sábado, 22 de dezembro de 2018

559 - TIRO O CHAPÉU AO SAÚL by Luísa Baião *

Podia ser o carpinteiro Saúl...
Podia ser o carpinteiro Saúl...
                                                                                                                        Podia ser o carpinteiro Saúl...     



                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

        Usa uma boina coçada um novo amigo que fiz. Encostado a uma bancada o encontrei numa festa onde, feliz saltitava, de uns p‘ra outros até que, num golpe de sinestésia (vai buscar o dicionário amigo Saúl), ultrapassou o rogado e me dirigiu palavra.

        Cavalgando um alazão um tudo-nada etilizado, nem perdeu por isso o condão de, em modos de João-ninguém, solícito se apresentar, numa postura em que, implícito, eu deduzia, um carácter em que luzia, trémula, uma alma íntegra, talvez até à medula.

       Exteriorizando alegria, não estudada mas sincera, qualquer uma enxergaria que, apesar das negras nuvens que lhe toldavam o andar, ser vera essa alegria espraiada no seu olhar.

        Percebi ter mãos de mago e obra feita na terra, não ser o drago que o pintam nem fazer guerra aos que o tentam, pois apesar de fruir uma vida mal-amada, este homem é um portento. Mal-amada vos disse eu, talvez errada no lance por obra de outro plebeu que mo confessou de relance. Uma impressão me pareceu naquele lídimo dono de um nariz de judeu, um arrimo de profeta, que mau grado a bruma dos dias o é de coisa nenhuma mas que da vida é um esteta.

        E quando com minudência lhe divisei bem o rosto, de aparência sempre calma, reparei em cicatriz que, não se ostentando por gosto, me levou a perguntar-me quantas mais não guardará na matriz da sua alma. Como pode não ser bom, não ser bondoso e vaidoso quem de coração aberto nos apresenta, baboso, desperto da névoa etílica, um filho de feição idílica, moço bonito, espadaúdo, e como o avô, espigado, que por certo de donzelas se verá sempre cercado.

          Dizendo-se velho o Saúl, mais não faz que se enrolar nas voltas que a vida dá, a sua história é a estória duma vida a que não terá querido dar qualquer vitória, por mais que ela seja fútil. Por mais que o negue, o Saúl, nem é velho nem inútil, e não me sai da cabeça que só é tão áspero consigo por pensar que perdendo-se sacudirá de cima o destino.

          Maldiz o mundo porque o sente, não o ama porque o não pensa. Será que ele desconhece que em tudo pomos um tino ? Não que não o aparente, parece ser um ser feliz a quem o passado persegue e eu espero, sinceramente que um dia em algum pagode, olhando dentro de si, exulte como quem descobre a ponta dum qualquer novelo, ser a vida um atropelo a que nos cabe pôr cobro, descobrindo se o malogro é sonho ou pesadelo.

         Não foi um velho que eu vi, foi um ser inteligente que teima, não sei porquê mirar-se em espelho passado, quando o que deve fazer é, à força de um carretel, subtrair-se a essa toleima que afunda tanto indigente. Não há nenhuma entre nós que não seja em algum momento, escrava das circunstâncias, viver tem altos e baixos, é carrossel de alternâncias, como uma noz num tormento, o fiel numa balança, o sorriso num pensamento.

         E é na perseverança, não no gesto simples e fácil de elevar uma garrafa que acharemos a adiafa que por direito nos pertence, ela é uma ténue esperança, qual porta só acessível a quem em vida se esforça, que quer, que luta e que vence.

         Hoje afoga-se n’outras águas, mas tempos houve, decerto, em que depois de afundado nos olhos de uma mulher, se viu perdido no deserto.

        Com um velado respeito p’la progenitora, presente, por quem levou a mão ao peito, o Saúl é muito afável, simpático, nunca ausente, cultivando um velho saber, mais próprio de um povo asiático. Bom fadista e dançarino, evocou-me três mulheres; uma muito mal casada, uma simplesmente casada e outra que não chegou a casar.

         Aqui vos deixo uma pista do que é um estere, um decastere ou decistere de um nada vulgar destino.

   Podia ser o carpinteiro Saúl de S. Miguel de Machede...
                                 
* Escrito em  25 Agosto de 2003 por Maria Luísa Baião‎ e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER

Podia ser o carpinteiro Saúl de S. Miguel de Machede...