quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

633 - BARRANCOS, CLARO... by Maria Luísa Baião


                                      
 Mesmo em férias, consegui ir sabendo algo do que se passa na nossa terra, e foi em férias, fruindo outros ares, culturas e tradições que tive conhecimento do desfecho do caso de Barrancos. Foi pois longe de Barrancos que verdadeiramente entendi o que estava em causa.

Uns dias bem passados na costa espanhola, gozando dos benefícios da globalização (esquecendo que estava a mais de mil quilómetros de casa, não dava por isso) e tirando vantagens deste vasto mercado, posso assegurar que só os preços e a qualidade dos serviços nos superam. Mais baixos os primeiros, os outros muito acima do que se faz no nosso cantinho. Como diria o José Mário Branco no seu célebre “FMI”, “ ..A produtividade, ora aí está !...”, e eu acrescentaria; a organização, ora aí temos a questão, o planeamento, o urbanismo, o ordenamento territorial, etc., etc., etc.

O Hotel em que estou todas as noites brinda os hóspedes com um diferente programa de animação cultural, uma destas noites, durante uma sessão de bailado flamenco, os dançarinos levaram-me a compreender melhor este povo, cheio de vida e iniciativa, e por analogia os nossos barranquenhos.

Os espanhóis têm orgulho em sê-lo, são um povo com razões pelas quais lutam e se afirmam perante a homogeneidade cultural que a globalização força. Nós, à excepção dos barranquenhos, nunca nos afirmámos em coisa nenhuma, e tenho as minhas dúvidas que o nosso patriotismo ainda valha alguma coisa para muitas (os) de nós. Percebi-o quando um par de dançarinos adejava em torno um do outro numa representação dançada de sedução e conquista, tal como no mundo animal se vê.

Elas, brilhando de cores, folhos e lantejoulas, atraem o macho com um bailado rítmico, algo erótico, em que a beleza do corpo, o movimento e as formas que toma, se oferecem numa recusa negada. Os machos adoram este fulgor, cortejam e volteiam como borboletas em redor de intensa luz, exprimem, ou expressam o seu garbo, para terminarem rendidos, de joelho, frente a frente.

O homem das cavernas, que dizem caçador porque em murais desenhava caçadas de animais, não está longe do pistoleiro americano que colocava uma marca na coronha do revólver cada vez que abatia outro homem em duelo. Os pilotos da I e da II guerras mundiais, pintavam nos seus aviões os símbolos de inimigos abatidos.

O meu avô, que Deus tem, contava-me em criança histórias de famosos pugilistas. Brecht, sim o Bertol, apreciava tanto quanto o meu avô, como aliás o faziam outros intelectuais da época, essa violência do boxe, não havia então o politicamente incorrecto que hoje amordaça. Ora o meu avô foi sempre uma pessoa de bem, e mais bondoso que um S. Bernardo, nunca o seu gosto pelo violento boxe o alterou. Hoje temos um ministro que foi boxeur e ninguém lhe chama atrasado mental por isso, é criticado por razões bem menos violentas.


Nos nossos dias os americanos orgulham-se da sua multiracialidade, a que agora chamam multiculturalismo, o que não os impede de calar a boca a índios e pretos, à porrada ou a tiro. Os sul-africanos tinham o seu “apartheid”, um orgulho muito próprio, uma coisa só vista..., os brasileiros têm a MPB, música e língua (portuguesa) que levam a todo o mundo, até cá, até a nós. E nós, salvo raras excepções, temos a música pimba e a ambição de possuir de tudo em que no mundo alguém se orgulha, roupas de marca, ténis, relógios, automóveis, talvez se safem os galos de Barcelos e a louça das Caldas da Rainha, pois tudo o resto nos vem de fora, pelo comboio ou pelo paquete, como dizia Eça. Excepções temo-las portanto bem poucas, e sabendo-se que o mundo não evoluiu uniformemente desde as grutas de Lascaux até à confusão com os gémeos in vitro, não compreendo tanta pressa em uniformizar o que não é igual, nunca foi e nunca será.

Tudo tem o seu tempo, Barrancos também o terá, até lá aceito a sua defesa da tradição, da cultura, da individualidade, da diferença. Se nos querem tornar todos iguais, globalmente iguais, comecem pelo que é realmente importante, condições sócio económicas, legislação laboral, direitos cívicos e standards de produtividade e salariais idênticos. Não se prendam com o acessório, que só serve para distrair do essencial. Por que terá que morrer de fome um paquistanês que sua as estopinhas para produzir as raquetes do ténis que nos faz babar no Estoril Open?

Por que se envaidecem os americanos com a conquista da Lua e não podem os barranquenhos orgulhar-se da coragem de enfrentar um touro ? Cada um afirma-se de acordo com o que lhe permite a sua cultura e o tempo em que é vivida. Não vou a touradas, não sou pelos touros de morte, mas ninguém me vê criticando forcados ou toureiros, nem ouvirá. Evoluirão a seu tempo. Uma coisa são barracadas, outra touradas, o nosso parlamento confunde-as e dá-lhes demasiada importância. É o seu modo de se afirmar... (Benidorm,15-7-02)
                             
                           ‎


By Maria Luísa Baião, Benidorm,15-7-02, publicado no Diário do Sul provavelmente a
‎30‎ De ‎Julho‎ de ‎2002.