domingo, 31 de agosto de 2014

201 - FIZ UM RABISCO NO CÉU * por Luísa Baião




Fiz um rabisco no céu, com um giz que alguém me deu e para mais nada me serve. O céu que olho em noites claras, se estrelado, é um véu ápiro, aparentemente inerve, que recolheu dores, sonhos, promessas, com que se infesta e nos devolve a força p’ra desfiar cada fado aqui vivido, cada dia aqui passado.

Dizem haver horas de sorte, gritam com grande alarido, mas há fados bem sofridos, há viveres descoloridos, e a quem tal não importe.

Que é tempo de comunhão, grita, da nau o capitão, alheio ao individualismo que se afirma num cinismo, desdenhoso e simplório, que por gozo aqui gloso, por estar crente e também certa, a um só sitio nos levar, ao desvio para um abismo, como castigo exemplar, que antevejo por desperta.

No céu as estrelas sorriem, escondem como ninguém as falácias que nos vendem enquanto com desdém riem, não dos que assim nos mantêm, antes de nós que aliciadas, acreditamos, porque queremos, nalgumas almas danadas, de bem falantes blasfemos, cuja prosápia bebemos como coisa bem achada.

Pobres de nós sonhadoras, ingénuas aparvalhadas, condenadas à penhora pois não intuímos manobras em que somos embrulhadas. Fados, destinos, estrelas, só se achando capicua c’os desvios à morte certa em vidas predestinadas. Nos livrem de tal sorte, tais jogadas, ou maleitas, antes a morte.

Quem tem pedras no sapato e ideias vende ao desbarato, alguém há-de codilhar, que é o mesmo que dizer que de mesa sem vintém hão-de retirar um prato. Pobres, sempre houve e haverá. Havia muitos diziam, o que agora não apraz, ouvir dos que já comiam. O que eu gostaria mesmo, era que pr’algum achar, tivesse que andar de dia, buscando-o com candeia, ao invés de pulularem, como em praia os grãos de areia.

Marés embalam o mundo, vai p’ra cima, vai p’ra baixo, e, nós, num sono insensível, frio e profundo infortúnio, esquivamos os toques de esgrima c’o semblante cabisbaixo pensando em manter o brio.

São sonhos Senhor, são sonhos, que nem nos deixam sonhar, e, se viver há-de ser isto, da morte lenta os limiares, que sejam então esses os quistos, mas não nos chamais muares.

Malmequeres, papoilas, rosas, lírios, cravos, tudo serviu na parada em que orgulhosas marchámos de estandarte desfraldado. E agora, despeitadas, vimos passando à nossa frente, vidas mal ou nem começadas, vidas em tudo mutiladas, vidas nunca acabadas, ou vidas despedaçadas.

E é este o nosso fado, bem sofrido, bem cantado, mal vivido e mal sonhado, mas única consolação de quem viveu, sofreu e calou, este verdadeiro pesadelo em que a vida se tornou.

Não devia assim ter sido, podia assim não ter sido, não tinha que assim ter sido. Mas, como as linhas da mão, que são lidas com desvelo e nunca a verdade contam, assim fomos encantadas, em lindas falas embaladas e cá estamos para o provar. Vivemos.

Mas viveremos decerto ? Não creio que me digam agora haver vida no deserto. Surpreender-me-ia tal, e podem crer ser verdade que se em pouca cousa acerto, nenhumas já me surpreendem por vivê-las tão de perto.

E por isso vos garanto, que sem dano, surpresa ou pranto, peguei nesse mesmo giz passando um traço por cima de quem sem encanto me encanta. E podem crer, acreditem, bastou um traço decidido para acabar com aquilo que muito boa e adulta gente há muito teria já ou devia ter percebido

* Já publicado por Maria Luisa Baião no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher 12-2006.     




sábado, 2 de agosto de 2014

200 - UM CONTRA O OUTRO ..............


Não aguentaria mais. Nem mais nem mais tempo. Falei hoje sobre o que queria para a minha vida e não quero continuar assim. Isto tinha que se dar. Agora que já está acho ter demorado tempo demais. Devia ter-lhe posto fim mais cedo. Demorado e durado. Lá haverá quem pense que acabou antes de tempo, por mim durou até demasiado.

Se bem o pensamos melhor o fazemos, isto devia ser atar e pendurar como na mercearia. Depois de pensada a coisa nada se ganha em protelar. Pagar e morrer é que quanto mais tarde melhor. Na verdade agora até sinto um alívio. Os últimos dias acabaram comigo. Devia ter-me decidido mais cedo. Nem sei que imaginava eu que tanto temia a decisão. Afinal foi fácil, nem zaragatas, afinal foi uma surpresa, a bem dizer nada do que previra aconteceu.

Mas é isso que é estranho. Algo devia ter acontecido. Mas ao certo que devia ter sucedido que não sucedeu ?

Esta falta de reacção é inusitada, não a esperava de todo, estive a preparar-me para tudo menos para esta indiferença muda. Desolação, foi o que ficou depois da decisão anunciada. Mas para mim antes esta desolação consumada que a apreensão em que passava os dias.

As crianças já foram. Já foram crianças, o Antonino já tem a vida dele traçada, e a Ermelinda meteu o pé na portada e empurra agora, e, se bem a conheço não vai tirá-lo. O caminho é em frente, que atrás vem gente e nisso a Salsichinha sai à avó que quando se lhe metia uma coisa na cabeça não descansava. À avó ou à mãe. A alguém têm que sair os miúdos né ? Se não for ao pai só pode ser à mãe. Olhem esta agora.

Descobri a pólvora para aqui a falar para as paredes, para o boneco como soa dizer-se. Podia ser pior. Afinal vivo uma acalmia que há meses não sentia. Há males que vêem por bem. As coisas vão até mais calmas do que estava à espera. Já nada há que me cause alarido. O pior vem agora mas acho que me dominei, me acalmei, e tudo isto me deu preparação foi isso que aconteceu.

Este assunto andava a matar-me o pensamento, agora já posso sair do esconderijo, não sinto raivas mas algum medo, preciso organizar-me, vou estar uns tempos sem aparecer, espero que compreendam, tempos difíceis se avizinham. Falei hoje sobre o que queria para a minha vida e não quero continuar assim. Foi isso que aconteceu.

Tenho de parar com isto, falar só p’ra mim, falar para as paredes, logo eu que até tenho perfeita consciência de me perder por falar demais, mas preciso ocupar-me, não posso pensar que agora estou só, eu e eu comigo, esta fase solitária há-de passar, é tudo estranho agora, anda tudo estranho, ou serei eu que verei tudo diferente, finalmente as coisas esclareceram-se, foram demasiado longe, muito mais do que imaginava, do que queria, terem ido longe demais desta vez até foi positivo, e não era o que eu queria ?

Foram mais longe e ficaram mais sérias, a vida é uma merda, é uma merda mas é assim mesmo, e esta vida de merda nem traz manual de instruções, tenho é que desanuviar, meter baixa, ou meter férias, ir à praia, estou a ficar branquelas e detesto.

Não, não foi um capricho do momento, andámos foi demasiado tempo engonhando, fazendo de conta que nada se passava, mas passava, agora já passou, a vida não pára, em frente que atrás vem gente, até me sinto mais leve, até sinto um alivio que há meses não sentia, ainda me custa acreditar que já estou noutra, vou mas é meter férias atirar duas ou três coisas para o carro e partir à desfilada.

Allgarve here i go !!!

Não aguentava mais, não aguentaria mais, nem muito mais nem muito mais tempo. Isto tinha que se dar. O que durou a mais foi o que se perdeu. Afinal foi fácil, afinal nem zaragatas, afinal nem surpresas, no final só uma indiferença muda. Olhem-me esta agora, por esta é que não esperava de todo. Podia ser pior, podia ter sido pior mas cá estou eu a falar para as paredes, para o boneco como soa dizer-se, preciso ocupar-me, esta fase solitária há-de passar-me sem que me perca por falar demais, ninguém está ouvindo pois não ? Ninguém ouviu nada então não ?

Quando voltar de férias logo se verá, os miúdos, os carros, logo se verá quem fica com o quê ou quais, os discos e os livros não deixam duvidas e até lá não me doa a cabeça.

Preciso aliviar, distrair-me, sentir de novo a vida, as emoções fervilhando em mim, os sentimentos palpitando como pipocas, o sangue correndo nas veias e a pele arrepiando-se de novo. Vivo a ternura dos quarenta e inda valho, ainda presto, ainda preciso, ainda sou capaz. Preciso é esquecer a sensaboria do passado, o sentimento de inutilidade, esta sensação de ser invisível, de quase nem existir, vão ter que me aturar de novo, terão que olhar-me de novo, ver-me, reparar em mim, aguentar-me que renasci e estou aqui de novo para as curvas, para a vida !!

Cuidem-se !

Allgarve here i go !!!
Lisbon here i go !!!
Porto here i go !!!
Faro here i go !!!

https://www.youtube.com/watch?v=XbwtOekK3qY