quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

629 - A taverna do Rato Bicho*, o Hélio e a Patrícia …

Arredores de Linköping

O Rato Bicho nem estava cheio de rebentar como é costume nos dias em que servem cozido à portuguesa, um prato típico alentejano, muito vulgar mas ali muitíssimo bem confeccionado, ricamente acompanhado e bastante apreciado, que porém tem o condão de atrair clientes como a merda atrai as moscas.

Se bem que as mesas estivessem todas ocupadas, não havia, todavia, gente em fila de espera que nos apressasse, pressionando-nos psicologicamente no sentido de despachar o almoço de molde a deixar a mesa livre para quem estivesse a seguir, pelo que a conversa fluía natural e livremente.

A páginas tantas, ou será melhor dizer entre as entradas e o primeiro prato, o Hélio aproveitou uma pausa nos nossos treclarec e mastiganço para colocar na berlinda a questão que verdadeira e profundamente o atormentaria;

- Pois é. E então a senhora, a Fátima, desculpa Baião, desculpem-me, mas ainda não estou à vontade com ela, com a Fátima, mas é mesmo sueca ? E ela percebe mesmo o que estou a dizer, percebe-me bem Fátima ?

Vi logo que estava aliviando nele o receio costumeiro e vezeiro de, lá para o fim do almoço, uma vez emborcados os jarros de vinho da casa, largasse inadvertidamente uma ou outra palavra menos própria, esquecendo haver ali senhoras, e sosseguei-o, pois ela, a Fátima, alvo de tanta atenção e curiosidade, contorcia-se com o incómodo sentindo-se pouco á vontade, fenómeno aliás já de mim conhecido.

- Sueca dos sete costados Hélio, respondi-lhe. Mas está integrada, pois encontra-se entre nós desde os seus vinte e poucos anos ou menos ainda, razão p’la qual praticamente fala e pensa somente em português.


Em boa verdade a Fátima licenciara-se cedo no seu país, na sua terra natal, Linköping,** uma cidadezinha de nome impronunciável a sudoeste de Estocolmo. É um país diferente a Suécia, onde o ensino é não só diferente do nosso como bastante eficiente. Filha de mãe sueca e pai português fizera-se Engenheira do Gelo, uma qualquer especialidade que eles por lá têm que os ajuda muito e lhes dá muito jeito, mais jeito que os nossos engenheiros agrícolas já que nem agricultura temos e, de forma algo curiosa para nós, simultaneamente estudara também enfermagem.

 Lá estudam o gelo como nós não estudamos as terras. Avaliam da sua solidez e consistência, refiro-me ao gelo claro, a sua formação, e concomitantemente a das neves que os originam, dos seus depósitos, camadas e avalanches, que provocam e controlam para as gerir, evitando danos maiores como cortes de estradas e caminhos de ferro ou a morte de pessoas, passíveis de por elas poderem ser soterradas.

- Mas veio cá parar abaixo, isto aqui é mais quentinho e que diz ela de Portugal e do Alentejo Baião ?

- Sim ela andou sempre cá ou lá, ou lá ou cá, mas o que a fez escolher o nosso país foi um acidente que ainda muito nova por lá sofreu. Uma vez saltou de paraquedas no alto de uma montanha afim de colocar explosivos e gerir uma avalanche, acabando por cair sobre gelo fino que, abrindo-se, a engoliu numa fenda enorme. Foi uma queda de trinta metros que só não foi pior porque o cordame e o velame do paraquedas a ampararam, ainda assim a pancada e as dores acabaram-lhe com a carreira de engenheira do gelo mal a tinha começado.

- Por isso Hélio não te admires, digamos ter vindo convalescer para cá, gozar do nosso sol e trabalhar na empresa do pai, no Porto. Era ainda muito jovem, mas tendo sentido necessidade de integração, de socialização, aleatoriamente acabou por colidir com, e aderir ao Movimento Nacional Feminino, MNF, onde rapidamente fazia amigas, facilmente se integrando na sociedade Portuense.

- Xiiiiiii Baião !!!  MNF !!! onde ela se meteu !!!

Ó meu caro Hélio não sejas parolo, aquelas gentes, digo os suecos, têm uma noção de solidariedade e de coesão diferentes da nossa, vera, efectiva, e que colocam em prática de modo altruísta, de tal modo que o Movimento Nacional Feminino, MNF, a convidou para integrar o corpo de enfermeiras paraquedistas numa das nossas províncias ultramarinas e, mal ela abriu a boca foi contemplada com Angola, onde muito jovem acabou por ir bater com os costados e de onde regressaria dois ou três anos depois para tirar em Lisboa uma especialidade de assistência a politraumatizados, tão forte fora a impressão que lhe causaram os desgraçados dos nossos tropas com quem teve a sorte ou o azar de se cruzar.

- Fogo Baião, admirou-se a Patrícia. A D. Fátima, a Fátima digo eu, não tinha pai para a Rita como por cá dizemos. Eu também estive em Angola, aliás sou de lá, eu e o Kayaka, foi lá que me apaixonei pelo Hélio, e sofremos ou vivemos nesses dias umas aventuras danadas em Luanda, na altura da independência aquilo esteve mesmo muito bravo lá.

- Pois foi Patrícia, sei, lembro-me de me contares as peripécias e temores do Hélio, e olha tão bravo era o ambiente em Luanda nessa altura que ela já não voltou a Angola.

Foi por essa época que a conheci na estrela, onde eu fora operado a um ouvido, foi nesse Verão quente. E foi por essa altura que também ela e a Luisinha se conheceram, a festa de fim de curso das duas fora feita em simultâneo, em conjunto, e ficaram amigas. é uma velha amiga de família, estivemos quase quarenta anos sem nos vermos, sem sabermos uns do outro.

- Sim, então evaporou-se ?  politraumatizou-se ? voltou à Suécia ? Inquiriu a Patrícia ávida de curiosidade.


- Nada disso pá, por cá fartaram-se de lhe chamar fascista, reaccionária, mercenária e outros apodos indizíveis, compelindo-a a abandonar a enfermagem e a enveredar por ir trabalhar para o Porto, voltou à empresa do pai como secretária e tradutora, casou-se, teve dois filhos lindos, diz ela, divorciou-se e desapareceu do radar. Por esse motivo só de tempos a tempos trocávamos impressões ou um cartão de boas festas.

Isso também aconteceu com muitas amigas e amigos meus Baião, bem, a uns ou nunca mais os vi ou nunca mais soube nada deles, ou só de quando em quando nos vemos, a vida separa-nos, trama-nos, é dos livros, acontece-nos a todos, e sim esse Verão quente foi mesmo quente, não me admiro que tenha passado por isso, por muito menos houve gente a passar por coisas piores, é a vida, foi, mas por essa altura todos os ânimos andavam exaltados em demasia, isso é verdade.

A bem dizer só a doença da Luisinha a traria de modo mais frequente até nós Patrícia, efectiva e tristemente há males que veem por bem costuma o povo dizer, já eu quanto a isso calo-me para não errar, nada digo, não digo nada para não sair asneirada.

- Então a pintura na capa do livro... Disse a Patrícia.

Sim, a Fátima pinta ou faz que pinta e essa capa resultou dum quadro em acrílico que a Fátima oferecera à Luisinha, depois disso soubemos tinha sido operada à coluna devido à tal queda dada há quase cinquenta anos e as relações reataram-se com mais afinco. Se quisesse ser inconveniente diria ter-se tratado de um surto súbito de solidariedade na desgraça, a Luisinha também tivera a sua recaída por essa época, causada pelo cancro da mama e que na altura julgávamos ultrapassado…


- Pois, pois, recaída tiveste tu pois houve quem te tivesse visto a falhares o degrau do Rato Bicho e a ser amparado pelo senhor padre Ramalho…


Uma jóia de homem ! Almoçou connosco, almoçou na nossa mesa, quanto ao meu estado de saúde nesse dia alegarei em minha defesa ter passado a noite anterior acordado e agitado, não dormira, e apesar de não ter dormido não caí, tive a sensação a emoção, estremeci, estava cansado, mas também estava muito excitado e muito feliz, não chegou a ser uma queda, não passou de um susto…  


           Coisas da vida ...




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