sábado, 25 de maio de 2013

146 - REQUIEM ................................

     
Parece que a coisa não foi bem como a pintaram. Para evitar o escândalo e que a viúva passasse pela vergonha abafaram a verdade. Naturalmente que em Viseu toda a gente terá sabido, mas os ecos que chegaram até mim só traziam a parte boa, se é que fechar o cu tem alguma coisa de bom, as partes gagas somente agora, mais precisamente na noite de quinta feira as vim a saber.   (Ver texto 142, Ó Abreu …)

Não gosto de ir a funerais, nem sequer a velórios, mas atendendo a que era na capela de S. Torcato, a única que tem sempre lugares de estacionamento sem problemas, lá fui. A Lídia finara-se. Estava a malta toda. O marido, as amigas da Lídia e as amigas do marido, o Teles. Má peça o Teles, choroso, depressa esqueceu as lágrimas que em vida fez verter à Lídia.

Mas estou a desviar-me do que interessa.

Entre um copo e outro, a agência Boavida, Funerais e Trasladações Ldª  montara a um canto da capela uma boa mesa, os presentes iam rodando, enchendo a boca e tragando uns goles enquanto a meia voz enalteciam as virtudes da Lídia, que fizera felizes no mínimo metade dos ali presentes, e as patifarias do marido, agora viúvo, que fazia felizes uma boa parte das amigas da Lídia.

Lá pelas três da manhã os burburinhos acalmaram-se, ficou mais fácil chegar à mesa, à volta da qual a malta se juntou, copos plásticos na mão, tchim tchim, brindes para aqui e para ali, às tantas já se brindava a tudo, até à Lídia, que havia de gostar e teria decerto emitido um dos seus sorrisos acompanhado de um gemido e um arfar de peito, coisa que ninguém fazia como ela. Era boa tipa. Deus lhe tenha a alma em descanso.

Nascera em Viseu, ela e o marido, e foi por isso que fiquei sabendo como se tinha finado o Abreu. Afinal não morrera como um passarinho, bem pelo contrário, como um passarão. Parece que no regresso a casa e entre esta e o quartel o sargento Abreu costumava parar coisa de uma hora, mais minuto menos minuto, numa daquelas torres de dez andares das “Construções Lamego“, em visita apressada a uma primeiro-cabo lá do regimento e que era algarvia.

Naquela tarde o elevador terá parado entre o oitavo e o nono andares deixando apenas uma abertura de dois palmos por onde se pensa que o Abreu terá metido a cabeça pedindo socorro, farto que estaria do encarceramento no fatídico elevador. Cansado de gritar, provavelmente enfiou a cabeça naquela nesga, possivelmente com o fito de se guindar dali para fora.

Parece que a nosso cabo não deu pela coisa senão quando lhe levaram a cabeça do Abreu indagando se se trataria do marido. Nesse momento a algarvia deu um grito lancinante e caiu para o lado, desmaiada, no chão, enquanto um estrondo ensurdecedor dava conta que o traiçoeiro elevador caíra pelo fosso do prédio arrastando o que restava do Abreu.

Há horas felizes, mas também muito más horas, terá pensado o Abreu, se é que teve tempo para pensar alguma coisa antes de ser decepado pelo movimento de arranque do elevador. Foi uma morte que caiu muito mal ao Teles, que também era amizade do Abreu e de igual forma tivera um arranjinho naquele prédio, confidenciou-me o Ramires quando o Teles saíra a sugar um cigarrito. Lá terá o Teles pensado para com os seus botões que terminara com a Hermínia na hora certa. O elevador, veio a saber-se muito depois, ia no quinto ano sem qualquer manutenção, pelo que primeiro se desfiara e posteriormente se partira um dos cabos de aço que o sustinham.

Da nossa primeiro-cabo nunca mais ninguém soube dar noticias. Dizem as más-línguas que passou à disponibilidade, ou à reserva. De quem ninguém me disse. Bebi mais um trago, enchi a boca de torresmos e fui ruminar meditações sobre as imprevisibilidades desta vida para a cabeceira da Lídia. 

            Afivelara um fácies sereno, a sua placidez acalmou-me e, ou por isso ou devido ao tinto da Bairrada, adormeci.