões não há lugar, um mundo em que o viver e o escravizar é similar.

Quem me dera, como eles ir vogando, no mar de sonhos de quem vive amando, mas não, há muito me acordaram, me chamaram crescida, e me usaram. Corre, corre, mulher se o queres ser, ver as crianças crescer, a casa ter, sorri, sorri sempre, sofre, sofre, porque ser crescido é sofrer.

Caminham juntos, a par e passo por enquanto, tecendo devaneios, repartindo anseios. Sonham, quebram amarras, repartem projectos e farras, não sabem, não podem saber ainda que o tempo se escoa, casa, família, nada enevoa o caminhar, nada o parece toldar. Acordarão um dia bruscamente, descobrirão que nesta terra não há gente, mas interesses, benesses, intendentes. Não verão tão próximo a casa prometida, a vida consentida, tudo porque num ai se foi a esperança prometida.

O balcão já fechou, o crédito jovem habitação encerrou, que mundo cão este em que eu estou...

* Escrito em Évora a 14 de Junho de 2002 por Maria Luísa Baião e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna “Kota de Mulher”. 
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