sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

VOAR PARA SUL, DE LUANDA A XANGONGO ...

Noratlas da FAP numa operação logistica. 


Apesar de saturados devido a tantas horas de voo encerrados dentro do Noratlas da FAP* o moral era elevado, constituíamos um grupo coeso de instrutores, formadores e conselheiros militares em diversas áreas e acreditávamos piamente estar contribuindo para o nascer e fortalecer duma nova e grande nação, com a qual repartiríamos a história. Com origem em Luanda o voo não seguiu a rota normal, aquele voo pretendia-se inexistente, estaria no segredo dos deuses e toda a gente o desmentirá ainda hoje. Os problemas começaram ao levantar voo com dificuldade em Luanda, a aeronave carregava além de nós, bidons de combustível, mantimentos, medicamentos, munições, armamento diverso, explosivos, etc, por isso após cada escala e descarga o espaço a percorrer para a lenta aeronave se erguer nos ares encurtava, sobrando espaço para distendermos as pernas.

Evitámos o rumo e a rede de aeródromos já construídos por razões lógicas e rumámos a Bimbe no Huambo, saltámos dali para Benguela, seguidamente para Lubango, no Huíla, e muitíssimas horas depois aterrámos finalmente numa pista improvisada em Xangongo uma vilazita junto ao Cunene e que vinha sendo flagelada a partir do sul. Ao invés do rumo normal, mais rápido e mais directo Luanda, Ngunza, Benguela e finalmente Lubango junto a Lobito, zonas já servidas de aeródromos, ainda que com piso de terra mas permanentemente observadas por pisteiros, batedores, espiões e traidores de toda a índole, ziguezaguámos pelos céus afim de despistar olhares excessivamente curiosos. Valeu a todos o Noratlas ser o jeep dos ares e aterrar em qualquer lugar sem dificuldade, nesse aspecto aquele avião era pior que uma cabra. *

Éramos jovens, idealistas, e enquanto o dinheiro nos deslumbrasse e fosse caindo o trabalhinho não ficaria por fazer, podiam confiar em nós, eramos gente de bem e doravante, p’la primeira vez e solenemente empenhados em defender os pobres, os fracos e oprimidos das garras afiadas do capitalismo mundial, com assinatura em contrato, especialmente agora que também na metrópole o capitalismo e o fascismo tinham sido eliminados, precisamente por nós, os militares.

De Indiana Jones a Rambo ** todos os espíritos nos animavam, havia em nós uma sede de acção e uma sede de justiça, todos se sentiam o Super-homem, contudo não demorou que esse estado de espírito iniciasse um processo de acumulação de dúvidas, dívidas nunca tivemos e nunca ninguém as teve para connosco embora por vezes a burocracia ditasse períodos de meses, ou até um ano em que o pré não caía nas contas, ou em que nenhuma possibilidade tínhamos de tal confirmar e, não fosse a preocupação diária em mantermo-nos vivos num vespeiro cada vez pior e tal teria bastado para nos tirar o dormir ou democraticamente termos declarado uma greve. 
Noratlas da FAP aguardando abastecimentos.

A democracia é para todos, e como por cá se dizia e diz, “ou há moralidade ou comem todos” ou então uma versão mais popularucha, “ou todos direitos ou todos marrecos” os angolanos lutavam pelos seus direitos, nós pelos nossos e cedo aprendemos haver direitos que só à força se adquiriam, todavia armas e munições era coisa que não nos faltava, embora nunca tivesse sido necessário resolver qualquer destas situações que se metiam insidiosamente entre nós a tiro.

A população do sul de Angola era em simultâneo a menos politizada, menos arrebanhada para as hostes partidárias das várias guerrilhas ou facções, movimentos que se congregariam em volta dos partidos, sendo também a menos culta, com pouca ou até nenhuma escolaridade, o que muito havia de dificultar o nosso trabalho dado nos calhar ser também a mais heterogénea que imaginar possamos, cada um dos formandos com seu dialecto, nem entre eles mesmos por vezes se entendendo. Portanto poderão imaginar, e aquilatar quão difícil se tornava transmitir-lhes ensinamentos teóricos, quer técnicos quer práticos.

O nosso vocabulário teria que ser mínimo e descer a um nível mais baixo que o deles se nos queríamos fazer entender. O português falado era uma espécie de resíduo assente nos cérebros ao longo de quinhentos anos de colonização, incipiente, arcaico, prenhe de deformações, pelo que seria inútil socorrermo-nos dele, como inútil era o uso de palavras caras como circunspecto, inferir, inerente, deduzir, e de vocábulos de idêntica índole, mais valeria falar-lhes chinês numa data em que nem os chineses sonhavam ainda sequer o papel que viriam a ter em Angola.

Esta limitação imposta pela linguagem, estendia-se em menor grau à formação prática, ao manejo e compreensão das armas e da complexa mecânica a elas associada não lhes colocando problemas, nem tão pouco a compreensão do arco balístico descrito pela granada do morteiro, arma em que poucos deles não seriam peritos, e de um modo inato que nos surpreenderia. Muitas vezes discutimos entre nós se essa facilidade de entendimento não derivaria do uso indígena do arco e flecha e da lança, armas em que de modo empírico digamos, os obrigava desde cedo a compreender e aprender a relação entre a distância ao alvo e o arco descrito pelo projéctil, flecha ou lança. Era inegável ter que haver ali uma relação de causa efeito, os pretinhos não nasciam com pré-disposição para o manejo do morteiro, ninguém nasce. 

Esquadrilha de Noratlas sobrevoando o Cunene perto da foz.

Aos poucos fomos ganhando a sua confiança, aos poucos fomos ganhando o conhecimento dos seus dialectos e eles o domínio do português, aos poucos as barreiras entre nós foram-se esbatendo, então, e só então arriscámos as aulas práticas e o que isso implicava, sair para o mato, ler pistas, perseguir inimigos, enfrentá-los investindo ou sustendo os seus avanços, usando e aplicando as teorias aprendidas e socorrendo-se do conhecimento adquirido nas aulas, flagelando-o e evitando que nos fustigasse, sendo neste momento que duas verdades indesmentíveis e incontornáveis nos assolaram a nós, instrutores, a nós parte neutra, a nós advogados do diabo.

Contrabalançando os problemas de linguagem e de comunicação apontados, e nada despiciendos se nos lembrarmos como a comunicação é vital debaixo de fogo, ou numa ofensiva silenciosa e concertada contra o inimigo, estou a lembrar-vos que as nossa vidas e as vidas dos demais dependiam disso, de nos entendermos e fazermos compreender, sem o que nada mais restaria que confusão, asneiradas, gritaria, caos e mortes. Mas, adiantava eu que contrabalançámos essa nada insignificante desvantagem com a habituação prática à linguagem gestual, linguagem esta que desenvolvemos até à exaustão em combate e quase nos permitia trocar impressões, dar e receber ordens e actuar sem um pio, sem abrir a boca, sendo esta mímica o corolário da camuflagem perfeita e que nos colocava próximos da invisibilidade, tornámo-nos quase invisiveis e infalíveis e, quando em grupo actuávamos na prática como um homem só mas potencialmente perigoso, destruidor e letal.

Outro aspecto que ajudou imenso a contrariar as dificuldades de linguagem e comunicação apontados foi sem dúvida nenhuma a disposição inata desses jovens indígenas para a luta, caçadores exímios, peritos na camuflagem e na furtividade, muito nós instrutores aprendemos com eles, em especial no tocante à leitura de pistas e tudo que fizesse parte da especialidade de batedor. Eram incríveis os seus dotes, o que os seus olhos viam, e mais incrível demonstrou ainda ser a explicação dada ou formada a partir de sinais ou pistas por eles observadas. Eram pisteiros incríveis, um cão não faria melhor e sabemos como os cães e o seu apuradíssimo faro são eficientes em qualquer busca, análise ou detecção. Eram absolutamente surpreendentes.  
Noratlas parqueado num aerodromo do sul de Angola. 

A par dessas qualidades guerreiras, eram motivados e aguerridos, sim, como se inda acreditassem que bala de branco não mata preto, ou bala de preto fossa não matasse preto bom. Eram voluntariosos, perspicazes, inovadores, empreendedores e eficazes em tudo quanto a guerrear respeitasse, incluindo as mulheres. Diga-se em seu abono muitas delas não ficarem devendo nada aos homens, tendo vindo uma dúzia e meia delas a ocupar lugares chave ou mesmo a comandar mais tarde destacamentos autónomos que atingiram um grau de operacionalidade e eficácia de fazer inveja a muita gente. Guerrilheiras houve que a história de Angola forçosamente terá que respeitar. 

        Verdade não possuírem, nem elas nem eles consciência ética ou moral idêntica à nossa, eram gente duma cultura diferente, sobretudo de umna cultura submetida a esta guerra havia demasiado tempo o que simplesmente atropelava os valores mais sensiveis devido à premência de sobrevivência. Enquanto a nossa cultura/civilização era balizada por preceitos civilizacionais de séculos, ou milénios, de que a Convenção de Genebra era o vértice, a sua ética ou moral estavam fortemente condicionadas pela sobrevivência, para a pátria mãe, mui viradas para a mãe terra, a mãe natureza, e do ponto de vista ambiental respeitavam-na como ninguém mais, porém eram pouco mais que insensíveis pois estariam mais perto do apelo da selva caso se vissem envolvidos em combate ou numa guerra, áreas em que eram sumamente eficazes, ou, caso se tratasse de enfrentar um inimigo, situação em que seriam implacáveis, irredutíveis e impiedosos, a tal ponto que, gradualmente, fomos obrigados a incutir-lhes respeito pela vida humana, fosse ela de amigo ou de inimigo, vida aliás nascida em África como reza a história, tendo-nos valido o facto de, a par de toda esta "selvajaria" em que nasciam e viviam, serem igual e excessivamente submissos aos poder, aos poderes, aos poderosos, ao branco e ao seu saber, ao branco e ao seu poder. (Continua).



** Rambo é o personagem do romance "First Blood", escrito por David Morrell em 1972 e posteriormente adaptado ao cinema. The Young Indiana Jones Chronicles, narram as aventuras desse personagem durante sua juventude ao lado de seu pai. A saga foi editada pela Marvel Comics que já a havia publicado numa série em quadrinhos, BD, muito antes de em 1983 ter vendido a sua adaptação ao cinema


Nota: Este texto foi extraído de uma tese de mestrado que o processo de Bolonha tornou inútil e portanto abandonada e transformada em memórias de guerra. Faz agora parte de um todo muito maior, procura retratar a realidade, não está sujeito às vicissitudes do politicamente correcto, narra factos, não faz juízos de valor nem alimenta preconceitos. Branco é branco, preto é preto, negro é negro, black é black, selvagem é selvagem, cada vocábulo será utilizado pura e simplesmente de acordo com o narrador e a sua exclusiva opinião quanto à situação em que melhor se insira no texto.

A ANGÚSTIA DO GUARDA - REDES ANTES DO FIM DO JOGO ...


Foram momentos únicos e o culminar de meses de receios fundados ou imaginados, pelo que quando a enfermeira mo mostrou sorri, ali estava o fruto da tanta preocupação, dias, semanas, meses, sem um defeito, todo escuro e narigudo como o avô paterno, uns pés enormes, já não mo trocariam, fui descansar de semestre e meio de apreensões, sim, que outro nome dar-lhes ?

Preocupações, vagos receios, pressentimentos ? Durante meses o Toninho não me saíra da cabeça, um primo nado deficiente profundo, daí o alívio agora sentido. Porém passadas duas décadas voltaram a assaltar-me as mesmas borboletas no estômago, não, não eram paixões, eram borboletas mesmo, apertos, o estômago contraindo-se em si, enovelando-se. Dizer-vos quando terá sido que ela me deslumbrou pela primeira vez é-me impossível, pois não recordo dia algum que não me tenha surgido como sempre, como uma aparição, e agora isto. Fora essa impressão incomum que me cativara primeiro e depois encantara para sempre.

Por isso agora esta dor, esta desorientação dos olhos que falam, que interrogam, que apoiam mas já não prometem por não o poderem fazer, só Deus poderá julgar, e submeter ou libertar. Foram essas as janelas da alma a que nos debruçámos ignorantes do porquê do devir, da sina, do fado, ignorantes do caminho a seguir, ignorando as borboletas, os apertos no estômago, eu esquecido daquilo em que me viciara, dos seus carinhos que não dispensava, antes procurava e alimentava como coisa natural e simultaneamente fulcral ao nosso sustento e agora isto, por esta é que eu não esperava.

Recordo que quando o mundo me assustava ela ali estava, inamovível, indispensável, imperecível, nutrindo as minhas esperanças, diluindo-me as dores, sossegando-me, falando-me, e o que ela adorava falar, falar de história, mas poderia ser qualquer outra coisa, sei lá, matemática, economia, física, ou geografia… eu desta vez fingindo ouvi-la, escondendo o embaraço, a dor, escondendo esta como escondera a precedente, camuflando o lamento, eu em conflito com a lógica a razão e a realidade, enganando a formalidade que a minha exposição e transparência denunciavam. 

Eu pressentindo aproximar-se o momento nunca pensado e sempre temido do fim desta história a dois que nos tem animado e fundido num só espírito, num só desejo, numa só vontade. Sinto-o sempre que à noite te abraço e o teu respirar cansado me assusta, pressinto-o quando te noto acordada rebobinando o passado, sinto-o porque voltaste a caber folgada no meu abraço, sinto-o por não te sentir preencher como dantes a conchinha do meu regaço, sinto-o porque as tuas coxas não comprimem já a minha mão como de antanho ou porque te tornaste leve no meu colo.

Verdade que nunca te prestara tanta atenção como agora, é do choque, é a reacção digo eu. E recordo como vivias, como falavas, tentando monopolizar tudo, aludindo às mais-valias, cotações e outras equações ligadas à economia, o câmbio, as acções, os discursos, as vontades. Por vezes nem te ouvia, tal seria naufragar no teu encanto de sereia, precisamente o que eu não queria. Porém, o que eu gostava ouvir-te falar de economia … ou qualquer outra coisa, história, matemática, física ou geografia… Estirado, pés fora da cama, inalando indolentemente um cigarro, debaixo duma manta curta, destapando ora os pés ora os ombros. 

Agora ambos sabemos e estamos cônscios serem os últimos tempos, dias, semanas ou meses quem nos porá à prova extraordinariamente apesar das borboletas no estômago, não são paixões, são borboletas mesmo, apertos, o estômago enrolando-se. O medo de fazer as malas, arrumar a vida, abalar, reclama o melhor de nós, quer sejamos o passageiro ou o bagageiro. Foi assim naquele dia, meticulosamente, como sempre fizeras com tudo arrumavas a vida afim de não deixar assuntos pendentes. A desorganização exaspera-te, a incapacidade do país aflige-te, a superficialidade das pessoas consterna-te. Questões de princípio em ti inculcadas há muito e agora, alheia a tudo que não seja pensado e ponderado ao pormenor, detestas ainda mais o improviso e como tal acautelas cenários possíveis, buscas soluções e fazes-me recomendações, a mim, que tudo faço para me subtrair à alçada da razão retinindo-me na consciência como uma campainha e alertando-me para a ameaça da mortalidade ou emergência que receio, temo, e atentamente vigio por paradoxalmente me parecer desta vez a ceifeira não admitir contradição.

Tenho medo, sinto medo, não irei contar-te de mim, nem tão pouco falar-te de mim, muito menos queixar-me, sei quão detestas lamúrias, não fazem parte do teu feitio, nem do meu, como tu interrogo-me, quem, quem irá depois cuidar de mim ? Será isto egoísmo ? Pela primeira vez na vida forço-me a esconder de ti estes olhos gotejando lágrimas mas a verdade é que me sinto abafado, e só a ideia de perder-te me provoca uma insegurança que esta falta de humor tão imprópria de mim não consegue disfarçar nem esconder por mais que eu tente.

Sim, é ressentimento e dor, por não conseguir esquecer-te quando tu falavas e eu ouvia, fosse história, ou geografia o que tu dizias à pressa, como sempre, como tudo, como se o tempo pudesse acabar-se-te, ou partisse eu, a quem a tua conversa seduzia como feitiço sobre mim caindo e revolvendo numa inquietação obscena. Nem sei quanto nem quantas vezes te relembro focando a geografia, contando-me dos lugares exóticos onde em puritanos sonhos tu nos vias, eu ouvindo e sorrindo nostálgico numa ternura impaciente. Temo sinceramente jamais te ouvir falar de geografia… ou d’outra coisa, sei lá, geometria, economia, álgebra, trigonometria …

O futuro ficou repentinamente d’uma estreiteza aflitiva e opressora, e qualquer contrariedade despoleta em mim uma onda de ansiedade e tristeza cuja emoção me fragmenta os sentidos e o ego. Tento não sucumbir à percepção paranóica das coisas e das pessoas, agora parecendo-me perigos reais ou situações a temer e, inda que saiba quão circunstanciais e imaginárias são essas temidas sensações de sufocamento, o peito apertado, a insegurança vívida, a falta de humor, a revolta e os ressentimentos, não é por isso que subjugo a dor, iludo a solidão e recuso a tua morte. 

Quantas noites e estremecimentos padeço só eu sei, quanta inquietude apreensão suporto veremos, quanto martírio me torturará ainda não recusarei, tudo que seja aflição, agonia, tormento e tribulação colocarei na conta do deve e haver desta catarse que abnegadamente aceitei mas pela qual ergo os punhos ao céu. Sim eu sei, é o preço da minha condenação à liberdade, como homem estou condenado a ser livre, vivo e respiro o livre arbítrio, sei-o agora, conheci agora o seu preço, o preço ou o valor desta condenação irrevogável à liberdade que todo o homem paga por ser condenado a ficar livre.

Munida de meras palavras, falaste-me um dia da eutanásia, do livre arbítrio, do conflito entre o Id o Ego e o Superego, da necessidade que tinhas desse equilíbrio entre o sujeito que eras e o social em que te movias, lembro-me como se fosse agora, lembro-me que nunca mais no meu espírito houve paz, condescendi e calei-me, disseste-me com um sorriso:

- A vida é um palco, sê.

Tornei-me egoísta,

e desde aí vivo no medo, de ficar só, de perder-te.
  


UMA BICA CURTA, O CAFÉ FORTE * por Maria Luísa Baião...


Nunca a tristeza me bateu à porta. Hoje estou triste. Hoje preciso de ti. Não suporto este silêncio ameaçador fazendo o universo parecer em mudança. Nunca pressentira tal, sinto, mais que nunca necessária, a calma a que me habituaste, a calma que me habita a alma, sempre. Mas hoje preciso de ti, de uma bica curta, o café forte, que coloque de novo em movimento este relógio parecendo parado no tempo, para que o tempo se repita e reencontre de novo o rio manso cujo destino traçámos.

Hoje preciso de ti, não consigo viver este espírito. Entre mim e a chuva esta janela, medito, e na memória a espuma das ondas, dias plenos de festa, não razoáveis, mas todos dias de festa que em mim provocam frémitos, ainda. Hoje preciso de ti. Rebusco recordações coloridas, um jantar, uma vela, o brilho da lua, a tua voz quente, sempre. Eu sei meu amor, eu sei, conheço a cadência das horas felizes passadas contigo, afastando sombras do meu coração. Talvez saudade das palavras eloquentes com que nunca me faltaste, dos hábitos de ternura de que me tornei carente.

Hoje preciso de ti, não dispenso a tua presença, só a tua companhia basta, afasta tristezas. Como foi, como sempre foi, ano após ano, não esqueço. Através de ti entendi o mundo, conheci o amor verdadeiro, esse amor que me tornou a vida feliz, me suavizou os dias, me deu a conhecer as carícias da noite. Hoje preciso de ti. Que me passeies terna, lentamente, e me recordes quão queridas tantas promessas já cumpridas. Uma bica curta, um café forte, o brilho das estrelas, a tua voz quente, sempre. Meu amor eu sei, não sei se te diga, se te conte, como foi quando me mostraste o céu, me deste a lua, e me chamaste mulher. Não esquecerei jamais essa revolução tranquila no meu ser, de como aprendi a ler e imitar o voo livre das aves.

Hoje preciso de ti. Aprendi a vida graças a ti meu amor. Ressoam ainda em meus ouvidos os dias em que te tornaste luz, te ergueste como um sol, notei como te apagaste e ainda apagas, sempre que é necessário que o saber brilhe em mim. Sei a que devo este sorriso perene. Como um raio solarengo e luminoso descansaste no meu colo e, na memória, ficou-me o teu rosto, o teu gesto, o prazer de te tocar. Não é um amor em braille, nem a vida é um ballet, mas fazes-me sorrir, pois não recordo dias negros, mas sim e sempre o desejo.

Uma bica curta, o café forte. Que me traga o sabor de coisas passadas e bonitas, que me traga fortes as recordações de ti, de nós. Hoje preciso de ti, revisitar recantos doces, desvendar de novo os mistérios que o fogo encerra, os corpos como marés, fazendo tinir fios de lantejoulas e conchas. Um café forte, a bica curta, julguei precisar de ti hoje. Tornaste-me o que sou, fizeste-me decidida, forjaste-me numa amizade que me preencheu a vida, o passado, o presente, e decerto o futuro. Foste tu quem me ajudou a ser adulta, a quebrar regras, a distinguir, entre outras, cretinice e idiotice no racionalismo ébrio que em mim inculcaste.

Já não preciso de ti. Uma bica curta, o café quente, e para ti estas palavras. Quero ver-te sorrir também, sempre, tu, eu, nós. Transgredir e rir, rir e transgredir. Assim, sempre, sim e sempre o desejo.

Não preciso de ti, a tua resposta chegou enquanto alinhavava estas linhas. Assunto resolvido. Uma vez mais te agradeço. Tens uma bica curta, um café forte esperando, comigo, agradecida, a gentileza que sempre me votaste, quase religiosamente, ardentemente, sempre. Chamaste-me um dia mulher, e eu mudei. Acordei. Reconheci desde aí capacidades que nem sabia existirem em mim, e se já me agradeceste um dia o que fiz por ti, é hoje a minha vez. Já não preciso de ti. Uma bica curta, o café quente, o meu coração ainda bate com a cadência de outrora. Já não precisar de ti foi o melhor que por mim fizeste, e, oh meu Deus que encantamento não ser capaz de te dedicar um lamento. Foste capaz de tornar-me a vida assim !


Vem meu amor, aquieta-me, aquieta-te, junto de mim !  

PUBLICADO POR MARIA LUÍSA BAIÃO EM DIÁRIO DO SUL, KOTA DE MULHER 2003