terça-feira, 2 de outubro de 2018

533 - EM ABSTRACTO NEM HAVERÁ QUADRO…


              

Comecemos pelo princípio, o dia e o facto de alguém ter afirmado não perceber patavina do quadro acima e da autoria do Pintor Eborense Marcelino Bravo. Confesso que fui apanhado desprevenido pela afirmação, tanto mais que eu mesmo ficara atrapalhado pois já em tempos confessara ao próprio autor não entender esta sua nova tendência. Mas homem que é homem nunca deixa uma senhora de mãos a abanar, sobretudo sendo tão linda como a que me cutucou, e logo ali lhe garanti não ficar sem resposta, desse-me uns dias e lhe diria de minha lavra não somente o que este quadro me diria mas arriscaria mesmo dizer-lhe o que p’la cabeça do autor poderia ter passado quando o pintou.

Precisamente no pp 15 de Dezembro de 2016 visitara eu na Biblioteca Pública de Évora uma exposição do pintor Marcelino Bravo, artista e pessoa que em casa apreciamos e admiramos, sobretudo a sua particular visão do Alentejo e temáticas afins, cousa que este eborense magistralmente reproduz com traços e cores peculiares e inconfundíveis. Porém nesse dia deparei-me com um Marcelino Bravo fora dos carris, quero dizer descarrilando dos temas a que eu estava habituado e esperava ir encontrar, eu explico melhor, digamos que metade da instalação era ocupada por temas normais, habituais nele, Alentejo & Cª, mas a metade restante apresentava telas inovadoras, diferentes, sem título nem tema, aleatórias, de uma corrente anormal ou inusual nele, uma dessas telas a que acima vos apresento, coisa que me confundiu, e disso dei conta ao autor logo que a oportunidade surgiu, os novos quadros apresentados eram uma coisa da psico, um abstraccionismo tido em moda há umas boas décadas e geralmente fruto de estados mentais alterados, mentes provocadas, excitadas por uma linha de branquinha ou uma pastilha de LSD, coisa que não me parecia ser o caso do nosso amigo Marcelino Bravo.

Depois fui à vida, cuidar de, antes de voltar a pronunciar-me sobre o tema, averiguar primeiro a fundo essa coisa dos abstraccionismos e que para ser franco eu tinha muito enterrado ou esquecido na memória. Não esqueçamos que a corrente abstracta caracteriza-se pelos aspectos aparentemente inusitados e duma criatividade que poderíamos considerar sem regras ou limites, aspectos que poderão ter estado presentes na mente do pintor quando da realização da obra, os quais de igual modo podem causar idênticas interferências na nossa percepção dela quando a olhamos.

Como se esta complexidade aleatória e sem limites não bastasse, existe ainda uma corrente de críticos entretidos em demonstrar que se usadas, ou havendo recurso a drogas psicotrópicas, propositado ou casuístico, expandir tal os limites da mente, limites cujas expressões pictóricas, pois é de pintura que falamos, nos são dadas por essas experiências (alguns chamam-lhes alucinações), causadoras tanto de mudanças de expressão quanto de percepção e fruto de sinestesia (sentir várias sensações em simultâneo) experiências cujos estados nos darão a complicada pintura abstracta. É o que eles dizem, eu nunca fui chutado a uma exposição, pelo que a vendo como ma venderam a mim. Marrei uma vez na ombreira duma pastelaria mas essa é outra história, um dia vos contarei.

“Decididamente” alvitrou um amigo com quem discutia esta questão quando lhe expus o pormenor da seta laranjinha curvando abnegadamente à esquerda e como que terminando o movimento no próprio umbigo, o nosso amigo Marcelino já andaria preocupado com o centrão e com esse tal partido o qual só pensará em si mesmo e nos seus interesses, ao que o Zé me respondeu prontamente, como se a seta lhe tivesse sido atirada a ele;

- Repara pá ! Aquilo não e uma setinha laranja, antes um cogumelo alaranjado e não foi o nosso amigo Marcelino que andou fumando, porque quem como tu, qual olho de lince ibérico perscruta as profundezas da arte é que certamente foi buscar essa acutilância visual a uma qualquer linda chupaça gânzica !

portanto o fumador quântico ou gânzico terei sido eu, chupaça gânzica, esta nunca a tinha eu ouvido, era Dezembro, inverno, frio, chuva, vento, nuvens, escuridão, e eu certamente para me aquecer e esquecer o bucolismo inbernal amandei um charro abaixo debaixo dum qualquer chaparro antes de me apresentar na exposição.

Aceito ter sido eu a despoletar a polémica trazendo o quadro à baila, ter sido eu quem viu no dito cujo uma curvilínea barriga de perna acabando num sapatito verde de salto alto, verde, um gadget anti Prada portanto, um verde lindo, lindo verde meu verdinho, não há cor igual à tua, tinta verde dos teus olhos…

Tinta verde dos teus olhos
Escreve torto no meu peito
Amores tenho eu aos molhos
Se pró teu me faltar jeito…

No meu peito escreve torto
Na minha alma a dar a dar
Nunca mais eu chego ao Porto
Se lá for por este andar

Nunca mais eu chego ao Porto
Ao porto de Matosinhos
Adeus verde dos teus olhos
Estão cá outros mais escurinhos… (2)


Mas uma seta laranjinha guinando nada subtilmente à esquerda, uma perna bem feitinha e um sapatinho verde de cristal não foi tudo quanto eu vi ali, vi igualmente um fantasma da ópera carregando os pavores que o pintor provavelmente terá em relação ao futuro, à sua condição, ao valor da pensão, e naturalmente torci o nariz, foi o bastante para que a Olinda, olhando o céu límpido, fruindo a calma do fim da tarde, orelhas espetadas na música clássica do vizinho e afagando dois gatos preguiçosos enquanto alertava para as brincadeiras duas crianças algures na rua e simultaneamente toda ela puro ócio… Como se estivesses no meu terraço, preguiçando numa cadeira debaixo do guarda-sol, atirei-lhe eu.

- Achas? Eu vi tudo isso mas não me atrevo a interpretar um quadro. Sou demasiado realista não achas ? Eu vi isso aqui ao pé de mim mas não me atrevo a interpretar um quadro. Sou demasiado realista.

Do que eu deduzi afirmar ela ser a arte um artificio, lembrei então dum diálogo com Marcelino Bravo e em que ele me respondera;

- Amigo é a incontestável e incontornável beleza feminina, o homem deve conservar presente essa memória dela e expressar com grande tolerância os elementos constituintes dessa beleza, e dentre esses elementos esforçar-se por harmonizar cores e formas.

Claro que entendi conservar como lembrar e deixar memória, testemunho, e ser liberal, não só literalmente como com a palete e as cores, harmonizá-los entre si, tornar o real ainda mais belo, estás a captar Olinda ? Muito me disse em poucas palavras o mestre Marcelino eu sabia ou no mínimo intuía haver ali Maria...

A conversa/debate tomou às tantas uma dimensão que dificilmente acompanhei tal era a profusão e a confusão gerada pelos intervenientes, sei que alguém questionou se a arte seria de quem a produzia ou de quem a consumia, ao que de pronto respondi ser a arte de todos, ter a arte duas faces como as moedas, e duas caras como o juiz do fresco de Monsaraz, uma expressando a ideia de quem a produz, a outra espelhando a ideia de quem a observa, à arte, não à Maria, ou à Olinda, ou à Fatita.

Devo fazer notar que nesta parte da minha intervenção fui longa e entusiasticamente aplaudido, alguém não se contendo e de modo arrebatado, como que inspirado, gritou mesmo:

- Muito bem observado meu !!

Naturalmente tomei um ar grave, sério e professoral, tendo aproveitado para fazer um brilharete e acabar por dar o resto da lição;

- Quem pinta, quem compõe, esculpe ou escreve, expressa uma ideia que pode não ser coincidente com a ideia de quem mais tarde observa essa pintura, partitura, escultura ou romance... Temos o caso grave e extremo de Richard Wagner e da sua "Cavalgada das Valquírias" cuja música lhe valeu ser acusado de enaltecer o nazismo... Não há provas a não ser circunstanciais, mas a simpatia dos povos Wagner perdeu-a para a sua arte soberba, pois afogadas em soberba lhe sobravam as manifestações anti-semitas que entre o fim da República de Weimar e a ascensão do Nazismo foi acumulando e lhe valeram o repúdio mundial que hoje não lhe perdoa a superior arte de compor aliando-a a investidas bélicas, em especial a partitura que aqui abordei umas linhas acima, a "Cavalgada das Valquírias" (2)

Mas em frente que atrás vem gente, pois o bom do Marcelino não anda somente com as pernas da Maria na ideia, noto ali à direita o esvoaçar duma borboleta, se é isso que lhe anda dando volta no estômago, a Maria ou as suas pernas, nunca saberei, a lembrança foi minha, mas que ele teve o cuidado de marcar essa cena com um X teve, e se é o X dos Xutos ou não ignoro, fico na mesma como a lesma, nunca o soube apreciador dos Xutos, em boa verdade nem desapreciador. Será que ele xuta ?

A amiga Fatita que é de Guimarães aventou a ideia de serem visíveis ali uma igreja, igreja ou catedral de cristal e os raios cósmicos da fé, nascidos das ondas do mar, mar de onde sairá numa curva parabólica um engraçado golfinho, saído do mesmo mar de onde se ergueu o Mostrengo, ou quem sabe se o Fantasma da Ópera, vindo das profundezas do Sena, enleado em teares que ela jurou ter ouvido tique taque tique taque tique taque num ensurdecedor martelar de máquina de costura, por sua vez olhada com surpresa por um veado... Juro que depois disto pedi ao Nuno que não trouxesse mais bebidas para a mesa ou a análise temática da composição poderia sair adulterada, ao que ele anuiu propondo um sumo de figos da índia, agora anda nessa, cada um com a sua pancada…

É que em boa verdade uma pintura, um simples quadro, tem uma miríade de perspectivas sob as quais pode e deve ser analisado, da composição ou distribuição dos elementos na tela, desde a relação figura principal - fundo envolvente, ao conteúdo ou natureza temática, às linhas, sejam curvas, rectas ou quebradas, aos pesos visuais ou ao peso dado a cada elemento e naturalmente também ao equilíbrio entre eles que por sua vez determinarão a tensão dinâmica da obra. Daí a importância dos centros e dos eixos nela, devendo tender p'rá simplicidade, não esquecendo evidentemente a textura, formas e cores seleccionadas.

Isto quem vê almas não vê corações e quem vê corações não lhes enxerga a alma, a verdade é que cada cabeça sua sentença, a do Marcelino uma, cada um de nós soma outra e num ápice aparecem meia dúzia delas dissertando sobre o quadro, que de tão abstracto tanto pode ser uma coisa quanto pode ser outra, ou outras e, em abstracto, poderá não passar de pura imaginação nossa e nem sequer existir quadro nenhum…

Ai o Malandro do Marcelino que terá ele andado a fumar ??? ! ! !