sexta-feira, 14 de abril de 2017

428 - POESIA OU PROSA, GOSTOS NÃO SE DISCUTEM ...


Gosto de poesia, contudo deixo desde já bem claro não ser ela a minha praia. Gosto de ler poesia, e se consigo entendê-la, não estou ainda à altura de a depurar, quanto mais de a elaborar duma forma perfeita, elegante, como a prosa que vou tentando e conseguindo umas vezes, outras nem tanto. A prosa sim, é a minha praia e a minha onda, adoro cavalgá-la e, sempre que posso, ou estou lendo ou escrevendo, entre uma e outra coisa venha o diabo e escolha.

Desde cedo a literatura me seduziu e acerca dela poderia dizer o que Sócrates nos disse falando para si mesmo, conhece-te a ti próprio, e eu, quanto mais sei de literatura mais concluo só saber que nada sei. Nunca tive ouvido para a música ou mãos para tocar viola, mas fico feliz com um livro à minha escolha ou com quatro folhas de papel e uma boa esferográfica, deslizando bem, correndo bem sobre o papel e me permita acompanhar as ideias sem que as perca. Falo da prosa claro, porque a poesia demora, tem uma maiêutica dificílima, a formatação demorada, é como uma gestação, é parida a custo, e aqui os cuidados serão antes não esquecer meter a tampa na caneta para que a tinta nunca seque no aparo.

Uma seca a poesia ? Eu não diria, alguma talvez, não a maioria, mas com a poesia chia mais fino, e o que menos conta será a rima. A poesia é do âmbito do transcendente, é uma subjectiva objectividade múltipla, como quem espreita um caleidoscópio ou se delicia com uma mandala. A poesia intima-nos, exige de nós muito mais que uma qualquer prosa, por vezes intimida-nos e tanto nos pode assustar como deslumbrar, comover ou convocar a raiva, a solidariedade, tanto quão a repulsa ou a rejeição.

E não faz isso a prosa ? Claro que faz, é evidente que faz, mas não o faz num verso, num soneto, num poema, numa estrofe, é esse o ponto fulcral da poesia, a prosa lida com descrições, explicações, narrativas, parágrafos, pontos finais e reticências até nos dar uma imagem, até que percebamos onde quer chegar, a poesia dá-nos imagens, atira-nos com imagens, convoca-nos ante uma imagem baseada em três palavras ou três linhas, confronta-nos com metáforas, toma, pensa, medita, desvenda, traduz, desenrasca-te, bastando uma palavra para nos exigir que saibamos ou tacitamente reconhecer que conhecemos todo um texto, todo um livro, toda uma história, trabalha num patamar diferente a poesia, num degrau mais elevado, não como o arame farpado e rasteiro que evita as vacas no lameiro, trabalha no arame, no limite, brinca connosco, faz malabarismos, ri-se de nós umas vezes elogiando-nos noutras e, nalgumas raras ocasiões condecora-nos.

A poesia não ensina, exige que saibamos, que conheçamos, mas depois, maravilha das maravilhas, torna-se cúmplice, de sentimentos, sensações, e confronta-nos com o que sabemos com o que julgamos saber, sobretudo com aquilo que ignoramos saber. Diria que a poesia nos convoca, nos convida e desafia a entrar e a desvendar o seu mundo imagético cuja diegese a partir desse momento reparte cumplicemente connosco, bandeirantes da sua geografia, aprendizes de feitiçaria, duendes numa floresta de gnomos e gigantes de um mundo nem liliputiano nem dos ciclopes onde se nos torna acelerada a pulsação, precisamente quando reclino a cabeça, fecho os olhos deixando-me transportar, viajar no espaço e no tempo, ou num abraço ternurento, outras vezes sobrevoando uns lábios sequiosos mergulho num corpo quente, abrasando, sendo então que em sobressalto acordo e corro a tomar um duche frio pois a sensibilidade da poesia afoga-me os sentidos num caldeirão em turbilhão, em lume quente, ebulição, fazendo que me sinta João Ratão rodeado de canibais famintos, dançando em transe em redor duma fogueira ameaçando cozer-me em lume brando mas, soltando um urro animal deselegante furto-me ao fantástico e fantasista erotismo sensual do amor poético cuja fantasia, enrolando-me, enleando-me, ameaça quebrar-me submisso ao fogo que ela mesma aviva com ervas de cheiro, rabos de lagartixa e folhas de ulmeiro, cujas fragrâncias me enovelam quixotescamente dentro das palavras que eu próprio murmuro.

E agora ? Agora, outro duche naturalmente …