O
mote para aquela conversa macabra às duas da manhã foi a Vitorinha, amiga comum,
costureira em Limoges durante muitos anos e mais tarde dona feliz de um ateliê
próprio de corte e costura em Bordéus, depois de haute coture, e
posteriormente de moda, um mérito seu, dela, e que explorava paredes meias com
um “bistrot” também orientado por si mesma, com petiscos e comida
exclusivamente portuguesa, e cujo desempenho media meças à alta-costura ou aos
caros restaurantes gourmet. Dois negócios de sucesso que a tornaram conhecida
em Bordéus e todo o sudoeste de França, pela originalidade da sua costura,
motivos, traço, corte e cores, e claro pela inimitável gastronomia, coisas que
a deixaram podre de rica e para as quais tinha um sexto sentido e mãos de fada,
agora ali jazia e a ela dedicávamos as nossas memórias e uma última e sentida homenagem.
Para
ser franco mãos de fada foi a primeira coisa que, muitos anos antes a tornara
conhecida entre nós que depressa a baptizáramos de “manitas de plata”, um ápodo
malicioso fruto da nossa irreverente juventude. O melhor será contar-vos a
história desde o princípio pois de outro modo correrei o risco de não me fazer
entender e vocês leitoras e leitores ficarem com uma ideia deturpada da figura
magnânima que foi a minha amiga Vitorinha. Tão rica ficou que comprou uma
residencial no Algarve, que explorava com mestria e para onde durante mais de vinte
anos me convidou a passar férias, completamente gratuitas, as quais somente
recusei quando as filhas, já crescidas e talvez estranhando a devoção da mãe, me
passaram a chamar Lázaro e a citar por tudo e por nada passagens do Evangelho
segundo S. Lucas*… (16:19-31) tempo e vezes suficientes para que eu tivesse
entendido a alusão ao leproso e, desaparecido de vez da vista delas…
Mas a
vera história começa assim, era uma vez eu há muitos muitos anos, basta
lembrarmo-nos que passei há pouco dos cinquentas e tais, a mesma ocasião em que
a Vitorinha comemorara os sessenta e tantos. Eram tempos em que não havia “ERASMUS”,
o que todavia não obstou a que houvesse intercâmbio de jovens, nessa altura era
a igreja católica através da JOC, Juventude Operária Católica, organização inserida
na rede de redistribuição da riqueza pelos cristãos, quem patrocinava a troca, a
permuta, o estabelecimento de relações recíprocas de ordem cultural, comercial
e social entre nações ou instituições.
Foi assim que muitos de nós conhecemos
Paris, Bruxelas, Roma, Liége, e, nesse ano memorável os Pirenéus e o Santuário
de Lourdes, férias cujo final decorreu no lacustre vilarejo de Lanuza, província
de Huesca, já nos Pirenéus Espanhóis, vivenciando o Festival Pirenéus Sur** que
hoje sim é famosíssimo, ainda que tenha perdido o glamour desses dias em que a
acção católica, o voluntariado, a nossa juventude e irreverência tenham
enriquecido de modo especial e inesquecível a experiência e a vivência dessa
vertente missionária da formação, a qual posteriormente viria inclusive a
condicionar alguns aspectos da minha vida, das minhas relações e amizades,
quiçá do meu futuro, embora à época eu estivesse longe de prever a amplitude ou
dimensão de que a coisa se revestiria.
Eram
tempos de camaradagem, solidariedade, entrega e dádiva e cuja prática e
formação buscavam inculcar em nós hábitos de protagonismo católico na
perspectiva de nos alimentarem a fé e conduzir à aceitação da submissão a todos
os dogmas cristãos e aos caminhos da devoção, no fundo a matéria de que se
revestia a ortodoxia a cuja lavagem ao cérebro era suposto submetermo-nos.
Era
tudo muito bonito mas na prática a teoria era outra, como toda a gente sabe e
muito bem nos fazia entender a subversiva Vitorinha que, com mais meia dúzia de
anos que a maioria de nós, facilmente impusera o seu estilo peculiar de
liderança, até por recorrer a argumentos discutíveis mas que nenhum de nós ousou
contestar, nenhum não será bem verdade, existia o Cláudio, a quem desde pequeno
reconhecíamos os traços de mariconço que mais tarde o levariam às manifestações
do dia do orgulho gay e que nunca se deu bem com ela apesar da Vitorinha ser
bastante tolerante, aqueles dois sempre foram aliás como o cão e o gato, coisas
que já lá vão e o melhor é esquecermo-nos delas, porém eu não digo o mesmo
porque a Vitorinha punha e dispunha de nós a seu bel prazer e apesar disso
conseguiu agradar a todos, e se não a todos pelo menos à maioria, menos ao
paneleirão do Cláudio, hoje com mais direitos legais mas com menos amigos
verdadeiros pois a verdade verdadinha é que não somos todos iguais e entre as
mãos dele e as manitas de plata da Vitorinha imagino uma distancia colossal,
que nunca vi nem quero ver mas creio firmemente seria abissal.
Católica
praticante, desde muito cedo Vitorinha nos fez saber, a todos à vez e a cada um em particular, que nem sonhássemos com
certos excessos, queria casar de vestido branco, com véu e tudo, e sobretudo
virgem, e casou mesmo virgem ! Ao mesmo tempo que nos fazia revirar os olhos
afirmava com doçura ter umas mãozinhas e uns dedinhos de fada, uns
dedinhos de bradar aos céus, e não é que tinha !
Muita
da experiência sexual que adquiri entre os meus quinze e os dezasseis ou dezassete anos
agradeço-a à igreja e a esse “ERASMUS” cheio de misticismo que ela patrocinava.
A própria imagem da mulher foi para mim ganhando uma expressão sagrada na
exacta medida em que me tornava homem e, se até aí vira as mulheres como
iguais, todas iguais, a partir de Vitorinha passei a conhecê-las, observá-las,
admirá-las e apreciá-las pelo que cada uma tem de particular, de específico, e
nalguns casos de sobrenatural.
Assim
fiquei devendo imenso à Didinha, a quem dava gosto ouvir falar pois tinha uma
boquinha de sonho, a quem nunca mais vi mas acredito tenha vindo a ser
professora como ela tanto desejava e acredito-a boa oradora em seminários,
workshops etc., onde, com a ternura que lhe conheci, divulgará junto dos
desafortunados da sorte e dos pobres de espirito a palavra de Deus, tal qual
nessa altura fazia ao prender-me às suas prédicas e práticas sem a mínima
objecção, antes agradado e agradecido por ser o escolhido a sentir-me no céu,
quando não a ver estrelas.
Ou então, como esquecer uma enorme divida de gratidão para com a Cilinha ? A minha grande devoção pela Cilinha foi outro exemplo de fé, de
perseverança, de entrega, magrinha, delgadinha, violinha, um corpo santo, perdão, um corpo são e uma mente sã,
de entre todas aquela que indiscutivelmente e em qualquer aspecto se
assemelhava, (benditos filhos e marido que tal mãe e mulher têm) e assemelha, no
perfil, no cândido rosto e pureza da alma, a uma santa e de cujo leito um homem
se erguia como que saindo da ressurreição e pronto a combater todos os pecados
do mundo.
Beleza
era o silício com que essa santa me subjugava, numa dominação que não só lhe
consentia mas que eu procurava, porque o céu era ela e a redenção estava ali,
bastava para tanto comer o fruto da árvore proibida, da árvore da vida e da
alegria, e juro-vos, nunca uma maçã me soubera tão bem, ou outro pomo eu vira
ou veria na vida mais bonito que o seu, quero dizer que o dela, o qual me
tentava tal qual a serpente tentou Adão no Paraíso e, como ele, eu cedi, cedi à
tentação e não morri, fui bafejado pela sorte, fui abençoado, fui iluminado, e
então, precisamente quando o PREC tentava fazer com a Acção Cristã o que a
República fizera com o clero meio século atrás, eu comemorei o meu vigésimo
aniversário, cresci, ela a santa igualmente, e todos nós nos obrigámos a um
recolhimento pragmático como os cristãos se haviam recolhido às catacumbas dois
mil anos passados.
Mas
juro-vos, juro não estar esquecido da fé que nos animava e que a minha devoção
continua, intacta, disponível e mais forte que nunca pois se a palavra de Deus
tem o dom de nos tocar, a sua divina vontade faz-nos ver estrelas, ver a luz,
é
isso, FIAT LUX !!!!
* Lugar de Lanuza (Pirenéus, Huesca, Espanha)