quarta-feira, 12 de abril de 2017

427 - UMA CASA MILAGROSA * ..............................


Frei Baltazar estava satisfeito, vira-se livre da velha abadia que remontava ao tempo dos romanos, conseguira aproveitar todos os materiais ajudando-se a poupar para o muito ainda a gastar, a satisfação notava-se-lhe nas bochechas avermelhadas que as noviças adoravam repenicar, mas só quando tinham oportunidade e sempre que a irmã Blimunda, a madre superiora, não as estivesse observando.

Frei Bento, dando passinhos mais parecidos com saltinhos percorria o perímetro das obras, mãos cruzadas sobre a pança, impando de contentamento como só um abade sabe impar. Depois de quarenta longos anos conseguiram erguê-la, pô-la de pé, não sem que tenha tido que arrancar grandes exigências aos mesteirais, aos mestres e operários cujas vidas eram passadas ali, mas finalmente ali estava ela, solenemente erguida apontando aos céus numa prece ao divino Senhor.

De modo elegante tinham solucionado o problema das altas paredes, altas e estreitas, altas e finas, atreitas a tombar, mas em simultâneo a solução encontrada evitaria que caísse sobre elas o peso do tecto da cobertura, da abóboda à cúpula, da abside e deambulatório e do baptistério claro não o esqueçamos nem à sua importância.

Durante alguns dias houve festa na vila, arlequins, bobos, aedos, caçadores de faisão no braço, archeiros e cavaleiros, tocadores, todos e cada um no seu mister contribuíram com canções, músicas, habilidades e jogos para as festas daqueles dias de alegria, mas uma preocupação dominava alguns deles, depois de assentarem o tecto que seria da luminosa claridade que deveria preencher a casa de Deus ?

Naquelas finas, graciosas extensas e elegantes paredes teriam que ser rasgadas janelas, teria que ser aberto caminho à luz, mas como evitar que por elas entrasse também a inclemência do clima ?

Ainda a obra não estava completa e já Frei Bruno para ela conduzia as criancinhas na hora da catequese, o seu jeito para contar histórias era um tributo à tradição e à oralidade, tendo sido ele mesmo quem sugeriu ao mesteiral-mor aproveitar aquelas paredes e nelas pintar cenas da vida de cristo, do nascimento à morte, parábolas dos evangelhos, pinturas em cores vivas que o ajudassem na divulgação do exemplo de vida e da palavra de Deus. O mesteiral-mor anuiu num movimento do queixo e desandou, pois tinha que vigiar o trabalho dos canteiros vindos de Carrara e a quem fora entregue uma valiosa quantia para a feitura de uma dúzia de estátuas marmóreas.

Alguns dias depois, vendeu o mesteiral-mor ao mestre artesão da obra e como sendo sua, a ideia de pintarem nas paredes grandes painéis aludindo à vida, obra e exemplo do Senhor, pinturas alusivas aos dez mandamentos por exemplo, ao que o dito artesão, cofiando a barbicha, respondeu: Não poderia ser assim, pois as paredes teriam que ser rasgadas, abertas, inda não sabia como mas teriam, a fim de deixar entrar a luz.

Numa anterior conversa soubera esse artesão, de nome Geraldo, através do comerciante Nacodemo, terem em Itália, em Murano, perto de Veneza, o clã Barovier, uma antiga família de vidreiros, inventado o vidro plano e sobretudo o modo de lhe dar cores, que adicionavam ao vidro e o tornavam ligeiramente opaco mas alegre e lindamente colorido, pelo que em sua mente começou a brotar a ideia de rasgarem as paredes sim, mas preenchendo o espaço com esses vidros, painéis grandes desses vidros às cores, e matutava nisso quando frei Benedito se aproximou com um cesto de ovos assentes em palhinhas.

- Ovos de grifos frei Benedito ?

- Saiba vossa mercê que só após comidos saberá se sim se não, pois que os trouxe para com prazer os ofertar a vossa senhoria.

Quebrado o gelo teve o artesão oportunidade de dar conta ao frade dos seus pensamentos, das paredes rasgadas, do vidro de Murano, da hipótese de painéis coloridos taparem o espaço aberto e protegerem da inclemência do tempo mas permitindo a entrada de luz, podiam mesmo animar a nave com painéis de vidros aos quadrados, ou faixas de diversas cores, um vidro colorido ligeiramente opaco e lindo, tal vidro prestava-se a isso, que achava o bom frade da ideia ?

- E porque não construírem painéis com figuras, aproveitando a diversidade de cores e a habilidade de mestre Nicolau ? Ninguém corta vidro como ele ! Já que não podem pintar as paredes, pois se terão que ser rasgadas, então que não pintem, ao invés de pinturas criem-se desenhos, porque não ? Que pensa vossa senhoria desta minha humilde ideia ?

- Não está mal pensado não padre, os caixilhos vão ser um problema mas tudo se há-de resolver ! Porém, com a ajuda de Deus, nada haverá que mestre Bonifácio não consiga.

Dez anos depois desta conversa era inaugurada a nova catedral, lindas colunas sustentavam por dentro o peso da nave, no exterior os contrafortes, agora desferindo graciosos arcos a que chamaram arcobotantes, escoravam as esbeltas paredes lindamente guarnecidas de painéis coloridos, cada um deles versando um episódio da vida de Cristo, e, beleza das belezas, à medida que os viajantes se aproximavam do templo todos reparavam num enorme círculo encimando a frontaria e que depois de entrarem a todos deslumbrava.

Esse círculo permitia que o sol da manhã irrompesse pela nave, mas também a inundava das várias cores com que o vidro que o preenchia imitava uma rosa, uma mandala, o fundo de um caleidoscópio, coisa mais linda ! exclamavam todos, enquanto as criancinhas se quedavam embevecidas ante as histórias coloridas que as paredes contavam.


Uma menina de dez anos, Leonor de seu nome, com um cãozinho no colo, não descansou enquanto não viu com os seus olhos uma catedral perto de si, adorou, ela que tanto gostava de cores e de desenhar. 


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 Altar da Igreja dos Salesianos - Évora, onde o vitral tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitral, tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitrais, têm um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitral, tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
 Baptistério da Igreja dos Salesianos - Évora, onde o vitral tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural.