sábado, 2 de fevereiro de 2019

567 - PERIGOSO E INFAMÁVEL ANEL DE FOGO...

           

É-me muito difícil ficar calado, é-me difícil ouvi-los e é ainda mais difícil conter-me ou contestá-los, tão-pouco contrariá-los.

Custa-me, tanto mais quanto o silêncio a que sou obrigado colide com o meu modo de ser, extrovertido, participativo, e nada reservado mas, nesta concreta situação calo-me, contenho-me. Existe um compromisso que não posso desrespeitar, assinei, dei a minha palavra, jurei, portanto sobre esta temática em particular bico calado, o silêncio é de ouro e quebrá-lo poderá mesmo custar-me em extremo, em último grau, um tiro bem no meio dos olhos, ou acordar morto numa valeta qualquer sem saber como fui ali parar.

Há coisas com as quais não se pode brincar. Eles tagarelam, batem com o punho na mesa, a mão no peito, viram, afiançam, juram, eu remato que viram mas não enxergaram, ou enxergaram mas não compreenderam.

Bem sei que passaram quase quarenta anos, e os trinta anos da praxe, do contrato, há muito foram ultrapassados mas, uma cláusula alarga esse prazo, essa imposição, essa obrigação, essa libertação, até me ser dada claramente autorização e essas, se bem que pedida já ha meia dúzia de anos, quer ao nosso Ministério da Defesa quer aos correspondentes homólogos em Luanda e em Pretória, não chegaram ainda. O exercício “ALCORA” fazia e faz sentir ainda as suas repercussões e o silêncio era também ele uma das suas muitas e especiais peculiaridades, todas elas desconhecidas do grande público.

Por isso eu me calava, sabendo que uma morte é uma morte e mesmo apenas uma sendo demasiada, mas não esquecendo quantas foram evitadas, e foram-no muitas mais, não podendo eu sequer dizer quanto devemos a esses mortos, quanto as suas mortes valeram, quanto contaram, quão gigantesco foi o seu sacrifício. Porém em paralelo calando igualmente a diminuta dimensão das guerras discutidas àquela mesa, das suas pequenas tragédias, dos seus pequenos sacrifícios, evitando diminui-los, denegri-los, amesquinhá-los ou desprezar o seu sacrifício, a sua participação ou contributo. Vá lá gente adivinhar como as nossas palavras serão recebidas ou entendidas, o melhor é nem arriscar.

A verdade é que só o todo conta, casos individuais não passam disso mesmo, de individuais, e não contam para os resultados nem para as estatísticas. O bem maior alcançado foi o de todos, é sempre o de todos, é sempre a única coisa que conta embora nem sempre a mais beneficiada ou a que melhor aproveite os resultados, quaisquer resultados. Seja como for só o todo faz história, e como fazer perceber isso a cada um deles, a cada um destes homens, a cada um destes soldados em redor desta mesa ?

Foi ali que eles sofreram, Angola, Moçambique, Guiné. Mas não foi ali o cenário maior da história viva. O cenário maior era desenhado nos bastidores, e eles, ainda que o não creiam, nunca passaram de simples marionetas de quem no mundo puxava os cordelinhos. Carne para canhão. Robertinhos lhes chamaria, mas vá lá um homem dizer-lhes isso, portanto o melhor será calar-me, ouvi-los e calar-me, assumir e calar, estão a perceber-me ? Entendam-me, pois no contexto da guerra fria não deixámos contudo aquecer as coisas.

O cenário maior era tal qual lhe chamei, maior, isso mesmo, maior, e circulava-os, circundava-os, rodeava-os, cercava-os como um anel de fogo que ninguém queria ver em chamas. Sim, olhai o mapa e pensai por um momento num anel tocando Angola, Moçambique e Guiné, atentai em cada um dos países no interior desse anel, todos eles em ebulição, agora atentai nos que estão no exterior mas próximos desse perímetro, todos eles passíveis de visões incendiárias se o anel pegar fogo, portanto é isso mesmo, foi disso que tratámos, de evitar o fogo, evitar o incêndio, o seu deflagrar, o seu alastrar.

Não fomos militares, não fomos guerreiros, fomos bombeiros de uma causa maior, e ganhámos, lutámos e vencemos, a África austral não se incendiou, não virou um outro Vietname, o fogo foi contido, os estragos contidos, os danos colaterais evitados, o desastre foi confinado. O preço ? Treze anos de sacrifício e mais de 8000 mortos só dos nossos, um pequeno preço para um tão alto resultado, mesmo sabendo como se sabe que uma morte, uma só, uma apenas que seja já é demais.
  
O projecto Alcora, de que fazíamos parte, em que nos integrámos, a que, como habitual e em segredo, sorrateira e rapidamente aderimos sem dar cavaco à nação, ao país, ao povo, mais não foi que um compromisso, um complot aquecendo- nos as costas mas destapando-nos os pés, um compromisso com um presente que antes de o ser era já passado, um passado conservador, estático, a busca de uma resposta a perguntas que ninguém ousava fazer, a compulsão para uma solução constituída p'lo menor dos males quando a epidemia era já impossível de conter, confinar ou enfrentar.

Alcora de seu nome, foi mais um exercício, um teste, uma experiência, uma conspiração a que aderimos repartindo, tripartindo esforços, procurando-se coordená-los a fim de ser alcançado um mesmo objectivo cujas regras observámos e envolviam para além de nós a África do Sul e a Rodésia. Alcora não foi a designação duma qualquer operação militar secreta de que Portugal tenha feito parte, foi uma tentativa de dominar o conflito colonial e fazer frente à luta dos povos indígenas articulando posições contra essas lutas de libertação. Neste exercício as relações de Portugal com esses países atingiram uma profundidade considerável, tratou-se de países com os quais Marcelo Caetano esteve em vias de articular a independência unilateral de Angola, uma independência branca, declaração que esteve preparada para ser feita na fortaleza de Massangano a 15 de agosto de 1974, Dia de Nossa Senhora da Assunção, padroeira de Luanda. *

A manobra/jogada politica criaria as bases de um governo presidido por uma personalidade negra, provavelmente Jonas Savimbi, mantendo-se administração branca e o status quo anterior à declaração de independência unilateral. **

Naturalmente a malta não acreditou em nenhuma palavra das que eu disse, nem o forte argumento por mim apresentado para que consultassem as obras em causa os demoveu e eu, com idêntica naturalidade abandonei a mesa e abati-os ao efectivo deixando-os a falar sozinhos. É dos livros, é sabido que quando somos novos tendemos a fazer amigos por precisarmos de aceitação, de integração, de afirmação no seio do grupo, do clã, mas depois de experientes e com a minha idade, diria que depois de "matarmos o pai" a nossa afirmação se faz lutando e impondo as nossas ideias, mesmo que seja necessário abater amigos, é uma outra forma de afirmação... O mesmo objectivo estratégias diferentes… Curiosa a vida...

              

* Para mais clareza consultar o livro “Alcora, O Acordo Secreto Do Colonialismo”, Editora Objectiva, de Carlos Matos Gomes.

** In “As Voltas Do Passado, A Guerra Colonial E As Lutas De Libertação”, organização de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, Edições da Tinta-da-China, página 290.