sábado, 9 de março de 2013

138 - POSESSION / OBSESSION .........



Nunca antes, mas desde aquele dia sim, para mim foi o final, não aguentaria mais tanta indiferença


- será pecado o beijo ?

e questionava-se permanentemente numa blandícia matreira, mole, que me exasperava, quando eu, tantas vezes, sim amor tu mereces, eu compreendo-te, eu trato disso

enquanto o masoquismo, como vicio que a animava e a que eu fechava os olhos, tomava conta dela e, se tinha que ser ao menos fosse eu, que não era sádico, pois se por um lado evitava a queda da sua loucura nas mãos de um qualquer, ou que assim viesse a sofrer, ao menos fosse comigo que, arvorando um racionalismo compreensivo e paternalista mas simultaneamente soez, me vingava

vingava-me do será pecado o beijo que me travava as investidas sempre que, mais carinhoso e terno, procurava despertar nela interesse algum ou mesmo mínimo pelo baldaquino que em sua honra instalara na enorme sala de que fizera quarto

- nasci no pecado, sou filha do pecado

afiançava-me ela ajoelhada, de mãos postas, nos raros momentos em que algo ou alguma coisa a tomava, submetendo-a, num transe, hipnótico, não sei, do qual só se libertava se sossegada com o meu

- sim, sim amor eu trato disso, tu mereces e eu compreendo-te,

e a tomava, num sadismo que ela exigia fosse cumprido religiosa e ritualmente, após o que se acalmava, sossegava, até novamente exigir ser possuída por mim demoniacamente numa  perversão voluptuosa e lúgubre

- perdoa meu Deus perdoa em mim os pecados do homem eu que sou filha de pecadora e nasci e vivi em pecado perdoa Senhora perdoa Pai, em nome do Pai do Filho do Espírito Santo esta minha penitência, que cada sacrifício meu  aplaque os tumultos da minha existência e desta negra alma

ámen

e enquanto este transe lúbrico, de mãos fechadas num fervor desmesurado e lascivo sobre as enormes contas de rosário de um terço levado aos lábios minuto a minuto nos intervalos dos murmúrios me forçava, para aplacar a sua ânsia libidinosa e voraz a tomá-la, a possui-la quase ou como se a violasse e do estupro fizesse consequência para o seu sacrifício, a sua penitência, durante o que ela, em atitude e oração ofertava aos seus deuses ou demónios imaginários a expiação e imolação apaziguadoras da perturbação da suja alma

numa parede a xilogravura de Jesus, noutra, provavelmente do mesmo artista, uma invocando Nossa Senhora das Dores, à cabeceira uma cruz, nua, numa mesinha de cabeceira, e sempre à mão, o terço com incrustações de prata, na outra mesinha uma foto do noivo, falecido numa picada em Timor, vitíma de uma mina terrorista e pela morte do qual se culpava visto lhe ter sido infiel enquanto ele no mato, sobretudo por, descontados os fusos horários, nada a demover da certeza de ele ter morrido no exacto momento em que ela, nos antípodas, lançava um grito de lascívia numa pensão do Beato, perdida de amores por um boletineiro da Marconi, que a fez sentir-se impura e, para todo o sempre e ainda hoje se questionar

- será pecado o beijo ?

enquanto fazia de mim exorcista dos pecados de que não a culpava nem me cabia a mim expiar mas num turbilhão me arrastaram para o seu mundo imaginário e concentracionário, um mundo em que dor e castigo se conjugavam como atrozes carrascos e algozes de um amor luciferino que na ideia dela terá sido culpado pelo bizarro fim do noivo e de idílico noivado

- mete, tudo, todo, mete todo sem dor nem piedade, não mereço viver, força, à bruta, mete de repente, enfia tudo de uma vez, não pares, arranca-me os cabelos, castiga-me às tuas mãos, queima-me as entranhas, incendeia -me a boca a garganta, Senhor, expio os meus pecados Senhor, que o meu padecer purifique a minha alma e que nossa Senhora das Dores me encurte a vida e me alivie o sofrimento, quero morrer

e sentindo-se impura enforcava-se com o terço, enrolava-o nos seios ou enfiava-o entre as pernas ampliando a dor e o castigo e arrastando-me a mim nas mágoas duma expiação em que fazia de carrasco e de exorcista, eu, para quem o mundo girava já tão ao contrário que naquela tarde não me contive e no exacto momento em que ela gania debaixo de mim qual fêmea acossada pelo cio, lancei mão do pesado crucifixo na parede, ergui-o bem alto para que a pancada na nuca fosse fulminante e coincidente com a milésima de segundo em que o orgasmo me acometesse, e já pressentia na minha cara o esgar vingativo de um incubo sádico quando

uma aparição ante meus olhos tomou forma e ante mim, um incréu, se materializou uma Nossa Senhora de Fátima ou das Dores cuja luz me cegou e cujo braço susteve quando já em movimento descendente a estocada, e ainda hoje recordo o seu sorriso sereno, calmo, de pura paz, emanando um poder de sedução que me travou o golpe e envergonhou de tão ignomiosa acção

soltou um grito e libertou-se de mim, cruzou os braços sobre o rosto e ouvi-lhe num murmúrio perdão perdão perdão Deus Pai, enquanto enterrava a cabeça entre os joelhos e se encolhia a um canto

depositei com inacreditável tranquilidade e superstição o crucifixo sobre a cama, como que arrependido do brutal gesto que nos desgraçaria

mas o destino não marcara aquela hora, endireitei-me, respirei fundo para recuperar a serenidade e o domínio de mim, olhei à esquerda e à direita as xilogravuras nas paredes e jurei a mim mesmo enterrar ali os delírios selvagens que preenchiam os vazios da minha alma e nunca mais, até hoje, arranquei cabelos violei ou sovei quem quer que fosse,

olhei-a uma ultima vez, pareceu-me a incarnação do diabo
ela cegava-me, mas esqueci-a

olhei-a pelo espelho, tomava a bica a meu lado na Pérola da Sé, magra, sumida no hábito de freira, não a via há muito mais de trinta anos, não me reconheceu ou fingiu não me ver,  fiquei-lhe  agradecido, esquecera-a, esquecera-me de mim

hoje sei, o amor só medra noutras galáxias

ela fora a minha cocaína…