terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

13 - FICÇÃO, É TUDO FICÇÃO...




Ainda hoje a lembro. 

Como não lembrar se corporiza um dos meus momentos felizes, mas também uma das minhas, e muitas, compreensíveis frustrações e arrependimentos. E tantos são que nada mesmo ganho em relembrar. Mas lembro, já que não esqueço, feliz ou infelizmente lembro, com saudade pois que dela ainda gosto.

A estória conta-se em poucas penadas. Já vos estou a ver palpitantes de curiosidade, espreitando avidamente este íntimo e este passado recheados de desilusões, frustrações e arrependimentos, vos garanto. E de erros, tantos erros que quaisquer de vós com a minha idade não somará nem metade, mas não eu que errei, erro e hei-de continuar errando. 

Quem não desconfiou já do meu ar seguro ?

Da minha faceta extrovertida ?

Do meu carácter prá-frentex ?

É tudo fingimento !


Tudo para esconder insuficiências, incapacidades, anos de erros acumulados, de arrependimentos sentidos, desilusões que são chagas, frustrações que me revoltam e põem de mal comigo mesmo. Nunca o confesso, nunca o confessei, e jamais o admitirei, muito menos aqui que esta merda é mais pública que julgamos e tem montes de gente somente espreitando, gente que nunca dá sinal de si, não comenta, não contesta, cobardemente resguardada por consciências comezinhas e que, se tivessem a ponta de um corno de vergonha, já se tinham apagado a si mesmas e hellas ! Do próprio mundo e da vida ! Pois nem farão a mínima falta nem consta que façam algo que interesse minimamente. Ornitorrincos lhes costumo chamar, isto porque posso ser um falhado mas sou respeitador, quando não, imaginem só a desgraça ou praga que lhes rogaria.

A Net tem realmente uma fauna muito “sui generis” cujo estudo empírico ando desenvolvendo há algum tempo e de que vos darei conta na altura certa. Em boa verdade alguns personagens nem direito têm a ser designados fauna, antes os incluiria na categoria de flora, concluído e provado estar para mim haver couves com um QI muito superior ! 

Mas ia eu dizendo, já vos estou vendo escorrer baba de curiosidade, no mínimo tanta quanto do cão de Pavlov, e não arrisco mais não venha a levar por descuido alguma dentada de impaciência. 

Chamava-se Cecília.

Eu era por essa época professor numa escola secundária da cidade, sempre dado ao progressismo e à esquerda, os mesmos movimentos que agora tanto abomino porquanto vanguarda das nossas cabeças mais estúpidas. Guardara desde o 25 de Abril um espólio desse movimento de idealistas cretinos, espólio de que me orgulhava e me servira anos a fio para, em cada escola e em cada efeméride, promover exposições sobre esse arroto histórico. Gradualmente fui-me vendo despojado dessas memórias, em cada um dos eventos não terá faltado cabrão ou filha de puta de esquerdista de merda que me não tivesse roubado um cartaz ou qualquer outro exemplar desse rico e único conjunto, a ponto de me ver quase sem nada. 

Acudiu-me à ideia nesse ano remoto, solicitar a colaboração do Centro de Recursos (nessa altura a designação era menos prosaica, como arquivo por exemplo) de um partido cá do burgo. Diga-se também que nessa altura ainda eu não tinha nada contra esses partidários, nem eles contra mim, já que com o tempo nos incompatibilizámos, ainda que não por causa da Cecília. Uma vez que era ela quem estava à frente desse departamento, logo me prometera colaboração desmedida e quanta eu necessitasse;

                      - Primeiro está o 25 de Abril camarada !

estou a contar-vos tal qual ela o afirmou ! Fiquei banzado ! Não tanto pela inusitada disponibilidade e colaboração da Cecília mas pela sua beleza, pormenor que nem o seu permanente ar meditativo lograva esconder. Um cabelo liso e negro de azeviche que só visto, aliás toda ela sempre de negro, um rosto oval, lindo, por baixo de uma franja parecendo o pano subido de um cenário, sorriso daqueles que nos derretem, encavalitado nuns lábios carnudos, sequiosos, suscitando desejos, olhos fundos de amêndoa, escuros, rasgados e pestanudos, que mais que uma vez me fizeram vacilar as pernas já que não aguentava olhá-los se pestanejassem duas vezes seguidas. 

                     Todos estes atributos tinham como base um peito farto, (e confesso-vos, mais uma fraqueza minha, sempre adorei mamas grandes, não me perguntem porquê) peito que me cambalhotava as órbitas se o calhava fixar, montado numas pernas altas, monumentais, em que por tudo e por nada, até por dá cá aquela palha, em sonhos ou acordado me via envolvido, apertado, submergido ou enlaçado. 

Nem sei por que não me converti à sua doutrina de imediato e perante tais argumentos, ou sei, pois por essa época nada mais recordava nem via que a Cecília, toda irreverente e sorridente no seu blusão de cabedal preto e cheio de fivelas, imagem de marca que nunca abandonava. Concedo que sou bonito, e há quase vinte anos ainda o era mais, (perdoem-me a modéstia), a Cecília também não deve ter resistido à minha beleza, tanto que se eu suspirava por ela, ela suspirava por mim, e, claro, acabámos várias vezes por nos encontrarmos bebendo umas bejecas e comendo uns caracóis, delirando e suspirando com a presença um do outro.

Era de Almada, separada, eu já casado há um ror de anos. Nem ela me sugeriu ir para Almada nem eu que ficasse em Évora. Víamo-nos quando calhava, até calhar quase todos os dias. 

Lembrem-se, eu era prof nessa altura, o mesmo é dizer que não fazia nada, trabalhava poucas horas por semana, não ganhava mal, entrava tarde e saía cedo, daí compreender a actual luta dos meus ex-colegas, com a qual me solidarizo. O “ser humano” não foi feito para trabalhar mas para se dedicar à contemplação, à retórica, à oratória, à filosofia, e ao sexo oposto, esta deve ser a verdade. 

Um belo dia, eu e a Cecília, já fartos de chupar os dentes por neles se terem metido os nossos olhares gulosos, mas também de repartir o mesmo caracol, combinámos sair, o que fizemos numa calma noite de verão. Escolhemos um recanto abrigado do luar por baixo de um sobreiro e ali ficámos falando de nós e da vida umas boas horas. Eu, não querendo ser malcriado, atrevido ou alarve, e, embora com toda a vontade de a amar e tomar toda ali mesmo sem deixar uma migalha que fosse, fui ficando quieto. Ela, ou por pudor ou porque esperasse um meu avanço, ia-se ficando sem me dar o mínimo sinal de abertura, consentimento ou encorajamento. 

E eu népia, só conversa, e ela mais conversa. 

Ficámos conversados ! 

Talvez a minha incapacidade para um momento de infidelidade tivesse contado, não sei, não posso jurar, o que sei é que nunca fui infiel até hoje nem penso sê-lo, o que terá pesado na minha hesitação e reflectido na atitude dela. Não sei se a Cecília me terá julgado ou ficado chamando maricas, a verdade é que aquela noite foi uma frustração para ambos e o facto de não termos voltado a ver-nos é um indicativo dessa desilusão. É com os erros que infelizmente tantas e tantas vezes aprendemos. 

Nunca aquela noite devia ter acontecido. 
Uma coisa aprendi, nunca mais voltou a acontecer-me.
Por quê ? 
Por que nunca mais saí com uma mulher ? 
Por que deixei de ser inexperiente ? 
Por outra qualquer razão ?

Conhecendo-vos como penso conhecer, prefiro deixar esse critério às vossas mórbidas curiosidade e especulação, crente que uma dissecação destas incógnitas nunca será despiciente para ninguém, até porque de outra forma qualquer dia saberiam mais da minha vida que eu próprio, o que não me posso dar ao luxo de permitir.