domingo, 26 de fevereiro de 2017

000417 - O COMBOIO APITA, APITOU 3 VEZES ...


Não é um vulgar apaixonado, quando muito um apaixonado invulgar. Depois de umas braçadas regeneradoras na piscina da Pensão Residencial Horta da Picota, Turismo Rural, adiantaram o duche, que tomaram juntos, de seguida o principesco almoço após o qual a canícula da tarde aconselhava uma sesta e como tal se apressaram e se meteram na cama já que o programa destas miniférias previa que fossem idílicas, nada pois de anormal que os encontremos bem dispostos e brincalhões, estão deitados lado a lado, cobre-os um lençol, é fim de Maio e já estão quentes os dias, depois dum lauto almoço aprestam-se à sesta, uma sesta morigeradora das saudades que acumularam desde as últimas miniférias de Hermínia, estão lado a lado, quase nus e conversando, ciciando na penumbra do quarto escuro que os isola do calor, 

ele vira-se para ela, corre-lhe o braço por cima, abraça-a, não tarda que hábil e subtilmente introduza os dedos sob o sutiã e o solte, ou os solte, beija-lhe as faces, os olhos e a boca enquanto a mão abarca um seio, depois o outro, lhe titila levemente os biquinhos com a ponta dos dedos, faz que os seios lhe rebolem nas mãos como, como duas, e ri-se infantilmente, como dois pacotes de leite, é mesmo leite diz brincalhão, e deixa que a mão escorra pela barriga dela, pelo ventre, a mão espalmada, sentindo-a, brinca com os pelos da púbis, sob as rendas os dedos acariciam-nas, gosta do tacto das rendas, sempre gostou, repuxa a calcinha desviando-a para a virilha, os dedos procurando despertá-la correm leves, ao comprido, para lá e para cá numa caricia voluptuosa, Hermínia fecha os olhos e entreabre ligeiramente as pernas, estremece sempre que aqueles dedos, nota-se um aroma no ar, não de Parfum Printemps Celest antes de fruta madura, fruta biológica, sumarenta, a maçãs verdes, 

Manuel Cesário tacteia-lhe os lábios carnudos, empurra-lhe a calcinha para baixo e que ela tira agitando precipitadamente as pernas, beija-lhe o ventre, é sagrado o ventre, todos os ventres, esqueceu já quantas vezes beijara Filomena da Conceição, grávida ou não grávida, e enquanto sorve p’las narinas aquele olor inebriante mordisca-lhe o ventre com os lábios, o ventre, a púbis, as coxas, as virilhas, até finalmente a beijar enlouquecido, como se não tivesse atrasado esse momento tão apetecido, beija-a, suga-a, Hermínia trava-o, aperta-lhe as faces entre as coxas febris, trava-o antes que também ela enlouqueça pois gosta de sentir-se desperta, de sentir-lhe a barba rude e áspera despontando e arranhando-lhe a pele, afaga-lhe os cabelos, agarra-os à mão cheia, empurra-lhe a cabeça, puxa-a, empurra-a de novo contra si, abre e fecha as pernas sem que saiba se sim se não, arquejam ambos como gaiatos jovens, sôfregos, 

de repente Hermínia tamborila insistentemente as pontas dos dedos nas costas dele, é o sinal, ele conhece-o e endireita-se, estende-se aconchegando-se na concha dela que o abraça e aquieta aninhando-o contra si e, colando-lhe os seios às costas roça-lhe a barriguinha nos quadris, mais precisamente na zona coxo-femural embora saibamos que a precisão é o que menos lhe interessa agora, Hermínia só pensa no desejo intenso de o trespassar, como fazê-lo não sabe, falta-lhe a grossa vara de uma picota, por exemplo, e enquanto fantasia afaga-lhe os poucos cabelos do peito, desce, espeta-lhe o dedo no umbigo pois sabe quanto ele detesta, Manuel Cesário reage encolhendo-se, ri, ela ri, ele ri, riem os dois, desce um pouco mais e toma-o na mão enquanto lhe roça a púbis no sacro sabendo quanto isso o excita, repentinamente volta a lembrar-se que tem na mão a vara duma picota soltando uma sonora gargalhada:

- Varei-te !

exclama álacre, conspícua e libertina, varei-te, e quem para dizer o contrário, se até querubins e cupidos que porventura se encontrassem esvoaçando na penumbra do quarto ou sentados na alta cabeceira da cama olhando-os o pensariam, ela trespassou-o, que sabem eles de sexo se eles mesmos não têm sexo, não têm penso eu que não têm, e se tivessem como seria ? Como o dela ? Como o dele ? Como saber se foi ele trespassado ou não se de sexo nada sabem os anjos, que por sua vez, e que nós saibamos, desde Constantinopla e de há cinco séculos a esta parte que o assunto é discutido pelos sábios sem que seja parida uma solução. 

              Manuel Cesário e Hermínia estão-se marimbando para isso agora, e enquanto nos deixam de novo entretidos com a candente questão do sim ou não, onde e como, de que tamanho e quantos anjos serão capazes em simultâneo de dançar na cabeça de um alfinete eles sim, eles pois, eles coiso e tal, e é melhor que nos afastemos, isto é matéria que não nos diz respeito absolutamente nenhum e uma curiosidade de querubim, ou de cupido, pode deitar-nos a perder, ser mal compreendidos, ser até tomados por ofensivos, ou intrometidos, porque agora, precisamente agora que Hermínia tamborila os dedos nas costas dele numa urgência pré combinada, pré programada, velha, numa pressa de o sentir, de o ter para si, de o fazer seu, 

precisamente nesse momento ele, que vive as suas próprias fantasias, e com quem ela por sua vez fantasia, não está lá, ou melhor, ele está e não está, está revivendo aqueles momentos com Filomena da Conceição, que nunca esqueceu e a quem nunca deixou de amar, e revive-os por intermédio de Hermínia que o ama e a quem ele acredita amar, ou deseja amar, ou quer amar. Deixemos portanto os pombinhos sós, têm muito que viver e reviver, e amar, amar é também matar saudades, relembrar, amar é como deslumbrar-se com o mar, há mar e mar, há ir e voltar, há viver e reviver, há o ter e o querer e o amor, e o amar é tudo isso e muito mais.

Ela descera um pouco mais e tomara-o na mão sabendo quanto isso o excitava, lembrou-se ter na mão a vara duma picota mas foi aos comboios que brincou, manipulou-o excitada, pouca terra pouca terra pouca terra, apita o comboio, apitou três vezes, e de novo o sinal, e agora é ele quem tamborila os dedos nas costas dela numa urgência conhecida, na pressa de a sentir, de a ter para si, de a fazer sua…

domingo, 26 de fevereiro de 2017

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

416 - VENDER BANHA DA COBRA ..........................


Casual e aleatoriamente veio parar à minha frente um conjunto de imagens curioso, uma qualquer festa ou celebração do meu partido, digo curioso porque só vi velhadas, velharia, um partido que se reclama de ideias jovens e que não se cansa de apregoar estar o futuro do país na mão dos jovens é afinal um partido de velhos, uns mais que outros, eles mais que elas ou vice-versa mas só velharia. Impressionou-me, quem gere os cordelinhos tá caquéctico, quem pretende oferecer-nos o paraíso metera-nos no inferno, e jovens ? Vi por lá alguns sim, bem poucos aliás, mais pareciam robertinhos, títeres, bonifrates, rindo e sorrindo para os mais velhos, desfazendo-se em mesuras, é que o respeitinho é muito bonitinho ou não é ?  Que se proporão vender-nos desta vez ? Mais do mesmo, mais banha da cobra ? Estamos bem arranjados …

Mas não era disto que vos queria falar hoje, hoje era minha expressa intenção desbobinar sobre o conhecimento, a sabedoria e o relacionamento, ou o relacionamento e a sabedoria, já que conheci uma, perdão, não uma mas duas senhoras que mais pareciam uma, e tão iguaizinhas elas eram que me confundiram, uma questão de percepção, ou de senilidade, quem sabe se também eu estarei a ficar velho. Tenho que comprar Calcitrin, verdade que sim, vou apontar não vá esta verdade dispersar. Falemos então das divindades que mais pareciam divinas deusas e que na realidade inda não sei se as imaginei se sonhei, a verdade é relativa, as verdades são muitas e a pós verdade ainda é pior. Mas vamos à verdade, a minha verdade que a vossa é coisa que nem me interessa.

Era uma vez uma pequena conhecida que em boa verdade não conhecera e que nem era contida nem excessiva, nem lenta nem apressada e sendo para aprofundar a verdade o melhor é confessar-vos que nem a conhecia de todo, nunca a vira, não conhecia mesmo. Aceitara a sua amizade desinteressada e aleatoriamente, como faço com tanta gente, já nem digo nada pois invariavelmente apresentam-se como minhas leitoras, ou seguidoras, motivo mais que suficiente para me encher o ego e nem fazer perguntas. Assim foi com estas, inda que vagamente tenha associado uma delas a alguém que me habituara a ver ao volante duma carrinha, daquelas que transportam equipas de vendas e tomam de assalto uma zona hoje outra amanhã, que venderia ela ? Financiamento? Crédito? Tupperwares? Trens de cozinha? Bimbys? Por mim que se lixe, não estou comprador, nem lá perto.

Mas eram parecidíssimas estas duas, uma académica, lá tenho eu que passar a ter mais cuidado com a pontuação, com a grafia, com a sintaxe, com a atenção devida aos tempos verbais e ao presente indicativo e predicativo do sujeito, a outra promotora de vendas, uma leoa decerto, quem se aventura na selva dos mercados com a crise que por aí grassa tem que ser pessoa de coragem, confiante, ainda por cima encabeçando uma equipa, sendo responsável, é de admirar realmente com tanta irresponsabilidade que alastra por este país há demasiados anos, conduzir outros, incutir-lhes coragem, convicção e confiança, dar-lhes meios e exigir-lhes objectivos, metas, não é para todos, ao tempo que não dava por um fenómeno assim, isto é liderança, vanguardismo, isto é a assumpção do elitismo esclarecido, claro que não somos todos iguais, há que ter coragem e assumir diferenças, liderar, conduzir, ir à luta, ganhar, vencer, mas que venderá ela ? Esperança ?

 Foi assim, depois fiquei-me por ali, ou por aqui, divagando sobre a formulação de juízos, de conceitos, de preceitos, até que inadvertidamente o pensamento derivou para os preconceitos, era fácil e natural o desvio, ou o percurso, porque os neurónios e os axónios lá terão as suas razões, os seus motivos, as suas conexões, as suas leis, quem sou eu para os entender, somente os conheço de vista, ou nem isso, e sim de ouvir falar neles, de ler sobre eles, e já é saber bem mais do que sei sobre estas duas que julguei, não, não julguei, apreciei, pensei, sobre quem me debrucei, acerca de quem me pré ocupei, e nem o teria feito não lhes tivesse achado algumas parecenças, alguma graça, alguma piada, alguma ligeireza, ou destreza, talvez deva dizer, dizer ou confessar, alguma elegância nos modos, certo que a uma não lhe conheço mais que o perfil e o apelido, mas a outra caminha com a elegância de que só um vendedor bem sucedido é capaz, não é altivez, nem arrogância, se não me engano e do que vejo desta esplanada de onde observo o mundo aquilo não é pedantismo, é sobriedade, é auto confiança, se calhar é mesmo isso, ela venderá esperança, que outra coisa poderia alimentar-lhe assim a auto estima ?

Gostava de conhecê-la melhor, quem não gostaria ? Sobretudo saber o que vende, não que eu esteja comprador, nem de esperança me sinto necessitado, em boa verdade já ultrapassei esse desiderato, quem de nada precisa terá de tudo, é um pouco o meu estado, um pouco complicado, como agora soa dizer-se, ou não ? Nada que não tenha aprendido, ainda que nem seja ensinado, ou talvez por ser um optimista céptico, mais que um crédulo pessimista, é a velha questão de olhar para o copo meio, estará ele meio cheio ou meio vazio ? Um vendedor olhará para ele, ele copo, e para o interlocutor, processará em segundos milhares de conexões, estimará potencialidades, avaliará possibilidades e quando o algoritmo lho aconselhar atirará a sua dica, já a outra obriga-se a ser mais contida, os académicos tendem a abrigar-se, evitam expor-se, há que resguardar posições e distâncias, como se a autoridade do saber residisse na sua sagrada ou divina ocultação, no mistério alquímico dessa disseminação, contida, doseada, como que aspergida sobre bem poucos eleitos, e estava eu nisto quando a Ti Bilete:

- Outra senhor Baião ? Desculpe a franqueza mas não serão já demais ? O senhor lá  saberá, ou não veio na mota ?

Precisamente, nem a mota nem o carro, irei a pé, moro perto e estou desperto, não durmo nem abano, não oscilo, não tropeço, acordei, simplesmente encalhara nos meus pensamentos e sonhador como sou erguera um preconceito, fundamentara-o e justificara-o, quando afinal antes de ir para casa só tenho que lembrar-me do dois em um, afinal não duas mas uma só, uma só solução, branqueador e amaciador, Ultra Super Plus, dois em um, nem a marca esqueci, a Luisinha vai gostar não ter esquecido o recado que me dera, por vezes ponho-me a pensar e não paro, outras vezes só a Mimi me acorda ao chegar a casa, ronronando e roçando-se-me nas pernas, eu gosto de gatos, a Luisinha aprecia cães, seja o que for animais são família né ?

Não são eles que nos adivinham e conhecem todos os pensamentos ? Dos mais torpes aos mais íntimos ? 


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

415 - VIDA, VERTICALIDADE, COERÊNCIA, CONSEQUÊNCIA, HONRA …


Aconcheguei-lhe ternamente a manta junto aos ombros e deixei-a ficar adormecida, era cedo ainda, a noite fora-lhe tormentosa, que descansasse agora enquanto eu cuidava de que tudo estivesse pronto para o pequeno-almoço mal acordasse. Quanto a mim esperaria por ela, não que não tivesse fome, que tinha, inda que pouca, mas esperar por ela era modo de demonstrar o amor e a consideração que lhe tinha e me merecia.

Tínhamos marchado a noite toda e todos estavam exaustos e famintos, o sol não demoraria a despontar abrasando tudo, tudo e todos que se aventurassem debaixo dele, ouvia os homens fazendo medições antes que a última estrela se apagasse e discutindo, a questão não valia a discussão, mais milha menos milha, apesar de tudo a noite tinha rendido. Digo apesar de tudo porque trazê-la connosco atrasara-nos a todos, atrasara e metera em risco, eu sabia-o e mesmo assim dei a ordem, que improvisassem uma padiola e a trouxessem, custasse o que custasse. Ninguém respingou, e ela, mau grado o estado periclitante em que se encontrava e o sangue que perdera, sobrevivia. Perdera e continuava perdendo, pouco mas perdia.

Hoje, que por razões um tudo-nada idênticas recordo esses dias lembro que estiveram na minha resolução de saída e abandono. Talvez abandono obrigue a pensar numa obrigação que alguém me tenha imposto, numa expulsão, que não foi o caso, nem uma atitude minha de virar as costas irresponsavelmente, o que não aconteceu. O que aconteceu foi que nos devemos obrigar a ser coerentes e consequentes, mormente em cenários como aqueles em que vivíamos. Verdade que ela se salvou, verdade que sobrevivera, mas colocara toda a coluna em perigo, todo o grupo, e todos sabiam que por amor eu tinha infringido as regras, e as regras têm que ser iguais para todos, não jogávamos a botões, e não há vidas mais valiosas que outras, haver há sempre, ou haverá, como aconteceu, mas temos que estar aprontos para pagar o seu preço, e o meu foi uma demissão honrosa.

Néli * tinha sido salva mas eu perdera-me, perdera a autoridade, deitara a perder o respeito que me era devido, o crédito acumulado, desbaratara o prestigio que arduamente tinha conquistado, dissipara a confiança que em mim tinha sido depositada a um preço alto, altíssimo, e quantos o cumprimento das regras tinha condenado ? Não se vence uma guerra com o coração, vence-se com a razão e razão e emoção estão por vezes nos antípodas ainda que não possamos perder de vista nem uma nem outra, nunca. É nesse estreito e periclitante equilíbrio entre razão e emoção que radica a honra, a hombridade, a probidade, a rectidão, a confiança, o respeito e a nobreza de caracter que carregamos connosco, desfeito esse equilíbrio, por si só a carga alijar-se-á.

Deus concedeu-nos livre arbítrio para que não sacudamos a água do capote. Não há arbitrariedades, o que há, demasiadas vezes, é quem não assuma a responsabilidade pelos seus actos, por isso eu tinha que me demitir, tinha que me respeitar, e aos demais. A quantos naqueles anos caóticos tinha sido concedido o tiro de misericórdia para os poupar ao sofrimento, para os poupar de cair nas mãos do inimigo, para que não fossem um peso para os demais, sim, a quantos tinha sido concedido esse tiro de misericórdia para que outros sobrevivessem ? Vivessem ?

Regras são regras, em cenários assim não podem ser personalizadas, nem pontuais, têm que ser gerais, universais, iguais. Quem vai sabe ao que vai, sabe o que o espera, sabe com o que contar, nunca vi ninguém chorar, nem implorar, mas vi agradecer, sim, despedir-se e agradecer.

Uma única vez e por acordo de todos tínhamos infringido as regras, a pedido de Tchaló que deixáramos ferido na esperança de conseguirmos voltar a tempo com um Unimog, ou um helicóptero. Não conseguimos, mas ele soubera que esse risco existia e fora-lhe recomendado que guardasse para si a última bala. Não guardou, ou não guardou ou não teve oportunidade para isso. Quando conseguimos voltar em seu socorro chegámos tarde, atrasados, um dia no máximo mas atrasados. O cenário que se nos deparou não deixava dúvidas, muito provavelmente tinha sido comido vivo, rezámos para que Deus o não tenha permitido mas a quantidade de mabecos mortos à sua volta e a distância a que se encontrava a arma, ainda municiada, indicavam luta renhida, os mabecos pagaram um preço alto antes de lhe chegarem ao sangue cujo odor os atraíra. O seu olfacto detecta um cheiro a dez milhas de distância, é cinco vezes mais apurado que o das hienas. O torso do infeliz Tchaló, que não estava ainda limpo pelas aves de rapina, era um relógio assinalando a hora da morte, os restantes membros, dispersos, indicavam a luta travada pela presa entre mabecos esfaimados, a ausência de perfuração no crânio provava que não tinha guardado para si a última bala, restava a questão crucial, estaria ainda vivo, ainda consciente quando os mabecos… Tínhamo-lo deixado muito ferido, consciente de si mas muito debilitado, com água bastante, mas o esforço que os cães da pradaria lhe terão exigido pode ter sido demais para ele. As nossas boas consciências exigiam-nos que tivesse falecido antes de…

A morte não pode ser aleatória, uns sim outros não, os homens criaram as regras para se respeitarem a si mesmos, para se superarem, para se honrarem. Na aldeia fui louvado ao chegar com Néli numa padiola, viva, mas a honra tem sempre um preço, ou não seria honra. O amor sobreviveu graças ao coração mas sucumbiu às regras, Néli não podia voltar a aceitar-me. Eu demonstrara ser um fraco e ela era e continuava sendo a vanguarda, uma guerrilheira, uma líder. A verticalidade e o proscénio assim lho exigiam.
* http://mentcapto.blogspot.pt/2016/11/396-lebam-ku-bo-o-canto-da-esperanca.html

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

414 - O ÚLTIMO FÔLEGO DAS LUMINÁRIAS ...


(Em caso de  emergência respirar por um tubinho.)

Nas últimas semanas, ou mês, a comunicação social, mormente a escrita, tem-se debruçado sobre as tentativas, intenções e legislação preparada para, segundo o governo, se proceder durante o corrente ano a uma verdadeira descentralização de competências cuja responsabilidade passará a recair sobre os municípios. A começar pela gestão dos fundos europeus Portugal 2020.

O governo alega em defesa da sua boa-fé, esgrimindo como argumentos o facto, verdadeiro, de nunca terem sido delegadas nos municípios questões ou áreas, digo responsabilidades de tão manifesta importância, coisa de que os mesmos se deveriam orgulhar, pois finalmente este governo reconhece as capacidades dos municípios e atribui-lhes condicentes obrigações, numa atitude de desconcentração de poderes sem paralelo na nossa história.

Os municípios mui naturalmente estranham a fartura, e claro, acusam tão grandiosa quão boa intenção de regionalização encapotada, o que de facto parece estar a acontecer, e ainda de o governo lhes atirar para cima áreas e situações, razões e problemas que ele governo nunca foi capaz de cabalmente resolver. Para tudo piorar fá-lo sem o acompanhamento de uma justa compensação financeira, digo dinheiro, de sobra preferencialmente, sempre ele, o dinheiro, dando de barato em relação às propostas do governo que de boas intenções estará cheio o inferno.  

Não irei aqui terçar armas nem por um lado nem pelo outro, cada um procura gritar mais alto, cada um procura esconder a realidade fazendo-se crer mais lúcido, mais competente e responsável que o outro, quando no fim de contas ambos escondem a pilhéria que sempre foram e de que não passam nem passarão.

Se há quarenta anos atrás tivesse havido a coragem de descentralizar a fundo, ou regionalizar, eu teria compreendido a atitude, atitude que evitaria que hoje cada região sacuda a água do capote e atire com as culpas do seu atraso para cima dos vários governos, de todos os governos. Como sempre a culpa é dos outros e nunca nossa. Embora o país não seja grande, diz-nos a história ser dificílimo de governar, e há quarenta anos, com incipiente rede fixa, uma baixa densidade de telefones instalados entre a população, cuja cobertura estava longe de cobrir 50% das residências, sê-lo-ia ainda muito mais. Sem modernices como faxes, sem satélites ou rede móvel, a Marconi, os telegramas e os estafetas eram então a realidade pré-histórica em matéria de comunicações na qual vivíamos mergulhados. Poderes regionais teriam superado com maior facilidade estes constrangimentos naturais, agregando da região uma imagem que o longínquo Terreiro do Paço teria mais dificuldade em apreender.

Decorridos quarenta anos, e depois de termos errado e falhado todas as visões e decisões, praticamente em tudo que nos propusemos fazer, resolvemo-nos finalmente deitar mão da regionalização / descentralização. Com a verdade me enganas diz o povo e mui acertadamente. Por detrás das boas intenções algo se esconderá de maléfico, negro, e maquiavélico, digo eu, senão vejamos:

Durante quarenta anos em que a Europa e o mundo estiveram relativamente em paz e poderíamos ter feito alguma coisa de jeito sem sermos incomodados, quiçá até ajudados, nós dormimos, fechámo-nos em guerrinhas intestinas e politiquices mesquinhas tal qual o cigano a quem o mano não deixava molhar a sopa e que por isso levou uma galheta do pai. Nós fechámo-nos na nossa maniazinha de grandeza, como fizera a China que se isolou do mundo dentro das suas muralhas, e que ao acordar deu por estar duzentos anos atrasada desse mundo exterior de que se afastara e com quem não quisera partilhar os seus segredos e o seu avanço.

Todavia, é precisamente agora que o mundo entrou em ebulição, agora que o mundo não vai tão depressa parar de ferver, agora que esse mundo nem vagar terá para olhar para nós quanto mais auxiliar-nos, agora que estão reunidas todas as condições que desaconselhem fazer o que quer que seja é que nos chegou a vontade de fazer alguma coisa. Não nos iludamos, de um modo ou de outro, com ou sem descentralização ou regionalização o país vai regredir, vai definhar e empobrecer ainda mais. Durante quarenta anos foram cavados fundo os alicerces da nossa miséria, como sempre 8 ou 80, e agora estão fundos e sólidos, fortes, ninguém será capaz de mover ou demover o que quer que seja e está garantido o mergulho na miséria e na pobreza desta democracia de pechisbeque que ardilosa e arduamente a estupidez ergueu. Tudo que tenha pés de barro afundar-se-á, e tudo tem.  

Só não vê quem não quer, agora que os meios de comunicação, a informática, o digital, os chips, os pixéis, os gigabytes, os circuitos integrados, a robótica, a inteligência artificial, as videoconferências, a condução autónoma, os telemóveis de última geração, o Google Earth, os processadores, os algoritmos, os dados estatísticos vomitados em segundos aos milhões, agora que o terreiro do Paço está a um clique de distância de Sidney, agora que dispensámos a Marconi e qualquer dia os CTT, agora que alguém numa salinha pode através de satélites ter uma panorâmica completíssima e em tempo real deste pequeníssimo país e gerir, governar em conformidade, é precisamente agora que querem dispersar os poderes decisórios descentralizando-os, regionalizando-os, entregando-os nas mãos de quem em quarenta anos não foi capaz de tornar cada região uma região única no mundo, avançada, moderna, responsável, dinâmica, produtiva, planeada, guindada ao sucesso. Portugal ainda tem todas as condições para ser o Paraíso da Europa, senão do mundo, mas com os mesmos portugueses que têm vindo a gerir a coisa só o inferno estará garantidamente garantido. 

Deus nos ajude. Isto não é mais que o último fôlego das luminárias.

Rapaziada não se deixem enganar, o que esta atitude diz claramente é que o governo assume não ser capaz de governar eficientemente o país, como outros antes deste não foram. E quem não estiver bem que se mude...

- Tomem lá esta merda e desemmerdem-se !

Este é o grito ocultado que se está atirando aos municípios, e parece em boa verdade ser o vero discurso oficial, um discurso destinado ou dedicado a alijar a carga e a responsabilidade de quem até aqui não acertou uma, não acertámos uma, em tudo e durante todo este tempo este país tem obtido um resultado deplorável que só nos deixa como opção fazer a trouxa e zarpar, e cada vez são mais a fazê-lo.

Claro que mais uma vez os municípios não saberão nem conseguirão desemmerdar-se, ou não tivessem eles até aqui feito outra coisa que não merda. Duvidam ? Olhem para o estado de cada concelho, de cada distrito, ou para o país. 

O sucesso de quaisquer políticas mede-se pelos resultados obtidos. Está tudo à vista. 

Dança Can Can dos Coça Barriga.

http://www.dnoticias.pt/pais/costa-quer-2017-como-o-ano-da-maior-descentralizacao-para-as-autarquias-AL692604





quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

000 413 - LANDS OF NOBODY ...................................

           

Pois o que sucedeu, muito antes ainda do nascimento desta fulcral e primordial Júlia se tornar imprescindível à nossa história, é que passado o estado de graça do amor e uma cabana, Manuel Mestre e Perfeita da Anunciação começaram, também eles, olhando à sua volta e interrogando-se acerca disto e daquilo, e por que não tinham eles direito a trabalho certo se eram tão jovens, fortes e voluntariosos, prestáveis e disponíveis, ou por que não lhes chegava a jorna para mais que meio pão, um casebre digno de um cão e, depois de contados e recontados os tostões nem um deles, nem um tostãozinho ficava para uma segurança do amanhã, um pecúlio para a menina, uma extravagância para uma saia, um capote ou umas botas, já que não fora o relógio da igreja anichado frente à sua porta, sua deles, nem as horas saberiam por falta de verba para uma corrente quanto mais para uma geringonça daquelas, geringonça com a qual Perfeita da Anunciação embirrava desde que uns dias atrás, pela matina, ouvira nitidamente as badaladas do dito cujo assinalando as oito menos um quarto no preciso momento em que, ao acercar-se da porta do moiral da Herdade dos Safados, ele moiral a convidara a entrar e lho garantira, lho, o trabalho, sempre que ela quisesse e o aceitasse, a ele moiral, isto é, trabalho sempre garantido mas desde que ela consentisse em que ele, Fortunato Encarnação, lhe desse uma badalada de vez em quando pois também ele era humano, um ser humano, um homem de carne e osso, e não de ferro, ele mesmo reconhecia ali ante ela as suas fraquezas, fraquezas dele, mormente ante ela Perfeita da Anunciação, sublinhou, uma mulher linda e perfeita como nunca nem alguém lhe anunciara outra. 

          Por momentos custou a Perfeita da Anunciação acreditar no que os seus ouvidos lhe garantiam estar ouvindo, apanhada de surpresa que fora. Sabe a ciência que em situações assim o nosso cérebro puxa à mente em milésimos de segundo um bilião de coisas, de lembranças, de memórias, de hipóteses que possam explicar o que se está ouvindo mas não acreditando, qual a reacção ou resposta adequada, e fá-lo tão rapidamente que o melhor computador não foi ainda capaz de processar tão grande quantidade de informação em menos tempo, pelo que Perfeita da Anunciação teve, embora aos nossos olhos, caso lé tivéssemos estado e assistido, tal não tivesse sido nem miraculosamente possível na fracção de segundo que um piscar de olhos ocupa, mas foi., foi e teve ela tempo para depois de refeita de tal choque, ou surpresa, ajuizar com algum humor, melhor dizer com alguma ironia quão melómano este Fortunato lhe saíra se comparado com o primo Xico Estevão, um adepto confesso das mocadas, entendida a palavra como acto de percussão, mocada, pancada, batida, de longe muito mais forte e violenta que a badalada, esta mais melódica que aquela, mais dispersa no ar, menos invasiva, intrusiva do pavilhão auditivo e respectivo canal, logo menos ofensiva, ofensiva no sentido de agressiva, ofensiva no sentido de um corte ou de um rasgão, uma concussão ou laceração, portanto impossível de comparar com mocada, que deriva de moca, sinónima de pancada e de batida, cousas que por certo não deixariam de provocar, originar, golpear, ferir, fazer mossa, ainda que Perfeita da Anunciação nunca tivesse sido vitima do seu rude primo Estevão que nós agora e mercê desta exaustiva explicação quase pintámos como um troglodita armado de clava e cabeludo, primo com quem aliás há uns anitos atrás namoriscara uns mesitos sem contudo trilhar caminhos que a impedissem de chegar casta ao casamento.

  Não que pretendesse passar por santa ou por ingénua, nem uma coisa nem outra, simplesmente sublinhar que sempre soubera aparar o jogo ao primo Xico e evitar que as por ele chamadas ou designadas mocadas fossem aparadas, amparadas ou amortecidas, de molde a não deixarem amolgadela, abalo, comoção, testemunho ou cicatriz, a única defesa possível num mundo de malvadez e preconceitos que uma jovem casadoira nunca deve descurar antes do casório, ma sim levar convenientemente a peito.

  E por falar em peito, ante o olhar lúbrico e deslumbrado de Fortunato Encarnação de imediato Perfeita da Anunciação buscou agarrando-as as pontas do xaile que sobre os ombros levava despreocupadamente e o repuxou de aconchego a si e de modo a que melhor a cobrisse, terminando este repentino cuidado e amparo com um cruzar de braços sobre o móbil de tanta observação e no momento em causa, tanta celeuma, tanta agitação, podendo nós concluir que ser generosa, se de peitos, pode ao invés do vulgar e licitamente esperado, perder uma mulher.

  Badaladas ou mocadas, o certo é que Perfeita da Anunciação não ficou para ouvir a música em que Fortunato intentava embalá-la e, ainda cinco segundos não tinham decorrido já ela se virava bruscamente. Ainda a geringonça da torre sineira não acabara de bater a oitava badalada e Perfeita da Anunciação ruborizada e atrapalhada deitara correndo em direcção a casa, casa essa, ou esta, onde vive, onde agora escuta sempre com um misto de indignação e revolta as badaladas que anteriormente tanto gosto lhe dava ouvir, mas que se lhe tornaram insulto insuportável desde que deixara o desafortunado do Fortunato de discurso por acabar e com o badalo nas mãos, sendo que estas últimas palavras não passam de força de expressão minha pois o bom do Fortunato, tal qual já acontecera com o senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão, descontada a compostura, que nunca haviam abandonado nem perdido ante Perfeita da Anunciação, o único aspecto em que se viram desarmados foi na cobrança, já que nem a um nem ao outro foi pago o preço da borrega que intentaram cobrar junto da jovem, bela e roliça Perfeita da Anunciação. *

E se nas suas divagações e interrogações Perfeita da Anunciação questionava o porquê das suas amigas, ou pelo menos algumas delas serem preferidas e terem as jornadas garantidas, enquanto outras eram preteridas e quase atiradas para a mendicidade, a dependência, a pedincha e até a prostituição, estava a lembrar-se de Luna Maria, e enquanto indagava para si mesma quantas, quais e quem se teria já deitado a ouvir as badaladas que lhe haviam de assegurar o trabalho no dia e dias seguintes, Manuel Mestre ponderava quanto do seu caracter não estaria a prejudicá-lo, já que não era dado a bajulações, ao beija-mão, à graxa, sendo que reflectia igualmente quanto o facto de falar muito e fazer demasiadas perguntas o estaria a lesar, tido como era por ser um individuo revoltado.

O seu amigo João M. Carrajola tinha-o mesmo uma vez acusado de subversivo, coisa sem pés nem cabeça, acusação sem fundamento e que de todo nem fazia parte da sua personalidade. Mas como dizem os sábios mais vale sê-lo que parecê-lo, Manuel Mestre nem estava a ser, nem fazia por o parecer, e fosse como fosse o resultado era o mesmo, uma maioria dos dias sem ser escolhido para completar a jornada, o regresso a casa cabisbaixo, a vergonha sentida ao encarar Perfeita da Anunciação que, calada e de olhos pequenos, mortiços, o olhava já sem nada lhe perguntar, antes adivinhando o sofrimento abafado por ele e impossível de ser escondido, interrogando-se nestas circunstâncias e cada vez que ele galgava o umbral da porta quando, quando seria que a fome a obrigaria a deitar-se escutando as malditas badaladas, e já nem diferença lhe faria fosse com o senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão ou com o bom malvado e afortunado Fortunato Encarnação.

Num tal ambiente, que o casal não tivesse filhos acabava sendo uma felicidade, a vinda de um rebento, menino ou menina, só agravaria todos os problemas vividos e não vividos ainda mas de que o casalinho começara a aperceber-se, como ampliaria a dependência de que ficariam prisioneiros, ou reféns, e bem podemos dizê-lo pois já o pensámos, lá teria, ou não teria Perfeita da Anunciação que pagar o preço da borrega se quisesse ter com que alimentar mais uma boca quando duas já eram difíceis de contentar.

De tamanhas atribulações ia escapando João Carrajola que, depois de pintar a manta bem pintada e quanto quis e lhe aturaram, ou permitiram, logrou padrinhos que o tivessem enfiado à pressão nos quadros da GNR uns escassos dias antes de completar trinta e seis anos e antes de o limite de idade para a sua admissão ser atingido. Penso que já aqui o disséra, o que não vos disse foi que enquanto cabo do posto se distinguiu pelas sevicias proporcionadas a quem tivesse o azar de lá cair, lugar onde o nosso cabo, ciente da sua hombridade e sentido de justiça tentava moldar todos à sua imagem e semelhança, se preciso fosse à força, o que bastas vezes lhe trouxe contrariedades quase chegadas a vias de facto e, quando os confrontos com a população, que não escondia a sua antipatia nem o seu desagrado por ele nem quão pouco era estimado atingiram proporções desaconselháveis foi finalmente corrido dali.

Mas Deus escreve torto por linhas direitas, e algures alguém houve que tomou por bons ofícios o interesse e a dedicação do nosso amigo Carrajola pela manutenção da ordem e da disciplina, da autoridade, a ponto de, na hora H o terem transferido para uma cidade das Beiras onde o esperava o curso de sargentos, o que lhe valeu ter-se furtado ao desagrado das gentes que se preparavam para lhe fazer a folha, que seria o mesmo que fazer-lhe sentir o seu pesado sentimento de repulsa e nojo. Foi muito depois disto, destes acontecimentos, deste tempo de trevas que Júlia veria finalmente a luz, sim, esteve para se chamar Maria da Luz, mas não calhou, o destino não quis, mas essa é outra história que adiante vos contarei. 


 Ver Galopim de Carvalho, in “O Preço da Borrega” Lisboa, Edições Âncora.